domingo, 24 de fevereiro de 2013

Considerações básicas sobre texto



Conforme já discutido nO Magriço Cibernético (posts de 8 de fevereiro de 2012 e 26 de fevereiro de 2012), um texto é feito pela ligação dos elementos que o compõem. João Montanaro, cartunista de 16 anos que trabalha para a Folha de S. Paulo, mostrou pleno conhecimento dessa regra ao fazer a charge acima, publicada na página 02 do referido jornal em 12 de janeiro deste ano.
 A pequena (não no sentido de qualidade) obra de Montanaro coloca lado a lado um datilógrafo com feições senis, um disco de vinil (LP), um entregador de leite, uma carta e o político José Serra. Seu sentido se dá graças ao nosso costume de sempre buscar relações entre elementos, pois não admitimos com facilidade o caráter aleatório da vida. Assim, imediatamente vemos que o que há em comum entre os itens exibidos é o fato de estarem antiquados: com o advento dos computadores, máquinas de datilografia deixaram de ser usadas e até mesmo fabricadas; com a popularização do CD e principalmente do mp3, o bolachão praticamente sumiu do mercado; com a modernização da produção e distribuição do leite, a figura do leiteiro, que entregava esse produto em nossa porta, sumiu; com o surgimento de novas formas de comunicação, principalmente as eletrônicas (sms, chat, Skype,msn), a carta entrou em desuso. O humor está no elemento que fecha a enumeração, pois, como toda piada, encerra de forma inusitada a fluência de elementos. Acaba-se entendendo, então, que José Serra, após ser derrotado em duas eleições e ter atingido uma alta taxa de rejeição, é um político ultrapassado, que já não tem mais espaço no mundo atual.
Esse mesmo procedimento interpretativo pode ser usado na canção a seguir, “Nome aos Bois”, lançada em 1988 no álbum Jesus não tem dentes no país dos banguelas, dos Titãs:


A letra dessa composição é bastante interessante, pois não apresenta frases ou orações, apenas uma sequência de nomes de pessoas. Ei-la:

Garrastazu
Stalin
Erasmo Dias
Franco
Lindomar Castilho
Nixon
Delfim
Ronaldo Bôscoli
Baby Doc
Papa Doc
Mengele
Doca Street
Rockfeller
Afanásio
Dulcídio Wanderley Bosquila
Pinochet
Gil Gomes
Reverendo Moon
Jim Jones
General Custer
Flávio Cavalcante
Adolf Hitler
Borba Gato
Newton Cruz
Sérgio Dourado
Idi Amin
Plínio Correia de Oliveira
Plínio Salgado
Mussolini
Truman
Khomeini
Reagan
Chapman
Fleury

Mais uma vez surge a necessidade de estabelecer relações para buscar um sentido ao que nos é apresentado. Assim, quando vemos que alguns dos invocados são personalidades negativas, como os arquifamosos Hitler e Mussolini, Plínio Correia de Oliveira (fundador da TFP), Erasmo Dias (que invadiu a PUC-SP em 1972 para impedir a refundação da UNE), Plínio Salgado (líder da Ação Integralista Brasileira), Garrastazu (general que governou o Brasil no ápice da Ditadura Militar), os sanguinários General Custer, Idi Amin, Pinochet, Baby Doc, Papa Doc, os uxoricidas (assassinos da própria esposa) Lindomar Castilho e Doca Street, Chapman (homicida de John Lennon), Jim Jones (religioso que comandou um suicídio em massa em 1978), Flávio Cavalcante (que humilhava artistas que se apresentavam em seu programa, chegando a quebrar ao vivo os LP’s deles), automaticamente outros acabam ganhando conotação negativa, caindo para o eixo do mal, como Delfim [Neto] (político), Ronaldo Bôscoli (produtor musical), Gil Gomes (apresentador de programas policialescos), Afanásio (colega de trabalho de Gil Gomes e defensor da pena de morte), Reverendo Moon (fundador da Igreja da Unificação), Dulcídio Wanderley Bosquilha (ex-árbitro de futebol) e até Sérgio Dourado, que parece que teve como único crime iniciar nos anos de 1970 a febre de especulação imobiliária no Rio de Janeiro, ajudando a alterar radicalmente a paisagem urbana. Dessa forma,quando se soma a essa enumeração o fato de ela ter como título uma expressão usada quando queremos que certos nomes, que por algum motivo estavam omitidos, sejam enunciados claramente, podemos entender que a canção dos Titãs funciona como um exorcismo, ou seja, uma oração para esconjurar espíritos ruins. Não é à toa que no final o vocalista emite sons que lembram alguém passando mal, ou por estar expulsando entidades pesadas ou por estar vomitando, o que no fim dá no mesmo.
 Assim, com esses dois exemplos fica reforçada a importante ideia de que o que dá vida a um texto é a ligação que se estabelece entre seus elementos constitutivos. Falaremos mais sobre isso nos próximos posts

