domingo, 11 de março de 2012

A luz das trevas e o Dicionário Houaiss

Pelos idos dos anos 80 do século XX o quadro acima, do saudoso TV Pirata, parecia profetizar com muito bom humor e sagacidade a onda que iria dominar as discussões ditas intelectualizadas. Trata-se do politicamente correto, ou seja, da preocupação em evitar atitudes e principalmente expressões que  firam a suscetibilidade das classes desfavorecidas.  
O PC, como chegou a ser conhecido, mostrou um lado bastante positivo, pois revelou uma disposição em não ofender grupos sociais que por séculos foram vítimas de injustiças. Seria, portanto, uma intenção de corrigir erros perpetrados contra negros, mulheres, homossexuais, pobres e outros organismos. Dentro desses ditames, algumas das expressões anteriormente usadas, por exemplo, deveriam ser trocadas por “afrodescendentes”, “indivíduos de sexualidade alternativa”, “desprestigiados economicamente”.
O problema é que essa postura prolixa pode revelar uma atitude eufemística que acaba tendo como efeito o contrário do que se pretendia. Em outras palavras, ao invés de eliminar uma injustiça social, contribui por perpetrá-la. Hoje parece que não se pode mais usar o termo “favela”, mas “comunidade”, quando na verdade a grande solução seria eliminar esse tipo de moradia, garantindo a todo cidadão condições dignas para adquirir sua casa própria.
A consequência é que se está perdendo tempo com esforços que não produzem efeito útil. É o que se mostra no esquete acima. Ao se debater a piada, os elementos válidos para a análise deveriam dar conta do fato de o humor estar sendo baseado em interessantes jogos de linguagem. O primeiro está na ambiguidade em “Foi comida?”, que se pode entender como “Foi a comida que a deixou com enjoo?” ou como “Ela está com enjoo porque foi comida?” (ou seja, porque manteve relações sexuais). O segundo está na frustração da expectativa quanto ao tipo de casamento. Espera-se que seja civil ou religioso, mas o texto abre outro sentido não previsto, que é o local, na delegacia, produzindo mais graça dramática à situação, pois se trata de um enlace forçado.
A discussão que se produziu, entretanto, ignorou radicalmente a lógica, o mecanismo do funcionamento do texto humorístico, instalando-se um teatro de absurdos. A socióloga Agripina Inácia (interpretada por Regina Casé) usa em seu discurso clichês como “colocação a nível de crítica” e “dinâmica do tecido social”. Sabe-se que a utilização de chavões é um sinal de que o seu enunciador não está revelando pensamento crítico próprio, mas uma incorporação irrefletida de ideias que circulam em seu meio.
Interessante é notar que essa falta de criticidade se revela crucialmente na mudança que a socióloga propõe na piada. Ela sugere que sejam colocadas as frases “Foi sim. E eu vou levá-la para fazer um aborto”. Uma análise acurada permite perceber que tal alteração violenta a estrutura da história, pois faz com que perca metade de seu valiosíssimo jogo linguístico. Além disso, Agripina Inácia reforça a desvalorização da mulher (ao aceitar o termo “comida”) e desloca o foco da discussão, propondo que a anedota se transforme num panfleto sobre o direito que a mulher teria sobre o seu corpo.
É conveniente perceber que os mais interessados em toda essa problemática, um representante do povo e uma personagem de piadas, quase não têm voz, estão desligados de toda essa celeuma. Tarzã, líder de torcida, quer mais é saber do título para seu time. José de Arimateia, por sua vez, nem sabe o que está fazendo ali e acaba sendo silenciado. Se por um lado isso pode revelar a alienação desses dois grupos sociais, pode também indicar que os ditos intelectuais parecem viver numa Lapúcia, perdidos em elucubrações desconectadas da realidade.
O teatro de absurdos que se instaurou causa arrepios porque nos faz notar que não está circunscrito à peça humorística. Está ao nosso redor. Vemo-lo na tentativa de se tirar Monteiro Lobato do currículo do Ensino Médio, pois esse autor expressou uma visão negativa do negro (esquece-se que no conto “Negrinha” (1920) ele critica acidamente uma nobre fazendeira, Dona Inácia, que exercia um sadismo feroz sobre os seus empregados negros). Vemo-lo nos Estados Unidos, em que a editora NewSouth Books trocou o termo “nigger”, usado mais de 200 vezes no romance As Aventuras de Hucleberry Finn (1884), de Mark Twain. Em seu lugar ficou “slave”, considerado menos ofensivo para os padrões atuais.
Está-se fazendo uma assepsia cultural de resultados danosos. Não podemos esquecer que esses elementos, mesmo que preconceituosos, fazem parte do amadurecimento de nossa sociedade. Eliminá-los é comprometer nossa identidade e até mesmo nos enfraquecer. Precisamos ter conhecimento dessas experiências negativas – o que não quer dizer que devamos praticá-las.
Na verdade, como o filósofo Luiz Felipe Pondé insistentemente declara, estamos vivendo uma ditadura do bem. Todos são obrigados a fazer o bem, a aceitar o bem, a propagar o bem. Ou o que se acredita ser o bem. Mas essa ditadura do bem não deixar de ser... uma ditadura. Todos vão ser obrigados a ter o mesmo pensamento? Isso não cheira a Admirável Mundo Novo e 1984?
O que se está pregando é um estrabismo intelectual. Em nome de uma justiça social baseada em tolerância, paradoxalmente não está havendo tolerância ao se recusar quem pense diferente. Alguém não gostar de homossexuais, nordestinos, negros não é problema para a sociedade. Deve-se tolerar quem pense assim. O que não pode é esse tipo de pensamento provocar prejuízos, como violência, proibição de acesso à educação, a melhores salários ou condições de vida.
Mas, infelizmente vivemos tempos sombrios. E o mais paradoxal é que as trevas em que vivemos utilizam a luz da preocupação com o "bem-estar geral e a boa convivência social" para se manifestar. Vivemos tempos sombrios. No final de fevereiro noticiou-se que o Ministério Público Federal havia impetrado em Uberlândia uma ação contra o Dicionário Houaiss, por causa do verbete “cigano”, que, entre várias acepções, apresenta “aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. O mais incrível é que esse tipo de ação ganhou voz na Justiça. E o mais incrível ainda é que outros dicionários (o da Editora Globo e o da Melhoramentos) acataram o pedido do MPF.
O que chama a atenção é que a reação inicial, principalmente na Imprensa, foi obscurantista. Semelhante à que ocorreu há quase um ano, quando se noticiou que um livro didático do MEC, Por Uma Vida Melhor, “ensinava a falar errado” (sic). Vimos Alexandre Garcia vociferar no Bom Dia Brasil. No Painel da Globonews, apresentado por William Waack, mais desserviço. Os convidados para debater o caso foram uma pedagoga, uma presidente de uma ONG em defesa da educação e o filósofo Luiz Felipe Pondé. Nenhum dos quatro tinha lido o livro. E nenhum o discutiu! E, para aumentar o desserviço, a Imprensa não deu voz a linguistas, gramáticos, professores de língua portuguesa – autoridades sobre o assunto. Parece que o que importava era o tamanho do rasgo que o escândalo causaria e não a verdade dos fatos.
O mesmo está ocorrendo agora. Os donos da verdade, os que realmente não a têm, tomam decisões sobre o que não entendem. Não se ouviu um filólogo para dizer, ou melhor, ensinar algo que é simples: um dicionário só constata como a língua é utilizada. Não é ele quem dá sentido às palavras que nele se encontram, não é ele quem pratica preconceito, mas os usuários do idioma.
Entretanto, vivemos tempos sombrios. Dois dicionários já sucumbiram. Estão atacando o Houaiss. Qual será o próximo passo? Memórias de Um Sargento de Milícias (1852), de Manuel Antônio de Almeida? Nele os ciganos são apresentados também de forma pejorativa. E depois? Dom Casmurro (1901), de Machado de Assis? A expressão “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” também tem seu valor depreciativo contra tal agremiação. E então a próxima vítima será “Corpo Fechado”, conto de Sagarana (1956), de Guimarães Rosa, que apresenta a mesma imagem desse grupo social?
É certo que são valores negativos, que atentam contra a aceitação da alteridade. Mas eliminá-los, é vital repetir, seria empobrecer nosso repertório cultural e impedir nosso amadurecimento. O resultado dessa assepsia é por demais danoso. A própria Biologia parece confirmar. Estaríamos gerando uma sociedade sem imunidade, sem defesas em seu organismo. Uma sociedade de mimados, bobocas, despreparados para a vida.

