domingo, 31 de março de 2013

Texto literário: o feliz casamento entre forma e conteúdo


No post de 05 de agosto de 2012, utilizou-se a canção “Construção”, de Chico Buarque, para se falar da especificidade do texto literário. Viu-se que, como toda manifestação artística, sua forma expressa também conteúdo. Assim, por exemplo, no trecho “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, a repetição do som /tra/ sugere justamente o ruído provocado por algo interrompendo o fluxo. Vejamos mais alguns exemplos em que ocorre esse feliz casamento.
Acima temos “O Papa é Pop”, de 1990, dos Engenheiros do Hawaii. Sua mensagem é bastante significativa: “qualquer coisa que se mova é um alvo”. Há aqui uma referência ao carismático papa João Paulo II, que foi vítima de um atentado em 1981. O fato de ser popular (pop) possibilitou que o religioso sofresse um ataque. Criticam-se então os efeitos nocivos da mídia que, na sua sanha, acaba incessantemente destruindo seu objeto de trabalho. E essa ideia está justamente no refrão da composição, com a repetição exaustiva do /p/ (“o papa é pop [...] o pop não poupa ninguém”). Sugere-se aqui uma infantilização da sociedade, já que se remete à fase em que a criança, encantada com sons, passa ludicamente a brincar com eles. Sugere-se também, pela reiteração dos fonemas em um quase trava-língua, o desgaste e até o esvaziamento que os meios de comunicação provocam nos acontecimentos, de tanto martelá-los. E o mais incrível, e irônico, é que à época em que essa música fez sucesso, era justamente esse o trecho mais cantado e repetido, muitas vezes sem se entender o seu significado. Quem nasceu para criticar o sistema acabou sendo vítima dele.
Um outro exemplo da união entre forma e conteúdo é “Diamonds”, de Rihanna:


Nessa composição, é celebrada a felicidade de se encontrar o amor. Tal feito parece fazer o eu-lírico alçar-se a um nível superior, chamado de êxtase. Esta última palavra até faz lembrar o ecstasy, a famosa pílula do amor. Talvez por isso a referência ao consumo de droga no controverso clipe da música em questão. Ou a citação a “diamonds in the sky”, imagem alucinógena que parece remontar ao psicodélico “Lucy in the Sky with Diamonds” (1967), dos Beatles. O amor é, portanto, visto como uma droga, pois nos coloca em um plano elevado. Mas o que interessa analisar nesse momento é que esse içamento é sugerido pelo ditongo oral aberto /ai/, intensamente usado na composição: “shine”, “bright”, “like”, “diamond", “find”, “light”, “I”, “sky”, “alive”, “right”, “sight”, “life”, “inside”, “eyes”, “tonight”, “rise”, “moonshine”, “die”. Trata-se de uma curiosa sinestesia, já que o brilho do diamante, fenômeno visual, representa um fenômeno psicológico, a iluminação provocada pelo amor, e é representado por um ditongo, fenômeno auditivo.
Outro exemplo muito válido é “Chuva, Suor e Cerveja” (1977), de Caetano Veloso:


O andamento dessa composição é o do frevo, ritmo característico do carnaval pernambucano. Bastante coerente com a história que é narrada. Começa-se com um apelo para que o receptor da mensagem não se perca em meio ao bulício. Trata-se de uma mensagem ambígua, pois também pode parecer um apelo amoroso: “não se perca de mim”, “não desapareça”, “não saia do meu lado”. Mas o importante é notar como a repetição de fricativas sugere justamente o som dos pés se arrastando no chão molhado, fato mencionado no texto: “E vamos embora ladeira abaixo / acho que a chuva ajuda a gente a se ver / venha, veja, deixa, beija / seja o que Deus quiser”. E o mais notável é que nesse clima dionisíaco de carnaval, em que é tão fácil perder a cabeça (a razão, elemento oposto ao universo de Dionísio), o embolamento dos verbos em “venha, veja, deixa, beija” sugere o que ocorre nas duas últimas estrofes, com o clímax na fusão entre chuva, suor (da dança) e cerveja, uma oposição bem humorada do mote “sangue, suor e lágrimas”, criado por Churchill para responder como iria vencer a Alemanha de Hitler:

