sábado, 24 de março de 2012

Memórias Póstumas de Brás Cubas: ainda vale a pena lê-lo?

 Memórias Póstumas de Brás Cubas é o romance com o qual Machado de Assis inaugurou o Realismo Brasileiro em 1881, um feito que está completando, portanto, 131 anos. E essa distância no tempo parece ter inspirado alguns discursos bastante curiosos, como a crítica de uma suposta Gabriela Klein, estudante do 3º ano de uma escola estadual de Carapicuíba (SP). De acordo com tal julgamento, veiculado em 2011 no Orkut, o grande romancista fluminense faria parte da preferência de bancas de vestibulares desatualizadas, que deveriam cobrar livros menos doentios e mais ligados ao universo cultural dos estudantes, como Harry Potter e Crepúsculo, grandes obras da atualidade”.
É boa a possibilidade de esse comentário não passar de um fake com intenção humorística. Nesse ponto, tornou-se bastante eficiente. Entretanto, O Magriço Cibernético já viu observações desse mesmo quilate, como em uma conceituada revista de economia, que se queixava do fato de Machado, apontado como dono de linguagem antiquada e de assuntos desinteressantes, tornar-se leitura obrigatória para nossos estudantes de Ensino Médio. Aliás, por que essas revistas colocam economistas para discutir educação? Eis o mistério da fé...
A falta de conhecimento pedagógico invalida facilmente análises como as observadas acima. Entretanto, o preocupante é que esse discurso encontra eco em gente que está dentro de colégios, até mesmo dirigindo instituições de ensino. Há “educadores” que criticam a presença no currículo escolar de livros como Auto da Barca do Inferno, Memórias de um Sargento de Milícias, Memórias Póstumas de Brás Cubas, vistos como incapazes de atrair a atenção do aluno e que, portanto, se tornam desinteressantes e ineficientes em sua proposta de ensino. Alguns desses “pedagogos” chegam mesmo a defender a substituição por obras mais próximas do universo cultural dos adolescentes, como as escritas por Paulo Coelho, J. K. Rowling e Stephenie Meyer. Será que esses docentes foram professores de Gabriela Klein?
A apreciação de todo esse contexto permite perceber que alguns problemas têm se espalhado em nosso meio educacional. Em primeiro lugar, esqueceu-se de que a função da escola é acrescentar, não é redundar. Ela pode se utilizar do universo cultural dos seus estudantes, mas para ampliá-lo. Nesse ponto, até é possível usar a saga Harry Potter, rica de referências literárias e mitológicas, para fazer o aluno alçar voos mais ousados. O mesmo pode ser feito com a série Crepúsculo, fruto de um caldo requentado dos clichês românticos dos séculos XVIII e XIX. Dela pode-se fazer o aluno ampliar o seu repertório cultural e buscar as matrizes do que tanto o seduz nessas narrativas açucaradas. Quanto a Paulo Coelho, seu conteúdo é tão raso que parece não possibilitar algum trabalho sobre ele. Não é uma literatura péssima, mas não adiciona muito ao seu leitor.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra riquíssima. Pode ser chata se mal trabalhada em sala de aula. Se simplesmente se atira o livro como obrigação para o aluno ler e não se dá qualquer apoio ou subsídio, é óbvio que o jovem vai ficar perdido diante de tanto conteúdo e terminará por qualificar o romance como enfadonho. É o que provavelmente acontece na maioria das nossas escolas, o que pode ser comprovado pela ojeriza que muitos adolescentes têm em relação a esse livro. Muitos acabam finalmente se encantando com ele quando finalmente são orientados adequadamente. E é o que O Magriço Cibernético vai se propor a fazer neste post.
Por que Memórias Póstumas de Brás Cubas é um excelente romance? Seu estilo é delicioso, enxuto, algo entre a galhofa e a melancolia, como aponta seu narrador. Um clássico da literatura. O próprio Woody Allen em 2011, durante as entrevistas para o lançamento de seu filme Meia-Noite em Paris, declarara que era um dos cinco melhores livros que já havia lido. Chegou inclusive a dizer que tinha a sensação de que o livro fora escrito recentemente. E o cineasta nova-iorquino conseguiu enxergar um ponto essencial da obra: ela ainda se faz atual, conseguindo mostrar os mecanismos de funcionamento de nossa sociedade e de nossa existência. E de uma maneira mais eficiente que a Sociologia e a História, pois que vai pelo caminho estético, fixando-se mais firmemente em nosso intelecto.
