sábado, 24 de março de 2012

Memórias Póstumas de Brás Cubas: ainda vale a pena lê-lo?

 Memórias Póstumas de Brás Cubas é o romance com o qual Machado de Assis inaugurou o Realismo Brasileiro em 1881, um feito que está completando, portanto, 131 anos. E essa distância no tempo parece ter inspirado alguns discursos bastante curiosos, como a crítica de uma suposta Gabriela Klein, estudante do 3º ano de uma escola estadual de Carapicuíba (SP). De acordo com tal julgamento, veiculado em 2011 no Orkut, o grande romancista fluminense faria parte da preferência de bancas de vestibulares desatualizadas, que deveriam cobrar livros menos doentios e mais ligados ao universo cultural dos estudantes, como Harry Potter e Crepúsculo, grandes obras da atualidade”.
É boa a possibilidade de esse comentário não passar de um fake com intenção humorística. Nesse ponto, tornou-se bastante eficiente. Entretanto, O Magriço Cibernético já viu observações desse mesmo quilate, como em uma conceituada revista de economia, que se queixava do fato de Machado, apontado como dono de linguagem antiquada e de assuntos desinteressantes, tornar-se leitura obrigatória para nossos estudantes de Ensino Médio. Aliás, por que essas revistas colocam economistas para discutir educação? Eis o mistério da fé...
A falta de conhecimento pedagógico invalida facilmente análises como as observadas acima. Entretanto, o preocupante é que esse discurso encontra eco em gente que está dentro de colégios, até mesmo dirigindo instituições de ensino. Há “educadores” que criticam a presença no currículo escolar de livros como Auto da Barca do Inferno, Memórias de um Sargento de Milícias, Memórias Póstumas de Brás Cubas, vistos como incapazes de atrair a atenção do aluno e que, portanto, se tornam desinteressantes e ineficientes em sua proposta de ensino. Alguns desses “pedagogos” chegam mesmo a defender a substituição por obras mais próximas do universo cultural dos adolescentes, como as escritas por Paulo Coelho, J. K. Rowling e Stephenie Meyer. Será que esses docentes foram professores de Gabriela Klein?
A apreciação de todo esse contexto permite perceber que alguns problemas têm se espalhado em nosso meio educacional. Em primeiro lugar, esqueceu-se de que a função da escola é acrescentar, não é redundar. Ela pode se utilizar do universo cultural dos seus estudantes, mas para ampliá-lo. Nesse ponto, até é possível usar a saga Harry Potter, rica de referências literárias e mitológicas, para fazer o aluno alçar voos mais ousados. O mesmo pode ser feito com a série Crepúsculo, fruto de um caldo requentado dos clichês românticos dos séculos XVIII e XIX. Dela pode-se fazer o aluno ampliar o seu repertório cultural e buscar as matrizes do que tanto o seduz nessas narrativas açucaradas. Quanto a Paulo Coelho, seu conteúdo é tão raso que parece não possibilitar algum trabalho sobre ele. Não é uma literatura péssima, mas não adiciona muito ao seu leitor.
Memórias Póstumas de Brás Cubas é uma obra riquíssima. Pode ser chata se mal trabalhada em sala de aula. Se simplesmente se atira o livro como obrigação para o aluno ler e não se dá qualquer apoio ou subsídio, é óbvio que o jovem vai ficar perdido diante de tanto conteúdo e terminará por qualificar o romance como enfadonho. É o que provavelmente acontece na maioria das nossas escolas, o que pode ser comprovado pela ojeriza que muitos adolescentes têm em relação a esse livro. Muitos acabam finalmente se encantando com ele quando finalmente são orientados adequadamente. E é o que O Magriço Cibernético vai se propor a fazer neste post.
Por que Memórias Póstumas de Brás Cubas é um excelente romance? Seu estilo é delicioso, enxuto, algo entre a galhofa e a melancolia, como aponta seu narrador. Um clássico da literatura. O próprio Woody Allen em 2011, durante as entrevistas para o lançamento de seu filme Meia-Noite em Paris, declarara que era um dos cinco melhores livros que já havia lido. Chegou inclusive a dizer que tinha a sensação de que o livro fora escrito recentemente. E o cineasta nova-iorquino conseguiu enxergar um ponto essencial da obra: ela ainda se faz atual, conseguindo mostrar os mecanismos de funcionamento de nossa sociedade e de nossa existência. E de uma maneira mais eficiente que a Sociologia e a História, pois que vai pelo caminho estético, fixando-se mais firmemente em nosso intelecto.