A gente se embala
se embora, se embola
Só para na porta da igreja

A gente se olha
Se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja

Portanto, os três exemplos apresentados neste post servem para mostrar a especificidade do texto literário. Seu sentido não está apenas na ligação das ideias que o compõem, mas também na maneira como é construído. Enfim, e nunca é demais repetir, no feliz casamento entre forma e conteúdo.
 


domingo, 24 de março de 2013

A importância do viés para a análise de textos


Sabemos que um texto é feito dos elementos que o constituem e que, interligados, estabelecem o seu sentido. Mas algumas vezes precisamos também ter noção de quem o produz para dominarmos seu conteúdo. Em outras palavras, precisamos entender o seu viés, ou seja, a tendência que o seu autor lhe dá. É o que vemos na imagem acima, que circulou nas redes sociais há poucos dias.
À esquerda, vemos a capa de uma edição de Veja, revista que é acusada de direitista, conservadora e até defensora de posturas antiecológicas, em nome de um neoliberalismo disfarçado de desenvolvimentismo. Esse perfil, se real, faria com entendêssemos como bastante lógica a imagem que apresenta ao seu leitor. Vemos um Hugo Chávez com uma expressão carrancuda, ameaçadora, diabólica. Seu olhar erguido e desligado parece o de alguém que trama algo maquiavélico. Reforça esse quadro o rosto ter um lado claro e outro oculto, dando a entender que o que se mostra não é tudo, havendo algo escuso. Tudo isso é coerente com o título: “Herança sombria”. Nada mais natural para um órgão defensor de interesses conservadores. Segundo tal, o chavismo seria visto como atualização do caudilhismo, do populismo, do lado mais nefasto do socialismo, dono de autocracia, autoritarismo, atraso e posturas antidemocráticas.
À direita, vemos a capa de uma edição de Carta Capital. É válido lembrar que essa publicação constantemente é apontada como esquerdista ou partidária das políticas do PT. É por isso que é também acusada de ter suas páginas recheadas de propagandas do Governo Federal. Tal caráter tornaria coerente a imagem que aqui exibe, a começar pela expressão altiva de Chávez. Seu rosto já não é mais maligno, mas bem disposto (talvez bem humorado) e até nobre, olhando para o céu como aqueles santos que miram o lugar a que estão destinados. Além disso, o processo de edição a que foi submetida a imagem, que curiosamente recebeu as cores da bandeira da Venezuela, aproxima-a da pop art, principalmente a de Andy Warhol (1928-1987). O ex-presidente, portanto, está alçado a ícone popular. E a manchete, “A Morte de um líder”, neutro, se não diz nada de positivo, pelo menos não diz nada de negativo.
Não interessa saber qual das revistas está com a verdade. Mais importante é notar que o confronto entre as duas capas, que circularam na mesma época e abordaram o mesmo assunto, ensina duas coisas. A primeira é que a completa objetividade, principalmente a jornalística, é um mito. A segunda é uma inferência da primeira: todo texto é marcado pelo ponto de vista, pelo universo de valores de quem o produz, enfim, pelo viés. Assim, poderia ser acrescentado ao título “Você é o que consome” a mensagem “Você é o que produz”.
Ter consciência dessa natureza ajuda a entender, por exemplo, a crítica que D. Ermelinda, personagem de Til (1872), faz a pessoas como Jão Fera, que não mostram gratidão aos favores que receberam dos ricos. Basta lembrar que esse texto foi escrito por José de Alencar, um conservador que não enxergava que estava configurado aí um sistema que humilhava os homens livres pobres. Saber dessa característica dos textos ajuda também a entender por que os trombadinhas de Capitães da Areia (1937) são tratados como heróis. É só ter em mente que o autor desse texto, Jorge Amado, era, na época, membro do Partido Comunista, agremiação política que possuía membros que defendiam que toda propriedade seria um roubo – então, apropriar-se dos bens dos ricos não seria um crime. Mas o exemplo mais interessante é o de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Para compreender a volubilidade de seu narrador, precisamos levar em consideração que se trata de um membro da elite brasileira, classe acostumada a praticar desmandos. Entretanto, o mais interessante é saber que o protagonista assume posturas radicalmente opostas às de Machado de Assis, autor do romance. Por aí já se consegue notar a qualidade desse escritor, que se mostra um excelente manipulador do foco narrativo: não foi necessário fazer crítica aberta aos grandes proprietários – bastou apenas dar-lhes voz.
Enfim, todos esses exemplos são provas suficientes da importância de se observar o viés de um texto para que se tenha a sua perfeita compreensão.