Para o leitor desacostumado essa qualificação extremamente positiva pode parecer exagerada, pois o livro possuiria dois graves defeitos. O primeiro seria a constante utilização da digressão, ou seja, da quebra da linearidade narrativa para a introdução de observações periféricas sobre filosofia, literatura, política, história, mitologia e até mesmo assuntos banais, como a validade de se usar botas apertadas ou a presença funesta de uma borboleta preta. Mas é justamente neste ponto que recai um dos grandes valores da obra. Trata-se se um recurso que impedirá que o leitor se envolva com a trama, o que manterá um distanciamento, uma imparcialidade, fundamental para que sejam percebidas as críticas que o autor pretende veicular. Além disso, essas digressões possibilitarão que se una o nacional ao universal, o atemporal ao contemporâneo. Assim, mais uma vez estará garantida a apresentação de problemas cruciais de nossa civilização.
O segundo “defeito” de Memórias Póstumas de Brás Cubas é que a sua narrativa no fundo é uma não-narrativa. Seu protagonista é um inútil. Sua biografia é simplesmente uma coleção de fracassos. É o que fica bem assinalado no último capítulo, “Das Negativas”, em que se faz um balanço de sua existência. E o título já diz tudo. Assim, qual seria a importância de se ler sobre a vida de alguém que não fez nada de importante?
A resposta a essa pergunta e a intenção de Machado de Assis ao criar o seu romance ficam nítidas quando se tem em mente que o protagonista é um membro da elite burguesa brasileira. Percebe-se então uma proposta de desancar a classe dominante brasileira, o que é feito de maneira sutil. Para tanto, o autor não precisou se utilizar da crítica descarada em terceira pessoa, como se vê nas obras de Eça de Queirós e tantos outros escritores realistas. Simplesmente deu voz a um membro da famigerada classe alta para, assim, com o seu próprio discurso, pôr a nu sua mediocridade. Em linguagem de adolescente: “ele próprio queima o seu filme”.
Dessa forma, notamos nos vários capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas a busca incessante por status que fará com que Luís Cubas, pai do protagonista, ridiculamente esconda as origens de sua família. Ou que a personagem principal perca a vida em busca de um remédio que curará a humanidade da melancolia. Não se iludam – não é com intenção altruísta que ele se dedica a esse propósito, mas movido puramente pelo egoísmo: ele sonha em ver seu nome impresso em cada vidrinho em cada lar da civilização. Essa preocupação com status fará Lobo Neves engolir a fama de marido traído, fingindo não saber o que está acontecendo. E essa mesma preocupação fará Virgília viver sua relação adulterina, mas sem querer se separar do marido – não quer sofrer as dificuldades de mulher separada.
Notamos também as incoerências de uma elite que se diz ilustrada, adepta do Liberalismo, que comemora a queda de Napoleão – o que é encarado como o triunfo da Liberdade – e ao mesmo tempo negocia escravos e, pior, ganha o pão à custa do suor alheio (diga-se: negro). E tudo isso é cruelmente legitimado pelo fato de Prudêncio, tendo sofrido horrores na infância com o sinhozinho Brás Cubas, ao conseguir a alforria, imediatamente comprar um cativo e descarregar neste tudo o que havia recebido do branco.
Mas o tema da exploração não se restringe na relação racial. Está espraiado no nosso tecido social. Vemo-lo na união que Marcela mantém com o jovem Brás Cubas. Ela o amou durante “quinze meses e onze contos de réis”. Enquanto havia dinheiro, havia “amor”. Vemo-lo também na utilização de D. Plácida como protetora de uma vergonhosa relação adulterina. Mas era isso ou morrer de fome. E reforça-se a cínica tese do narrador de que todo homem tem um preço. Vemo-lo ainda no surgimento de Eulália Damasceno de Brito, num enlace matrimonial de duplo interesse em que o amor conjugal é apenas um detalhe. O que interessa é que o nome Cubas estaria limpo dos escândalos adulterinos e em troca os Damasceno de Brito, emergentes, ganhariam aceitação social.
O mais interessante é que tudo isso é narrado por um defunto-autor. Aqui se manifesta mais uma vez a maestria com que Machado de Assis manipula o foco narrativo. Seu enunciador já está morto e por isso não tem contas a pagar com a sociedade à qual pertenceu. É por isso que conseguirá expor um painel cortante, agressivo não só de si mesmo, mas também do meio do qual fez parte. E que de certa forma não mudou nesses 131 anos. Mas isso só será percebido por aqueles que têm capacidade de ler as entrelinhas. Que sem dúvida não são Gabriela Klein e seus asseclas.