Para o leitor desacostumado essa qualificação extremamente positiva pode parecer exagerada, pois o livro possuiria dois graves defeitos. O primeiro seria a constante utilização da digressão, ou seja, da quebra da linearidade narrativa para a introdução de observações periféricas sobre filosofia, literatura, política, história, mitologia e até mesmo assuntos banais, como a validade de se usar botas apertadas ou a presença funesta de uma borboleta preta. Mas é justamente neste ponto que recai um dos grandes valores da obra. Trata-se se um recurso que impedirá que o leitor se envolva com a trama, o que manterá um distanciamento, uma imparcialidade, fundamental para que sejam percebidas as críticas que o autor pretende veicular. Além disso, essas digressões possibilitarão que se una o nacional ao universal, o atemporal ao contemporâneo. Assim, mais uma vez estará garantida a apresentação de problemas cruciais de nossa civilização.
O segundo “defeito” de Memórias Póstumas de Brás Cubas é que a sua narrativa no fundo é uma não-narrativa. Seu protagonista é um inútil. Sua biografia é simplesmente uma coleção de fracassos. É o que fica bem assinalado no último capítulo, “Das Negativas”, em que se faz um balanço de sua existência. E o título já diz tudo. Assim, qual seria a importância de se ler sobre a vida de alguém que não fez nada de importante?
A resposta a essa pergunta e a intenção de Machado de Assis ao criar o seu romance ficam nítidas quando se tem em mente que o protagonista é um membro da elite burguesa brasileira. Percebe-se então uma proposta de desancar a classe dominante brasileira, o que é feito de maneira sutil. Para tanto, o autor não precisou se utilizar da crítica descarada em terceira pessoa, como se vê nas obras de Eça de Queirós e tantos outros escritores realistas. Simplesmente deu voz a um membro da famigerada classe alta para, assim, com o seu próprio discurso, pôr a nu sua mediocridade. Em linguagem de adolescente: “ele próprio queima o seu filme”.
Dessa forma, notamos nos vários capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas a busca incessante por status que fará com que Luís Cubas, pai do protagonista, ridiculamente esconda as origens de sua família. Ou que a personagem principal perca a vida em busca de um remédio que curará a humanidade da melancolia. Não se iludam – não é com intenção altruísta que ele se dedica a esse propósito, mas movido puramente pelo egoísmo: ele sonha em ver seu nome impresso em cada vidrinho em cada lar da civilização. Essa preocupação com status fará Lobo Neves engolir a fama de marido traído, fingindo não saber o que está acontecendo. E essa mesma preocupação fará Virgília viver sua relação adulterina, mas sem querer se separar do marido – não quer sofrer as dificuldades de mulher separada.
Notamos também as incoerências de uma elite que se diz ilustrada, adepta do Liberalismo, que comemora a queda de Napoleão – o que é encarado como o triunfo da Liberdade – e ao mesmo tempo negocia escravos e, pior, ganha o pão à custa do suor alheio (diga-se: negro). E tudo isso é cruelmente legitimado pelo fato de Prudêncio, tendo sofrido horrores na infância com o sinhozinho Brás Cubas, ao conseguir a alforria, imediatamente comprar um cativo e descarregar neste tudo o que havia recebido do branco.
Mas o tema da exploração não se restringe na relação racial. Está espraiado no nosso tecido social. Vemo-lo na união que Marcela mantém com o jovem Brás Cubas. Ela o amou durante “quinze meses e onze contos de réis”. Enquanto havia dinheiro, havia “amor”. Vemo-lo também na utilização de D. Plácida como protetora de uma vergonhosa relação adulterina. Mas era isso ou morrer de fome. E reforça-se a cínica tese do narrador de que todo homem tem um preço. Vemo-lo ainda no surgimento de Eulália Damasceno de Brito, num enlace matrimonial de duplo interesse em que o amor conjugal é apenas um detalhe. O que interessa é que o nome Cubas estaria limpo dos escândalos adulterinos e em troca os Damasceno de Brito, emergentes, ganhariam aceitação social.
O mais interessante é que tudo isso é narrado por um defunto-autor. Aqui se manifesta mais uma vez a maestria com que Machado de Assis manipula o foco narrativo. Seu enunciador já está morto e por isso não tem contas a pagar com a sociedade à qual pertenceu. É por isso que conseguirá expor um painel cortante, agressivo não só de si mesmo, mas também do meio do qual fez parte. E que de certa forma não mudou nesses 131 anos. Mas isso só será percebido por aqueles que têm capacidade de ler as entrelinhas. Que sem dúvida não são Gabriela Klein e seus asseclas.