domingo, 10 de março de 2013

A propósito do tsunami no Japão - lições de análise de textos

Em vários momentos foi dito aqui nO Magriço Cibernético, e mais vezes terá de ser dito (pois se trata de um conceito importantíssimo), que o sentido de um texto é garantido pela ligação entre os elementos que o compõem. É também vital lembrar que o seu significado também é garantido pelo contexto em que está inserido, como foi visto no post de 08 de março de 2012. Nota-se, portanto, que uma leitura e uma redação eficientes só são possíveis graças à atenção que se dá a elementos intra e extratextuais. Assim, evitam-se problemas como os demonstrados nos posts de 01 de março de 2012, 21 e 24 de outubro de 2012. É também essencial observar a forma em que a mensagem se apresenta, do contrário também ocorrerão erros de interpretação, como identificado no post de 30 de setembro de 2012, em que se viu que a repetição de ações em Chaves não é forma de representação do inferno, mas algo comum a um seriado humorístico. Tudo isso deveria ter sido levado em conta para evitar o escândalo que se levantou contra a charge acima, de João Montanaro, publicada na Folha de S. Paulo em 12 de março de 2011.
Em 11 de março daquele ano o Japão foi vítima de um tsunami, catástrofe que provocou comoção mundial. No dia seguinte, o jovem chargista, então com 14 anos, apresentou no maior jornal do país sua visão sobre essa grande tragédia. A grita foi intensa, pois muitos leitores viram como falta de respeito o humor que estaria sendo feito em cima da imensa dor dos outros. A febre do politicamente correto tinha feito mais uma vítima.
Na verdade, a preocupação com o respeito alheio, que inspirou o fenômeno PC, é bastante louvável, pois tem como intenção evitar manifestações negativas muitas vezes baseadas em mero preconceito. Entretanto, ela parece estar sendo acometida do que deveria combater, que é o próprio preconceito, que se alimenta de ignorância. Em primeiro lugar, onde está o humor na charge em questão? E quem falou que charge necessariamente tem de ter conteúdo humorístico? Nota-se, portanto, o que já foi abordado no post de 11 de março de 2012: vivemos tempos sombrios, em que as trevas estão dando voz e poder a quem não tem razão. Portanto, aclaremos a situação.
O termo charge vem do francês e significa “carga”. Possui a ideia de algo que recebeu uma carga, um peso. Em outras palavras, é um desenho carregado, ou seja, em que se manifesta um exagero. De fato, muitas vezes a hipérbole pode produzir um efeito engraçado, o que se tornou bastante comum no tipo de publicação em análise. Entretanto, basta estudar a poesia para perceber que a sobrecarga linguística também pode expressar uma comoção fortíssima, o que é coerente com a presente obra de Montanaro.
Quando se tem noção de todos esses elementos, torna-se espantoso como um adolescente tenha dado um olé cultural em muito adulto que lhe atirou pedra. E para piorar esse contraste, basta lembrar que a fonte de inspiração desse jovem, já indicada no título de sua obra, foi uma xilogravura japonesa do século XIX, de autoria de Katsushika Hokusai (1760?-1849), japresentada a seguir:


O confronto entre essas duas ilustrações possibilita perceber uma valorização da força do povo japonês, capaz de enfrentar inúmeros obstáculos da Natureza e vencê-los. Basta lembrar que um arquipélago tão pequeno, pobre em recursos minerais, é uma das maiores economias do planeta. Ou notar que dois anos depois da tragédia do tsunami, que trouxe até temerosas consequências nucleares, essa nação está praticamente pujante e refeita. Ou ainda – e talvez principalmente – a consciência da pequenez do homem diante das condições em que vive, como dizia Camões em Os Lusíadas (1572):