11 comentários:

  1. É exatamente isto o que acontece. Esta abordagem, na maioria das vezes, surge do aluno não esta preparado para apreciar uma obra tão densa.
    Foi o que aconteceu comigo. A priori tive este mesmo julgamento, e a leitura me era cansativa. Resolvi então iniciar nosso relacionamento pelos contos, por serem mais curtos.
    Ao final de três, em especial de O Alienista, eu estava apaixonado por sua ironia sutil, pela narração única e as reflexões que me suscitavam.
    Sucederam-se então muitas outras obras, e hoje com certeza Machado é entre os romancistas o meu predileto.
    Como um aluno que passou por este processo, (e como qualquer pessoa ajuizada, rs) posso afirmar que Brás Cubas não esta ultrapassado para nossa geração!
    Apenas é preciso introduzir este conteúdo de maneiras melhores, e não simplesmente "atirar o livro em nossas caras" esperando nosso interesse. Diga-se de passagem: Em plena geração z.
    E neste aspecto você faz um bom trabalho. Este blog é um exemplo disso. Confesso que sou um exatóide e suas aulas aumentaram o meu interesse pela literatura!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Poxa, é muito bom ouvir essas palavras bonitas de um "exatoide"...

      Excluir
  2. Seus arumentos nao passam de uma opiniao, e so!

    Concordo com ela, ao menos com Harry Potter, mais jovens e adolescentes teriam paciencia e principalmente INTERESSE em ler. Mas infelizmente acho que eles devem continuar com os livros e literatura tradicional, pois o papel do ensino nas escolas é justamente ser chato e fazer as pessoas lerem o que, provavelmente, JAMAIS leriam se nao fossem obrigadas! #ContraFatosNaoHaArguentos