domingo, 18 de março de 2012

A riqueza de se olhar o outro: análise de Samwaad


A interpretação de um texto depende, entre outros fatores, da compreensão da cultura em que ele está inserido. Assim, um leitor competente é aquele que tem um bom repertório de conhecimento, com o qual estabelecerá associações de sentido. Quanto mais relações semânticas ele conseguir fazer, mais eficiência interpretativa vai demonstrar. E como adquirir essa habilidade? Leitura, muita leitura.
Entretanto, para entender a tradição em que estamos colocados, muitas vezes é útil olhar também para outros grupos sociais. Assim como o domínio de uma segunda língua ajuda a compreensão de nossa própria, assim como o estudo de outras áreas de conhecimento melhora o nosso desempenho mental para aquela em que nos dedicamos (quem é de humanas, por exemplo, precisa exercitar atividades de exatas e biológicas), o contato com outras culturas aprimora o conhecimento que temos da nossa. É o que se pode notar no vídeo acima.
Trata-se da abertura do espetáculo Samwaad (2003), de Ivaldo Bertazzo. Nesse belo trabalho, que contou com a participação de jovens de várias ONGs da periferia da cidade de São Paulo, Madhavi Mudgal, uma das mais renomadas artistas da Índia, dança diante de um passista de escola de samba. Ao fundo, ouvimos inicialmente a tambura, instrumento de corda indiano utilizado para sustentar tonalidade. Cria-se assim o clima oriental. É aí que entra a bateria sambista, curiosamente acompanhada do tabla, um instrumento indiano de percussão.  Está instaurado o contraste e o confronto entre a cultura brasileira, à direita, e a indiana, à esquerda.
O curioso é perceber que só no primeiro momento a musicalidade se manteve estanque – a indiana exclusivamente sob sons orientais e o sambista exclusivamente sob sons ocidentais. O contato que as duas sonoridades estabelecem permite que o desempenho artístico dos dançarinos se valorize, pois provoca a fusão entre duas concepções de mundo. Não é à toa que o espetáculo em que tal ocorre se chama “Rua do Encontro”, pois é a relação entre diferentes culturas que torna o gênero humano mais rico.
Antes que atirem a primeira pedra ao coitado dO Magriço Cibernético, é importante ressaltar que não se está fazendo um mero discurso paz e amor cheio de chavões cheirando a incenso ou outras coisas. É apenas a prática que vemos configurada aqui. Quando se olha para o outro dançando, e se se compara com o como nós dançamos (tudo está sendo dito aqui de maneira alegórica), notamos o requebro e flexibilidade típicos de nossa cultura, a revelar nossa sensualidade. Isso contrasta com a forma aprumada como Mudgal dança, destacando não sua pélvis, mas seu rosto e mãos. Haveria, então, o contraste entre a jovem cultura brasileira, centrada ainda nos chacras da região da cintura, e a milenar cultura indiana, centrada nos chacras da região da cabeça. Claro, isso tudo de forma alegórica, nunca é demais repetir. Tanto há brasileiros centrados nos chacras superiores quanto há indianos centrados nos chacras inferiores.
Enfim, o olhar que dedicamos ao estrangeiro enriquece nosso conjunto de valores, facilitando uma maior compreensão das tradições que possuímos. É importante, pois, deixar de lado comodismos, intolerâncias e preconceitos e aceitar o outro em suas múltiplas potencialidades. Muito temos a ganhar com isso.



