quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Harry Potter e o seu valor na literatura


Vindo a público em 1997, Harry Potter e a Pedra Filosofal abriu caminho para uma série de estonteante sucesso que chegou a vender mais de um bilhão de livros, um feito digno de respeito. Entretanto, existe a ideia de que se deve desconfiar de tudo aquilo que provoca frenética movimentação ao seu redor, já que a turba costuma se orientar por critérios (se tais existem) desarrazoados. É fato. Mas a criação de J. K. Rowling merece uma análise mais serena e menos amarga, ou até menos despeitada, recalcada ou invejosa.
O primeiro aspecto que interessa quando se está diante de um texto literário é a sua linguagem, no que a obra em questão não fracassa. Há a utilização de um ritmo simples, fluente, que a torna cativante, ainda mais com a utilização engenhosa de neologismos, muito bem traduzidos na edição brasileira. Além disso, a informalidade que a narradora assume está no ponto certo, sem descambar para o desleixo e garantindo um tom de grata conversa, como se estivéssemos nos aconchegantes sofás de Grifinória, embalados por histórias carregadas do maravilhoso e que nos deslocam de nossa realidade de trouxas.
Nesse ponto, algumas considerações merecem ser observadas. Harold Bloom, valoroso cavaleiro em luta contra o processo de imbecilização de que vem sendo acometida nossa cultura nos últimos tempos, condenou Harry Potter por ser uma colcha de retalhos extremamente gastos, ou seja, uma colagem de metáforas tão esgarçadas que seriam clichês sem vida. Pode-se lembrar, todavia, que a obra sobre o pequeno bruxo é excelente no que se propõe, que é atender aos anseios de seu público juvenil. Não se deve procurar nela características de Machado de Assis, Clarice Lispector, James Joyce, Marcel Proust ou mesmo Lewis Carroll. Provavelmente Rowling não aspirava a isso quando planejou sua série, pois ninguém é obrigado a tal. Além disso, há quem diga que nada mais se criou desde a Idade Média, sendo toda nossa produção cultural repetição de arquétipos, de uma forma ou de outra. A autora inglesa tem seu mérito em saber lidar com esses retalhos (Fênix, pedra filosofal, elixir da longa vida, Pégasus, dragões, hipogrifos, unicórnios) e colá-los de uma maneira que emociona seus leitores, afinal, esse é um dos mais primitivos desejos da arte de contar histórias. Depois é que houve a preocupação com a manipulação de linguagem, a apresentação crítica da sociedade, a introdução de questões metafísicas. Na verdade, estas são tarefas modernas. E a palavra “modernidade” hoje vem carregada de um ranço doentio.
Fica então a impressão de que a grande qualidade de Harry Potter é proporcionar uma fuga para um passado, para uma inocência perdida. Todos os seus fãs, não importa a idade, seriam na verdade saudosistas. Pode até ser. E não é errado uma obra realizar isso. Mas há que se ter cuidado com o conceito de “inocência”.
Rowling não transformou sua obra em mais uma daquelas juvenis preocupadas com a assepsia temática. Na verdade, ela honrosamente respeitou seu público ao não subestimá-lo, ao não esconder a negatividade da vida. Mas não sobreviveu dela, ao contrário dos programas apelativos como Cidade Alerta ou Brasil Urgente. O foco dos seus romances está em aspectos positivos e, portanto, edificantes. Assim, há aspectos muito fortes, como o submundo do Beco Diagonal. Ou a venalidade de Gringotes. Ou a soturnidade dos comensais. Ou o ritual de magia negra que traz de volta à vida Voldemort. Ou o doloroso contato com a morte de Cedrico em O Cálice de Fogo. Ou questões mais constantes: a pobreza (como a da família Weasley) e o preconceito (contra os “sangue-ruim”). Se há uma fuga para um mundo mágico, nele não se está livre de temas pesados da existência humana.
Repita-se: talvez a inocência da obra esteja em apresentar valores edificantes, ainda mais num mundo niilista ou mesmo hedonista e alienado como o nosso. Os heróis da série não ignoram a malignidade que os cerca, mas aprendem a sobreviver levando em conta talento e esforço, amizade e lealdade e, mais importante, percebem que o eu interior é o que nos guia, indicando o certo ou errado. Essa é a verdadeira base do valioso senso ético. E por que não valorizar livros que conseguem mostrar isso de uma forma tão gostosa?
  