No mar tanta tormenta e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida
Que não se arme e indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Enfim, muita coisa pode ser inferida, menos uma preocupação em tirar graça do padecimento alheio. Quem foi capaz de enxergar isso, ignorou regras básicas de interpretação de texto, como as arroladas no primeiro parágrafo deste post.

domingo, 3 de março de 2013

Amor I Love You - O Risco das Citações



Reiteradas vezes foi dito nO Magriço Cibernético que um texto é constituído não apenas pelo amontoado de palavras e frases, mas pela ligação que elas estabelecem entre si. No entanto, é também importante, para uma adequada compreensão da mensagem a ser transmitida, prestar atenção ao contexto em que o material analisado está inserido, do contrário, efeitos curiosos (algumas vezes nada positivos) serão obtidos. A canção “Amor I Love You” (2000), de Marisa Monte e Carlinhos Brown, é um bom exemplo disso.
A composição começa com um pedido de algo que parece antiquado: a confissão do amor (“Deixa eu dizer que te amo / Deixa eu pensar em você”). Quantas vezes esse tipo de demonstração não foi alvo de no mínimo um risinho condescendente? É como se a pessoa dominada por tal sentimento perdesse um pouco do respeito e seriedade (Ora, direis, conversar com paredes? Certo perdeste o senso – para parodiar Bilac), talvez por investir no que não tem muito futuro, por entregar-se (nas palavras de Camões) àquele “engano da alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito”. A culpa desse descrédito é o desgaste que essa emoção sofreu, tantas vezes apresentada em músicas, romances, filmes, novelas? Esse esgarçamento é tão nítido que pode ser notado, por exemplo, na maneira como Marisa Monte canta o refrão: em vez “ai lâviu” (ou algo próximo disso), como o faz quem quer se assemelhar aos falantes nativos, é “ai loviú”, tão abrasileirado e popularizado. E não é à toa que essa frase é enunciada duas dúzias de vezes. Ademais, tal deterioração se soma ao backing vocal, principalmente no refrão, que assume um tempero próximo do brega.

Marisa Monte e Carlinhos Brown

Todavia, o importante para esse post é notar um ponto interessante dessa composição. Há nela a citação de um trecho de O Primo Basílio (1878), do romancista realista português Eça de Queirós. Ei-lo:

"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"

O sujeito de “tinha suspirado” é Luísa, protagonista do livro. Trata-se do momento em que ela recebe a primeira carta de amor de seu primo, Basílio. Eça mostra maestria na manipulação da linguagem, construindo trechos de extrema beleza, como aquele em que se faz menção ao “corpo ressequido que se estira num banho tépido”, saborosa imagem do amor fazendo-nos entrar “numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações”. É gostoso ler e reler esses trechos, que parecem reforçar a importância do apaixonado confessar seu estado de espírito, que torna sua existência dourada. Assim, a ligação entre canção e citação é encantadora.

Eça de Queirós, escritor famoso por sua ironia agressiva.

Ou não. Quando se lembra que essa carta foi escrita por um aventureiro, que engana a prima porque quer apenas um relacionamento sem compromisso, pois, segundo ele, fazer sexo com ela é mais higiênico do que com uma prostituta, a imagem iluminada da canção rui. E se descobre algo muito importante – todo texto depende de seu contexto. Retirá-lo de seu ambiente é cometer o crime de distorção. Assim, o trecho de Eça de Queirós, fora do seu hábitat, revela elementos falsamente positivos. Não há deslumbramento, mas ironia.   
Caberia então perguntar se Carlinhos Brown e Marisa Monte tinham noção de que a citação contradiz a canção? Ou eles fizeram um interessante exercício dadaísta de manipulação de ready-made segundo o qual o objeto, deslocado de sua origem, ganha nova significação? Ou os compositores falharam ao fazerem uma associação ineficiente de elementos díspares? Enfim, ironia, poeticidade ou inépcia? Mas há um agravante: qualquer que seja a resposta, o grande público não percebeu nada, tal o sucesso que por muito tempo essa música obteve.