quarta-feira, 14 de março de 2012

Propaganda europeia acusada de racismo contra Brasil, Índia e China


O vídeo de hoje é bastante útil porque servirá como exercício de recapitulação de tudo o que foi discutido nO Magriço Cibernético. Com ele mais uma vez conseguiremos ver que o sentido de um texto se dá na ligação que seus elementos estabelecem entre si. O conjunto é o que interessa e não um ingrediente específico, isolado. Além disso, o significado de uma mensagem também está garantido pela relação que ela possui com o contexto histórico-social em que está inserida. É importante, ainda, ter em mente o tipo de receptor para que a comunicação se efetive. Por fim, conforme foi abordado no último post, recentemente se tem mostrado uma grande preocupação (válida ou não) em não ferir suscetibilidades sociais, o que provocaria celeumas que teriam como consequência a desastrosa distorção da informação que se quer transmitir.
Há poucos dias, foi lançada no Youtube uma propaganda destinada ao público jovem e que tinha a intenção de incentivar a aceitação do aumento da adesão de membros da União Europeia. Nessa peça publicitária, uma jovem branca representa a referida agremiação político-econômica. É interessante notar que usa uma roupa que lembra a da protagonista de Kill Bill, que é uma mulher determinada em sua sede de vingança. Essa referência também é estabelecida pela música que é assoviada o fundo. Tal conexão permite que se faça uma pergunta que poderia não só comprometer a coerência interna do vídeo (a personagem não é uma vingadora), mas também ligá-lo a ideias impróprias (do que ou de quem a União Europeia estaria tirando desforra?).
A moça é então confrontada por três lutadores. O primeiro entra em cena demonstrando suas habilidades em kung fu. Ao fundo, o som de um gongo cria o clima típico do Extremo Oriente. Dentro do contexto em que foi construído o comercial, logo se infere que se trata da China. Surge então, ao eco de uma cítara, um indiano que exibe dotes em uma arte marcial que lhe permite o controle do próprio corpo, tornando-o até capaz de levitação e de uma surpreendente locomoção pelo ar. É a Índia. Por último, arrebentando a porta e embalado por toques de samba, aparece um negro exibindo todo o seu gingado em capoeira. Brasil.
Três homens contra uma mulher se configuraria numa batalha de extrema desigualdade ou até mesmo uma covardia. E o que isso tudo parece significar? Que a União Europeia está sendo ameaçada pelo BRIC, grupo de países emergentes formado por Brasil, Rússia, Índia e China.
Diante dessa situação periclitante, o que faz a protagonista? Calmamente – como em todo o comercial – ela se concentra e se multiplica por doze (o número de estrelas que compõem o símbolo da União Europeia), cercando seus desafiadores. Estes, diante do novo quadro, depõem sua disposição de lutar. As mulheres se sentam, no que são acompanhadas pelos ex-opositores, um gesto que configura uma disposição para o diálogo e debate.
Essa publicidade é eficiente em conquistar seus objetivos, pois utiliza elementos que rapidamente criam empatia com o seu destinatário: a protagonista jovem e aparentemente frágil, mas que sabiamente se desvencilha de obstáculos; a referência a um filme de sucesso que faz parte do repertório cultural de seus espectadores. Entretanto, essa mesma facilidade fez com que pagasse um preço bem alto: rapidamente suscitou reações polêmicas e inflamadas.
A primeira crítica que foi levantada refere-se ao fato de que a divulgada calma e sabedoria da personagem principal foram tomadas como sinal de arrogância da União Europeia, que se mostra superior a nações apresentadas como bárbaras. Assim, ela no final se mostraria uma negociadora pacífica ou simplesmente uma acuadora?
Além disso, surgiu a acusação de que esse comercial seria racista, o que fez os seus responsáveis retirarem-no do ar e pedirem desculpas pelo mal-entendido. Há nesse ponto alguns aspectos que merecem ser discutidos.
O racismo poderia estar configurado pela ausência de um dos BRIC: a Rússia. Ela não é vista como ameaça à União Europeia, mesmo não fazendo parte dela. Será que é porque esse sistema político-econômico depende dos combustíveis fósseis que o já não mais gigante vermelho fornece? Ou é porque de uma forma ou de outra ele divide a mesma cultura que os 27 países quem compõe as nações representadas pelas 12 estrelas? Então a questão não é apenas econômica, mas também cultural?
Outro aspecto que merece análise no que se refere ao presumido racismo: apresentou-se uma imagem redutora e, portanto, politicamente incorreta de Brasil, Índia e China. Essas representações recorreram a estereótipos que reforçariam preconceitos. De fato, muitos brasileiros poderiam dizer que não são negros e capoeiristas, assim como alguns indianos diriam que não dominam artes marciais e chineses afirmariam que não sabem nada de kung fu. Entretanto, o reverso da moeda comprometeria esse raciocínio: muitos europeus também não são brancos.
Deve-se lembrar, portanto, que as personagens precisam ser estereotipadas por causa da qualidade de texto em que estão inseridas. Trata-se de uma peça publicitária de pouco mais de um minuto. Para isso, trabalha-se com representações, alegorias, procedimento linguístico que não utiliza pessoas reais, de carne e osso, mas representações. Tais inevitavelmente são caricaturizações, ou seja, traços típicos exagerados. São perfeitas para o caráter diminuto do comercial. Não caberia nesse espaço exíguo e de comunicação imediata a prolixidade do politicamente correto. Não há como dizer, por exemplo, que esse negro capoeirista representa o Brasil e ainda ressalvar que há muitos brasileiros, entretanto, que não são capoeiristas, muito menos afrodescendentes. Em contrapartida, o que seria discutido se as personagens representando China, Brasil e Índia não estivessem dentro dos estereótipos? Será que se diria que os europeus seriam tão ignorantes que nem teriam noção de como esses povos são?
Em vista de tudo o que foi abordado aqui, o que se propõe agora é que você analise tudo o que foi exposto e apresente aO Magriço Cibernético a sua opinião. Sinta-se à vontade.