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu caro internauta, em primeiro lugar preciso avisar que você está fazendo algumas confusões. A começar, você precisa entender melhor o que são fatos, o que são argumentos e o que é opinião. A partir de então você entenderia que o que toma por fato precisa ser mais delimitado e tomaria principalmente mais cuidado com generalizações.
      Em segundo lugar, o papel da escola é garantir formação para que quem nela frequente esteja capacitado para exercer o papel de cidadão e de profissional. Assim, sua função é ampliar o universo cultural de quem a frequenta. Assim, ela deveria apresentar elementos aos quais sozinhos boa parte dos adolescentes não teriam acesso. Portanto, não precisaria se utilizar de Harry Potter, pois já faz parte do universo cultural dos estudantes. A escola poderia, entretanto, utilizar essa obra como ponte para alçar outros voos. A autora dessa saga é uma mulher muito culta e se inspirou em vários elementos da que você considera literatura chata.
      Em terceiro lugar, o papel do ensino na escola não é ser chato ou agradável. O papel da escola é simplesmente ensinar. Não sei com qual escola você tem contato. Talvez você esteja fazendo outra generalização. Conheço vários alunos que se divertem com o que aprendem na escola. Há, isso é verdade, os que a acham chata. Mas esse não é problema da literatura. Além disso, devemos deixar de ser prisioneiros da preocupação de só querer o que dá prazer. O crescimento como pessoa se dá também nos momentos de sacríficio. Do contrário, seremos apenas bebês e não seres humanos.
      Em terceiro lugar, a literatura é o depositário do que de melhor se produziu na língua de um povo. Não ter acesso a isso seria um crime, pois seria não ter acesso ao que melhor existe em nossa cultura. E Machado de Assis sem dúvida é dono de alguns dos melhores textos da língua portuguesa. É opinião minha e de críticos da Europa e dos Estados Unidos. Enfim, é uma opinião que é um fato. Nele encontramos elementos que falam de nossa existência assim como de nossa sociedade. O que você leu no post acima é apenas uma pequena parte do que se pode ver em Memórias Póstumas de Brás Cubas. E quando dou aula sobre esse livro para os meus alunos, eles acabam convencidos do valor desse livro. E olha que não sou o melhor professor do mundo. Tudo depende, portanto, da maneira como ele é trabalhado em sala de aula. E confesso que em geral não deve ser trabalhado adequadamente, assim como todas as demais matérias, o que atesta - e isso é fato - o baixo índice educacional em que nos encontramos. Mas a causa disso é bem mais ampla e que tanto não é culpa da literatura "tradicional" quanto não é do âmbito deste blog.
      Por fim, discordo da sua opinião segundo a qual as escolas fazem as pessoas lerem esses livros que você considera chatos. Como já disse, o desempenho escolar está tão sofrível que as pessoas conseguem passar até mesmo em cursos de Letras sem terem lido um livro, imagine então no nosso ensino médio! Mas, reforço, ninguém é obrigado a ler esses livros tradicionais, afinal, ninguém é obrigado a evoluir, você não acha?

      Excluir
  3. Estudei em escola pública a vida inteira, e o que é pior: no fim do Mato Grosso, onde tudo tende a ser mais precário. Tudo o que eu aprendi foi por conta própria, principalmente quando o assunto é literatura. Como a maioria dos estudantes, fui obrigada a ler Machado de Assis no ensino médio e achei um saco. Como vc bem colocou, sem apoio fica difícil entender a obra. Porém, quando saí da escola e puder ler os livros do Machado sem "compromisso", com calma e com mais maturidade, consegui captar os seus encantos. Não se trata de literatura ultrapassada, o grande problema é que as pessoas estão acostumadas à literatura e ao cinema desprovidos de "inteligência" (não encontrei um termo melhor), afinal, pensar para entender algo requer esforço, e isso pode ser desagradável para os que se acostumaram a ver apenas o que está explícito e considerar chato aquilo que exige atenção, bagagem cultural e senso crítico.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Seu comentário é bastante pertinente, Jéssica. Faz-me lembrar um crônica que li nos tempos perdidos de ginásio, em que se advertia que não se deve acordar o leitor, daí a necessidade de fazer uma literatura descerebrada e cheia de clichês. Saborosas ironias! Gostaria muito de rever esse texto, mas não lembro mais quem era o seu autor, muito menos seu nome..,

      Excluir
  4. Li Machado de Assis aos 12, 13 anos de idade e amava...sonhava, devaneava......já adulta, pude entender, estudar, reler, voltar capítulos inteiros, digeri-los....me apaixonei mais ainda....é simples assim...algumas pessoas amam...outras não... E releio até hoje...Brás Cubas é o meu favorito, mas já descobri, por exemplo, o mini romance Frei Simão. Belíssimo! Recomendo!

    ResponderExcluir