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis



Como já foi dito várias vezes nO Magriço Cibernético, um texto não se faz com o simples amontoado de elementos. É necessário que eles estejam interligados para que assim consigam fazer sentido. Portanto, a ausência dessa ligação ou mesmo a má qualidade dela compromete o funcionamento do conjunto. Esse último ponto é o defeito que prejudica o filme Os Miseráveis (2012).
É válido observar que a película de Tom Hooper é belamente grandiosa, como se nota já a partir da abertura – muito parecida, aliás, com a de O Príncipe do Egito (1998). O curioso é que essa sensação de déjà-vu também se manifesta por meio do elenco fenomenal: Hugh Jackman é o outsider de coração bom Jean Valjean que faz lembrar o Wolverine da saga X-Men; Helena Bonham Carter é a amoral desequilibrada Madame Thénardier que faz lembrar a Bellatrix Lestrange de Harry Potter; Russell Crowe é o obstinado Javert que faz lembrar o Maximus de Gladiador (2000); Sacha Baron Cohen é o fanfarrão Thénardier que faz lembrar o protagonista de Borat (2006). Esse efeito de memória cinéfila pode indicar a limitação da indústria cinematográfica, pois lida com atores marcados e que se tornam tipos ou mesmo clichês. Culpa do artista, que só sabe se destacar em determinado papel? Ou do público, que só aceita essa espécie de desempenho? E o filme acaba prejudicado, pois parte de sua grandeza é emprestada de elementos de outras narrativas que fazem parte do repertório do espectador?


Nesse ponto, merece destaque a surpreendente atuação de Anne Hathaway. Ao vê-la interpretando Fantine, imediatamente lembramos a delicadeza de Andy Sachs, assistente da megera Miranda de O Diabo Veste Prada (2006). Mas enxergamos também Seline e a determinação em lutar pela própria sobrevivência em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012). Entretanto, a atriz supera todas essas marcas principalmente quando canta “I dreamed a dream”. Ela é tão boa que por si só vale o filme. Pode-se simplesmente ir embora da sala depois de terminada a ária. O problema é que uma obra não se faz apenas com uma boa cena, pois um texto não se faz apenas com um bom elemento.