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domingo, 11 de março de 2012

A luz das trevas e o Dicionário Houaiss

Pelos idos dos anos 80 do século XX o quadro acima, do saudoso TV Pirata, parecia profetizar com muito bom humor e sagacidade a onda que iria dominar as discussões ditas intelectualizadas. Trata-se do politicamente correto, ou seja, da preocupação em evitar atitudes e principalmente expressões que  firam a suscetibilidade das classes desfavorecidas.  
O PC, como chegou a ser conhecido, mostrou um lado bastante positivo, pois revelou uma disposição em não ofender grupos sociais que por séculos foram vítimas de injustiças. Seria, portanto, uma intenção de corrigir erros perpetrados contra negros, mulheres, homossexuais, pobres e outros organismos. Dentro desses ditames, algumas das expressões anteriormente usadas, por exemplo, deveriam ser trocadas por “afrodescendentes”, “indivíduos de sexualidade alternativa”, “desprestigiados economicamente”.
O problema é que essa postura prolixa pode revelar uma atitude eufemística que acaba tendo como efeito o contrário do que se pretendia. Em outras palavras, ao invés de eliminar uma injustiça social, contribui por perpetrá-la. Hoje parece que não se pode mais usar o termo “favela”, mas “comunidade”, quando na verdade a grande solução seria eliminar esse tipo de moradia, garantindo a todo cidadão condições dignas para adquirir sua casa própria.
A consequência é que se está perdendo tempo com esforços que não produzem efeito útil. É o que se mostra no esquete acima. Ao se debater a piada, os elementos válidos para a análise deveriam dar conta do fato de o humor estar sendo baseado em interessantes jogos de linguagem. O primeiro está na ambiguidade em “Foi comida?”, que se pode entender como “Foi a comida que a deixou com enjoo?” ou como “Ela está com enjoo porque foi comida?” (ou seja, porque manteve relações sexuais). O segundo está na frustração da expectativa quanto ao tipo de casamento. Espera-se que seja civil ou religioso, mas o texto abre outro sentido não previsto, que é o local, na delegacia, produzindo mais graça dramática à situação, pois se trata de um enlace forçado.
A discussão que se produziu, entretanto, ignorou radicalmente a lógica, o mecanismo do funcionamento do texto humorístico, instalando-se um teatro de absurdos. A socióloga Agripina Inácia (interpretada por Regina Casé) usa em seu discurso clichês como “colocação a nível de crítica” e “dinâmica do tecido social”. Sabe-se que a utilização de chavões é um sinal de que o seu enunciador não está revelando pensamento crítico próprio, mas uma incorporação irrefletida de ideias que circulam em seu meio.
Interessante é notar que essa falta de criticidade se revela crucialmente na mudança que a socióloga propõe na piada. Ela sugere que sejam colocadas as frases “Foi sim. E eu vou levá-la para fazer um aborto”. Uma análise acurada permite perceber que tal alteração violenta a estrutura da história, pois faz com que perca metade de seu valiosíssimo jogo linguístico. Além disso, Agripina Inácia reforça a desvalorização da mulher (ao aceitar o termo “comida”) e desloca o foco da discussão, propondo que a anedota se transforme num panfleto sobre o direito que a mulher teria sobre o seu corpo.
É conveniente perceber que os mais interessados em toda essa problemática, um representante do povo e uma personagem de piadas, quase não têm voz, estão desligados de toda essa celeuma. Tarzã, líder de torcida, quer mais é saber do título para seu time. José de Arimateia, por sua vez, nem sabe o que está fazendo ali e acaba sendo silenciado. Se por um lado isso pode revelar a alienação desses dois grupos sociais, pode também indicar que os ditos intelectuais parecem viver numa Lapúcia, perdidos em elucubrações desconectadas da realidade.
O teatro de absurdos que se instaurou causa arrepios porque nos faz notar que não está circunscrito à peça humorística. Está ao nosso redor. Vemo-lo na tentativa de se tirar Monteiro Lobato do currículo do Ensino Médio, pois esse autor expressou uma visão negativa do negro (esquece-se que no conto “Negrinha” (1920) ele critica acidamente uma nobre fazendeira, Dona Inácia, que exercia um sadismo feroz sobre os seus empregados negros). Vemo-lo nos Estados Unidos, em que a editora NewSouth Books trocou o termo “nigger”, usado mais de 200 vezes no romance As Aventuras de Hucleberry Finn (1884), de Mark Twain. Em seu lugar ficou “slave”, considerado menos ofensivo para os padrões atuais.