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quarta-feira, 21 de novembro de 2012

FUVEST - algumas considerações


No próximo domingo será realizada a prova da FUVEST, um dos vestibulares mais importantes do país. Aquele que vai prestá-la precisa entender que, pelo menos em Português, nos últimos anos essa avaliação tem-se mostrado sem sustos, artimanhas, mistérios ou segredos. Sua intenção não é descobrir filólogos, linguistas, gramáticos ou literatos, mas apenas selecionar quem tem competência linguística adequada para as diversas carreiras do ensino superior, não importa se de humanas, biológicas ou exatas.
Dessa forma, por exemplo, as questões de literatura não vão se concentrar em literatices sobre  quem escreveu tal livro ou qual o nome de tal período estético. O que se cobrará é o reconhecimento dos mecanismos de funcionamento do texto literário. Assim, pode-se indagar o que a repetição de um evento (consoante, rima, vocábulo, ação, o que quer que seja) tem a ver com a dinâmica da obra em análise.
Nesse ponto, há algo que ressaltar. Já que todo texto literário é um produto social, pode-se cobrar do vestibulando o reconhecimento da relação que um romance ou um poema tem com o seu momento histórico. Assim, o banditismo de Jão Fera em Til é um típico sinal de que a região em que ele se encontra, o interior de São Paulo, ainda não havia se civilizado por completo, abrindo caminho para a utilização desses recursos violentos para a manutenção de uma certa ordem.  Ou então, as plantações de Luís Galvão (cana e café) indicam processos econômicos a que o Brasil havia se dedicado. Até mesmo a posição de sua fazenda revela a maneira como essa região se povoou, concentrada inicialmente em atender a zona aurífera de Minas Gerais. Entretanto, não só de História se viverá. É possível fazer uma ponte com Geografia para entender que o tipo de solo que Alencar chama de rico e ferruginoso é nada mais do que a célebre terra roxa.
Além disso, o candidato deve estar preparado para questões que exigirão a comparação entre as nove obras da lista de livros. Assim, deverá captar, por exemplo, que a presença do comerciante italiano em Til e em O Cortiço revela flagrantes da composição de nossa população. Ou então que a escravidão justifica o comportamento cínico de Brás Cubas ou a desvalorização do trabalho rural como se vê em Jão Fera, de Til, e Jerônimo, de O Cortiço. Sem falar que deixa suas feridas em Memórias de um Sargento de Milícias e Sentimento do Mundo. Enfim, serão questões que funcionarão não apenas como verificação de leitura, mas principalmente de compreensão. Nesse ponto, é bastante válido reler os posts dO Magriço Cibernético dedicados a cada um desses livros (21 de janeiro, 24 de março, 29 de abril, 03 de junho, 17 de junho, 24 de junho, 12 de agosto, 16 de agosto, 02 de setembro, 09 de setembro, 26 de setembro, 03 de outubro, 07 de outubro, 17 de outubro e 28 de outubro).
Quanto às questões de interpretação de textos que não fazem parte da lista de obras da FUVEST, o que inclui os literários e os não-literários, o esquema será basicamente o mesmo: o candidato será instado a observar e identificar os mecanismos de funcionamento da linguagem. Assim, será cobrada não só a compreensão do significado de um texto, mas também a busca, por exemplo, de uma palavra que sintetize as ideias apresentadas. Ou então, de uma expressão que as repita em outras palavras. Ou ainda as manifestações dos diferentes níveis de linguagem, principalmente o formal e o coloquial, assim como a transferência de uma frase de um registro para outro. Mas o que se tem mostrado mais interessante é que muitas vezes essa prova exige que o candidato observe um fato apresentado no enunciado para, sem se preocupar em classificá-lo ou rotulá-lo, localizar uma alternativa em que haja uma frase como o mesmo mecanismo linguístico.
Quanto à Gramática, percebe-se que não há mais espaço para filigranas como a cobrança do tipo de sujeito ou oração, ou a identificação da diferença entre um complemento nominal e um adjunto adnominal, entre um predicado verbal e um predicado nominal. As questões têm-se mostrado mais inteligentes, na medida em que mais razoáveis, pois cobram o que é útil para qualquer profissional, não somente para os especialistas em língua. Assim, quando aparecem testes sobre regência, concordância, crase, nota-se que a resposta é obtida sem absurdos conhecimentos gramatiqueiros, mas com um pouco de raciocínio e intelecção textual. No mesmo campo estão questões que pedem para que o candidato indique o valor de uma palavra, principalmente o de um pronome. Alcança a resposta quem compreende o contexto em que ela está inserida. Ou seja, quem sabe ler.
Enfim, é nesse ponto que a FUVEST tem-se consagrado como um excelente exame. É uma prova que apenas verifica quem tem competência linguística. Essa habilidade será essencial para quem quiser estudar com eficiência na vida acadêmica. Qualquer que seja a carreira.