6 comentários:

  1. Muito bom o texto, Laudemir. Veriquei uma passagem que coincide exatamente com o que penso: "Não se ouviu um filólogo para dizer, ou melhor, ensinar algo que é simples: um dicionário só constata como a língua é utilizada. Não é ele quem dá sentido às palavras que nele se encontram, não é ele quem pratica preconceito, mas os usuários do idioma." Refiro-me, sobretudo, à confusão que fazem com relação a compreensão da palavra. Isso, aliás, é óbvio. Ninguém cria significados para as mesmas, é justamente o contrário, o significado é originado através da compreensão popular. O autor simplesmente passa aquilo que o povo entende para o papel.

    Aproveito para alertá-lo de uma coisa que talvez não tenha se atentado, ou talvez não tenha abordado propositalmente no texto. O fato é que as patrulhas ideológicas estão soltas. São elas que acabam por pressionar e incentivar esse tipo de discussão vazia. E digo mais, a partir do momento que eles entenderem que as suas opiniões são contrárias aos pensamentos politicamente corretos deles, vão cair matando no seu Blog. Espere e verá.

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  2. Gilson, sábias as suas palavras. Você tem uma escrita muito agradável, não só pelo estilo, como também pelo conteúdo.
    Quanto ao ataque da Inquisição, sei que tudo o que expus está embasado na lógica e no bom senso. Se eu sofrer algo, conto com sua ajuda, não? Esteja a postos, certo?

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  3. Assim como a exploração já esteve muito em volga, hoje o debate sobre exclusão ganha feições bem interessantes. As minorias excluídas estão exigindo voz. Retirar palavras como "cigano" dos dicionários não seria um pedido de respeito pelo sofrimento passado por estas minorias? O interessante é que a democracia tem que dar voz a esse pedido, mas isso também prejudica o amadurecimento social com atitudes politicamente corretas (hipócritas). Lau, isso seria um paradoxo? Não estamos conseguindo equilibrar a balança democrática?

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  4. Robson, você realmente acha que a situação de injustiça tem a ver com a existência do termo "cigano" no dicionário?

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  5. Emendo outra pergunta. Caro Robson, você acha que o autor do dicionário tem culpa do senso comum entender o significado da palavra desta forma? Faz sentido demonizá-lo direcionando-lhe culpa, fato este que tem ocorrido na web, simplesmente por ele ter levado para o papel rigorosamente tal compreensão?

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  6. Sinceramente, não consigo responder nenhuma das duas. Minha pergunta não foi retórica.

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