Está-se fazendo uma assepsia cultural de resultados danosos. Não podemos esquecer que esses elementos, mesmo que preconceituosos, fazem parte do amadurecimento de nossa sociedade. Eliminá-los é comprometer nossa identidade e até mesmo nos enfraquecer. Precisamos ter conhecimento dessas experiências negativas – o que não quer dizer que devamos praticá-las.
Na verdade, como o filósofo Luiz Felipe Pondé insistentemente declara, estamos vivendo uma ditadura do bem. Todos são obrigados a fazer o bem, a aceitar o bem, a propagar o bem. Ou o que se acredita ser o bem. Mas essa ditadura do bem não deixar de ser... uma ditadura. Todos vão ser obrigados a ter o mesmo pensamento? Isso não cheira a Admirável Mundo Novo e 1984?
O que se está pregando é um estrabismo intelectual. Em nome de uma justiça social baseada em tolerância, paradoxalmente não está havendo tolerância ao se recusar quem pense diferente. Alguém não gostar de homossexuais, nordestinos, negros não é problema para a sociedade. Deve-se tolerar quem pense assim. O que não pode é esse tipo de pensamento provocar prejuízos, como violência, proibição de acesso à educação, a melhores salários ou condições de vida.
Mas, infelizmente vivemos tempos sombrios. E o mais paradoxal é que as trevas em que vivemos utilizam a luz da preocupação com o "bem-estar geral e a boa convivência social" para se manifestar. Vivemos tempos sombrios. No final de fevereiro noticiou-se que o Ministério Público Federal havia impetrado em Uberlândia uma ação contra o Dicionário Houaiss, por causa do verbete “cigano”, que, entre várias acepções, apresenta “aquele que trapaceia; velhaco, burlador” e “que é apegado ao dinheiro; agiota, sovina”. O mais incrível é que esse tipo de ação ganhou voz na Justiça. E o mais incrível ainda é que outros dicionários (o da Editora Globo e o da Melhoramentos) acataram o pedido do MPF.
O que chama a atenção é que a reação inicial, principalmente na Imprensa, foi obscurantista. Semelhante à que ocorreu há quase um ano, quando se noticiou que um livro didático do MEC, Por Uma Vida Melhor, “ensinava a falar errado” (sic). Vimos Alexandre Garcia vociferar no Bom Dia Brasil. No Painel da Globonews, apresentado por William Waack, mais desserviço. Os convidados para debater o caso foram uma pedagoga, uma presidente de uma ONG em defesa da educação e o filósofo Luiz Felipe Pondé. Nenhum dos quatro tinha lido o livro. E nenhum o discutiu! E, para aumentar o desserviço, a Imprensa não deu voz a linguistas, gramáticos, professores de língua portuguesa – autoridades sobre o assunto. Parece que o que importava era o tamanho do rasgo que o escândalo causaria e não a verdade dos fatos.
O mesmo está ocorrendo agora. Os donos da verdade, os que realmente não a têm, tomam decisões sobre o que não entendem. Não se ouviu um filólogo para dizer, ou melhor, ensinar algo que é simples: um dicionário só constata como a língua é utilizada. Não é ele quem dá sentido às palavras que nele se encontram, não é ele quem pratica preconceito, mas os usuários do idioma.
Entretanto, vivemos tempos sombrios. Dois dicionários já sucumbiram. Estão atacando o Houaiss. Qual será o próximo passo? Memórias de Um Sargento de Milícias (1852), de Manuel Antônio de Almeida? Nele os ciganos são apresentados também de forma pejorativa. E depois? Dom Casmurro (1901), de Machado de Assis? A expressão “olhos de cigana oblíqua e dissimulada” também tem seu valor depreciativo contra tal agremiação. E então a próxima vítima será “Corpo Fechado”, conto de Sagarana (1956), de Guimarães Rosa, que apresenta a mesma imagem desse grupo social?
É certo que são valores negativos, que atentam contra a aceitação da alteridade. Mas eliminá-los, é vital repetir, seria empobrecer nosso repertório cultural e impedir nosso amadurecimento. O resultado dessa assepsia é por demais danoso. A própria Biologia parece confirmar. Estaríamos gerando uma sociedade sem imunidade, sem defesas em seu organismo. Uma sociedade de mimados, bobocas, despreparados para a vida.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia da Mulher - o contexto histórico e a imagem da mulher em algumas propagandas