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domingo, 18 de novembro de 2012

A Propósito do Dia da Consciência Negra

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, O Magriço Cibernético resolve colocar em foco, por meio de mais uma prática de intelecção, considerações ligadas a essa comemoração, que não deve ser entendida como sinônimo de festejo, mas de evento que precisa ser lembrado em conjunto (co+memorar). Não se pode deixar de ter em mente a importância dessa etnia em nossa identidade cultural. Mas, mais importante, não se deve esquecer o quanto tal grupo foi vítima de injustiças, para que nem a sombra disso se repita.
O primeiro texto a ser analisado é a música “Strange Fruit”, na verdade poema que o norte-americano Lewis Allan (pseudônimo de Abel Meeropol) publicou em 1936, inspirado pelas fotos de linchamentos de negros que ocorriam principalmente no sul dos Estados Unidos pelos idos da década de 1930. Essa composição consagrou-se na voz de Billie Holiday em 1939, mas aqui é trazida na interpretação doída de Nina Simone:

Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

            Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

            Here is a fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop

O poema é marcado por imagens de sabor expressionista, pois se baseiam em elementos grotescos: sangue nas folhas e raízes, corpos negros balançando, olhos inchados, boca torcida, carne queimada. Mas o que o torna ainda mais chocante é a referência a elementos bucólicos que compõem o ambiente descrito, como a brisa do sul, a cena pastoril do sul galante, o doce e fresco perfume de magnólia. Cria-se então uma discrepância de elementos, instituidora de uma ironia amarga que denuncia a selvageria da estranha colheita da última estrofe a que havia se entregado o sul dos Estados Unidos, região nomeada insistentemente (vv. 1, 3, 5). 
Todavia, o mais discrepante e espantoso é que as fotos expostas no vídeo revelam pessoas posando como se se tratasse de uma obra benemérita, alheias à gravidade do que havia cometido. Algumas até serviram à época de cartão postal. Esse era o povo empreendedor, escolhido, abençoado, defensor da liberdade? 
O mesmo problema pode ser visto no retrato abaixo, de alguns anos depois:



Trata-se de uma imagem bastante emblemática. Nela, Dorothy Counts, uma garota de 15 anos, havia ganhado o direito de estudar em uma escola de brancos na Carolina do Norte. Vê-se uma multidão ensandecida achincalhando-a, processo que se prolongou por quadro dias, em que a jovem foi ignorada pelos professores, sofreu apedrejamento e cusparadas, tudo sob a orientação do Conselho dos Cidadãos Brancos, que não admitia que ela furasse a segregação racial. Por fim, por questão de segurança, seus pais decidiram que ela terminaria seu curso na Filadélfia. Mas o episódio serviu para abalar os Estados Unidos a ponto de alimentar a luta dos negros por seus direitos civis.
O que fica dos dois eventos é a ideia de que o homem, pretensamente racional, utiliza sua tendência a animal gregário para se mostrar um idiota, principalmente porque se mostra vítima fácil do comportamento de boiada conduzida. Vida de gado: povo marcado e povo feliz...
Há quem possa dizer, entretanto, que os problemas aqui arrolados não condizem com a realidade brasileira, famosa por sua “democracia racial”. Não se vai mencionar, entretanto, que no início do século XX negros eram proibidos de entrar em certas lojas de departamento da cidade de São Paulo. Não se vai mencionar, entretanto, que em 2012 uma criança etíope adotada por espanhóis foi expulsa de um restaurante paulistano por ter sido confundida com pedinte. Na verdade, o que acontece em nosso país é que a questão racial é confundida e camuflada com a econômica. Não é por acaso que em “Haiti”, de Caetano Veloso, a aliteração das oclusivas (/t/, /p/ e /b/) acaba dificultado a leitura dos versos – preto e pobre acabam se confundindo:

             (...) a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

Entretanto, não há como negar que houve evolução. Obama é presidente da nação mais poderosa do planeta. Joaquim Barbosa é um exemplo de sucesso ao mostrar que os afrodescendentes não se destacam apenas nas artes ou no futebol. Ainda assim, há muito ainda que caminhar. Ainda surgem frutos estranhos. Basta lembrar que o mesmo sul dos Estados Unidos apresentou uma rejeição monstruosa à reeleição do atual presidente. Além disso, é essa mesma região que está sofrendo para conseguir eliminar em plebiscito leis que ainda lidam com segregação e que na prática nem são mais aplicadas. Quanto ao Brasil, a charge a seguir, de Angeli, publicada na Folha de S. Paulo em 20 de junho de 2006, é magistral ao sintetizar toda a problemática tupiniquim:



 Nela, percebe-se a hipocrisia, fruto estranho da distância entre o discurso politizado – e politicamente correto – de respeito aos direitos humanos e a prática alienada e hedonista. Pensar em 20 de novembro apenas como um feriado, ou pior, fazer discurso sobre a consciência negra e permitir a perpetuação das injustiças que reforçam a segregação econômica, camufladora da étnica, é atualizar os linchamentos do início do século XX.
Enfim, é inegável que houve evolução (não é demais repetir), mas precisamos chegar ao ponto pregado por Morgan Freeman na entrevista abaixo, segundo o qual precisamos não mais sermos lembrados como negros ou brancos, como cristãos ou judeus, mas como pessoas, como seres humanos:




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quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Rappa e Drummond: dois exemplos de ruptura e continuidade histórica


Em vários momentos foi dito aqui nO Magriço Cibernético que o sentido de um texto é garantido pela conexão entre vários elementos. Sem essa interligação, aliás, o que se tem é nada menos do que um amontoado de ideias, impedindo que a coerência ocorra. Entretanto, é justamente essa falta aparente de nexo que dá sustentação ao clipe acima, “Súplica Cearense”, do Rappa (na verdade, uma composição de 1960, de autoria de Gordurinha, pseudônimo de Waldeck Artur de Macedo, e que já fora gravada por Luiz Gonzaga em 1984).
A primeira discrepância lógica que pode ser apontada está na relação entre a letra da canção e a animação que a ilustra. A cantiga faz referência ao sofrimento de um cearense diante da seca e da inclemente chuva que a substitui, justamente a mesma realidade exposta em Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Todavia, as imagens que são apresentadas encenam o conflito de Canudos, ocorrido no sertão baiano. Além disso, essa guerra, como o próprio vídeo mostra, teve seu desfecho em 1897, o que não condiz com o fato de o exército que combateu esses revoltosos surgir usando tanques, pois esses artefatos só chegaram a existir a partir da Primeira Guerra Mundial.
O que se pode inferir de todas essas incongruências? Algo bastante simples e interessante. A quebra da noção convencional de tempo e espaço acaba por construir outra lógica, outra significação, mais ampliada. Em outras palavras, serve para mostrar que os fatos exibidos não se restringem a um momento e a um local, já que são onipresentes. No caso em análise, o sofrimento do nordestino não se prende a um lugar ou a um momento. Ocorreu no século XIX, no XX e continua se manifestando no XXI.