Entretanto, há outros ingredientes positivos em Os Miseráveis. Um deles é a coragem em se apresentar como musical, gênero cuja vitalidade restringe-se aos meados do século XX. Para se ter ideia do desgaste desse tipo de obra, basta lembrar que os produtores de Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007) tiveram que lidar com processos judiciais por parte do público que se sentiu enganada porque assistiu ao filme sem saber que era um musical, pois nada disso aparecia no trailer. É claro que há realizações de sucesso como Moulin Rouge (2001), Chicago (2002) e Burlesque (2010), mas são exceções que acabam atendendo um nicho específico que consome naturalmente esse tipo de produto. O problema é que quando se confronta esses filmes competentes com o de Tom Hooper, nota-se que este não conseguiu fazer um musical, mas um filme cantado. O espectador sai da sala de projeção lembrando-se de qual música? Com certeza, de “I dreamed a dream”. Com um pouco mais de esforço, vai-se recordar do coro da abertura. E só. Qual é mesmo a canção que está concorrendo ao Oscar? Não obstante, o filme deve ser elogiado por não cair no erro de Evita (1996), que apresentou um Antonio Banderas esganiçado. Os atores de Os Miseráveis não são fenômenos vocálicos, mas não derrapam nesse quesito.
Há que se destacar também a competência de Os Miseráveis no campo visual. Sua fotografia é assombrosa, captando o titanismo da obra de Victor Hugo que lhe serviu de base. É por isso que constantemente nos defrontamos com tomadas nas alturas, condizentes com o estilo condoreiro do final do Romantismo. Além disso, existem nesse aspecto efeitos muito ricos, como na cena em que Valjean reza por Marius. Em determinado momento o protagonista fica à direita da tela, o que revelaria uma falha, pois nada é focado à esquerda. Mas um olhar atento capta nesse lado, desfocada, a imagem de um olho, o que remete à ideia daquele que tudo vê, ou seja, de Deus como o ausente sempre presente ao intervir em momentos precisos na vida das personagens.
No entanto, com todo esse material de primeira linha, onde está a falha de Os Miseráveis? Por que não é um filme que vai ficar na memória afetiva, como conseguiu Amadeus (1984), Clube da Luta (1999), Matrix (1999), Harry Potter (2001-10) ou até mesmo os açucarados Titanic (1997) e a saga Crepúsculo (2008-11)? Há quem possa levantar como causa o jeito antiquado da obra de Tom Hooper, não apenas por ser um musical, mas por apresentar valores tradicionais cristãos. Basta notar que todas as personagens positivas têm falhas em algum momento de seu passado e da qual infelizmente não conseguem se livrar. Não lembra a noção do pecado original? E não é à toa que o resgate-revolução está no seio da Igreja. Além disso, a paixão entre Cosette e Marius, filhos que nasceram puros em meio a tanta iniquidade, lembra o amor de Cristo que tirou o pecado do mundo.  No entanto, apesar de essa temática cheirar a arqueologia, ela não pode ser a responsável pelo fracasso de Os Miseráveis. Basta lembrar que as trilogias de Harry Potter e O Senhor dos Anéis (2001-3) lidam com ideais igualmente antigos e não são frustrantes.
Na verdade, o problema de Os Miseráveis está na forma em que dispôs os elementos da obra que lhe deu origem. Em 1862, ano da primeira publicação do texto de Victor Hugo, era normal que um romance tivesse uma estrutura caudalosa, com tramas cada vez mais complicadas, cheia de perseguições, sumiços, revelações, identidades trocadas. E para tudo isso se manifestar, nada mais natural do que o calhamaço de páginas e páginas que até hoje são acompanhadas avidamente por leitores sedentos. E é aí que está o problema do filme – como passar a enorme quantidade de conteúdo bom do livro em um filme de 156 minutos? O resultado foi a impressão de que se estava assistindo àqueles compactos de telenovela, em que há muito conteúdo em tão pouco tempo, o que não permite ao espectador envolver-se com a história. Quem curte, é porque está revendo, ou seja, está se deliciando com o que já visto, assim como quem cultua o filme de Tom Hooper pode estar na verdade fazendo uma ponte com o livro do romântico francês.
Há quem discorde lembrando que filmes como os de Missão Impossível ou os de 007 também apresentam vários acontecimentos com várias personagens em vários lugares, numa trama cada vez mais globalizada e isso não impede que sejam narrativamente mais eficientes. Mas a questão é que, por mais labiríntica que seja a história dos agentes secretos, elas prendem o público por terem unicidade, estarem ligadas a um mistério, a um fato. Já em Os Miseráveis temos várias histórias: a de Valjean, a de Fantine, a de Cosette, a de Marius, a de Javert, a da barricada. Cada uma delas daria um excelente filme. Ou funcionaria muito bem quando misturada às outras em uma estrutura novelesca de um romance. Assim, o filme de Hooper acabou sendo uma sucessão amontoada de grandes cenas.
Então seria impossível transpor a obra de Victor Hugo ao cinema? Com certeza não. Talvez a solução seja fatiar o que se acha essencial, como Peter Kosminksy fez em O Morro dos Ventos Uivantes (1992), baseado no romance homônimo que Emily Brontë publicou em 1847. Ou então transformar em trilogia, caminho muito bem enveredado por Star Wars, O Senhor dos Anéis e Crepúsculo. Ainda assim, é um bom filme que vale a pena ver.