O Magriço Cibernético resolveu aproveitar o Dia da Mulher para não só prestar uma homenagem, mas também para continuar sua difusão e troca de conhecimentos ligados à competência linguística.
Não é exagero supor que, após tudo o que foi discutido neste blog, já tenha ficado por demais claro que qualquer texto é um conjunto de elementos interligados e que, portanto, para a sua compreensão, é importante respeitar a ligação que esses ingredientes mantêm entre si. Não se pode analisar um só ponto, desprezando os outros, assim como um só ponto não pode entrar em conflito com o seu conjunto, do contrário se corre o risco de comprometer a eficiência da comunicação. Entretanto, há mais uma preocupação que deve ser levada em conta na compreensão textual – o contexto histórico.
Já se disse que toda ação humana está dentro da História. Assim, para se entender completamente um texto, é importante ter em mente o momento em que ele foi criado. O comercial apresentado acima é um exemplo disso. Feito ainda em preto e branco, em um momento em que Regina Duarte era a namoradinha do Brasil (pelos idos perdidos do início dos anos 70 do século XX, provavelmente), a atriz é apresentada cometendo várias falhas na condução de um Fusca: esquece-se de soltar o freio de mão (note que à época se falava “breque de mão”), deixa o veículo morrer, não lembra que para dar partida é necessário que o câmbio esteja em ponto morto, locomove-se em zigue-zague e com o pisca-alerta ligado. No final, a mensagem que valoriza o produto anunciado: “Você já imaginou se não fosse um Volkswagen?”. Ou seja, se não fosse um carro dessa marca, não teria resistido a um desempenho tão catastrófico de sua motorista, uma mulher.
Essa propaganda faz sentido porque está inserida em um tempo em que existia um estereótipo feminino, ou seja, uma generalização indevida de que toda mulher é péssima no volante. E não ocorreu uma celeuma por causa do que foi veiculado. Assim, o anúncio acaba revelando os valores de uma época. Em contrapartida, para entendê-lo em sua integridade, é importante ter noção da mentalidade da era em que foi gerado. Não ter isso em mente pode gerar um erro grave de interpretação que é o anacronismo – atribuição a um período histórico valores que não pertencem a ele. Falha infelizmente ainda muito comum.
Mas, como dizia Camões, “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. A mulher foi conquistando espaço na sociedade. Daquele tempo para cá, muitas até chegaram a ser líderes governamentais: Margaret Thatcher, Michelle Bachelet, Angela Merkel, Dilma Roussef. E elas são apenas a ponta de um iceberg – em vários setores da sociedade a presença feminina já se mostra marcante. Criou-se então uma outra imagem de profissional (outro estereótipo?), como se vê na propaganda  abaixo, do Ford Fusion.
Nesse anúncio, lida-se humoristicamente com a frustração de expectativas. Em um almoço profissional, uma mulher lança uma pergunta a um homem e que está ligada a ideias muito importantes em um mundo competitivo como é o corporativo, pois revela preocupação com ambição e busca de metas: “E você, onde pretende estar daqui a cinco anos?”. Veem-se então uma típica fantasia masculina: impressionar uma mulher, coadjuvante (pois está no banco de passageiro), com um carrão. Quando a questão é devolvida, a princípio achamos que nos deparamos com uma repetição de sonho. Mas o final jocosamente mostra que estávamos errados. Na verdade a profissional tem aspirações mais altas que as do companheiro – imagina-se em uma situação muito superior à dele, rebaixado a seu chofer.
Assim, para entender essa peça publicitária, é necessário lembrar que ela está inserida em um contexto em que a mulher acabou assumindo um novo papel, muitas vezes mais ousado e até melhor que o do homem. Ou pelo menos em um contexto em que se criou um outro imaginário feminino. E para confirmar o que se está afirmando, basta imaginar o efeito que teria se a propaganda do Fusca fosse veiculada na época da propaganda do Fusion e se a propaganda do Fusion fosse veiculada na época da propaganda do Fusca.  
Por fim, com base nessas informações, você seria capaz de identificar e descrever o contexto histórico-social em que está inserida a propaganda abaixo?

sábado, 3 de março de 2012

Dissonância textual - um recurso positivo

Nos posts anteriores ficou suficentemente claro que, para se compreender um texto, é essencial que se entenda que seu sentido é obtido graças à ligação dos vários elementos que o compõem. Assim, não se pode dar atenção a um único ingrediente em detrimento do conjunto. Ainda assim, de acordo com o último post, um item sozinho pode, quando mal utilizado, inadvertidamente comprometer o significado de um texto ao permitir associações inesperadas e indesejadas.
Entretanto, a dissonância entre ingredientes textuais nem sempre é negativa. Na verdade, em alguns casos ela pode gerar resultados bastante positivos, ou pelo menos interessantes. É o que ocorre no vídeo apresentado acima. Nele, utilizou-se uma seleção de cenas do filme Mary Poppins (1964), que narra a história de uma família que tem a sua rotina de rigidez e frieza alterada graças à chegada de uma babá (a que dá nome à obra) cheia de magia e diversão. Trata-se, portanto, de uma melodiosa fantasia infantil. Mas a utilização de uma música de suspense desmancha toda essa leveza, dando a impressão de que se trata de uma película sombria e assustadora.
Procedimento semelhante está presente no trecho a seguir, do delicioso conto “Carmela”, de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), de Antônio de Alcântara Machado:
Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2º.
Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.
No excerto acima há um efeito humorístico muito fino e sutil. Para captá-lo, basta observar que se compôs um quadro que beira o extremo do clichê das narrativas românticas de amor: castelo imponente, ladeira íngreme, ginete fogoso, capacete prateado com plumas brancas, formosa donzela raptada e desmaiada com seus cabelos entregues ao vento. Reforça o espetáculo de lugares comuns a anteposição dos adjetivos (“imponente castelo”, “íngreme ladeira”, “apaixonado caçula”, “formosa donzela”), que cria um tom altissonante ou pomposo, ainda que um tanto forçado. Todo esse clima é engenhosamente quebrado com uma única palavra, que destoa radicalmente do contexto: “carambola”. Sua posição de destaque, no final do parágrafo e de toda a descrição, indica que não se trata de uma falha, mas de um efeito que foi buscado intencionalmente.
Em suma, o emprego da dissonância pode provocar efeitos bastante ricos e válidos em um texto. Você seria capaz de perceber como esse expediente é utilizado no vídeo abaixo, “Beautiful World” (1981), do grupo Devo?