         
            Esse mesmo expediente pode ser visto no poema “Tristeza do Império”, de Carlos Drummond de Andrade, presente no Sentimento do Mundo (1940), obra cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013:

Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristovão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e, sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de
                           [Copacabana, com rádio e telefone 
                                                         [automático.
           
            A primeira coisa observável nesse poema é que ele se inicia com um vocabulário que já não é mais usado (“colo”, “ebúrneo”, “donzelas”, “opulentas”), mas que é expresso em uma frase com andamento moderno, próximo do coloquial, o que destoa da noção tradicional de poesia. Essa forma é coerente com o conteúdo, principalmente quando se lê no final do texto que os conselheiros, membros da elite do Segundo Reinado do Brasil, alheios à guerra do Paraguai e ao sofrimento dos escravos, estão fruindo seu rapé e pensando na libertação dos instintos a se realizar em apartamentos em “arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático”, uma realidade impossível de ser profetizada por essas personagens. Na verdade, o que Drummond institui é uma quebra da fronteira temporal com a intenção de mostrar que o comportamento alienado e hedonista dos privilegiados é de longa data. Nesse ponto, “Tristeza do Império” acaba se tornando irmão de “Os Inocentes do Leblon”. A doença que acomete os privilegiados é atemporal, é onipresente. E quando o poeta rompe a barreira do tempo, acaba por destroçar o discurso de modernização que se espalhou em nossa sociedade no que tange aos costumes. A liberação sexual, como se percebe, não tem nada a ver com modernidade, já que as velhas injustiças sociais continuam imperando. Não há nada de novo, como se dizia no Eclesiastes.
Assim, a competência na análise de textos precisa levar em conta que a relação entre os elementos que constituem o objeto estudado pode ser estabelecida não só pela relação lógica entre os ingredientes que o constituem, mas também pela dissonância que se estabelece entre eles.   

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domingo, 11 de novembro de 2012

O Perfume: como diferentes conhecimentos ajudam na interpretação



       O filme O Perfume (2006), baseado no romance homônimo do alemão Patrick Süskind publicado em 1985, é um excelente e prazeroso exercício de captação dos diferentes níveis de uma narrativa literária. Quem assiste a ele, fica encantado, mesmo sem saber o que o torna tão especial, pois seu sentido sempre fica tão próximo e sempre acaba escorregando de nossas mãos. Prova de que a emoção estética dispensa compreensão. Mas nada impede que se tente deslindar o seu significado.
Para começar, é preciso lembrar que cinema (assim como romance) não é só a narrativa em si, ou seja, a própria história, a trama, as ações que são apresentadas. Dessa forma, a película em questão é mais do que a interessante biografia de Jean-Baptiste Grenouille, sujeito dotado de olfato apuradíssimo. Entram na composição dela outros ingredientes que a encorpam, como os ligados à Psicologia. Basta recordar que no começo da história, a mãe do protagonista, imaginando-o natimorto, joga-o entre as entranhas de peixe do mercado em que trabalha e no qual tivera o rápido trabalho de parto. Engano terrível, pois pouco depois a criança berra, lutando por sobrevivência. Sua geradora, acusada de tentativa de infanticídio, é condenada à morte.
Há nesse ponto algo muito valioso. A ciência da psique diz que o momento em que a criança nasce e é colocada diante da mãe determina toda a sua afetividade e socialização. Grenouille não tivera esse instante crucial, o que gerou sua psicopatia, sua incapacidade de relação com o próximo. É por isso que todos os que de alguma forma tiveram contato com ele e serviram de escada, conscientemente ou não, nos seus objetivos encontraram um destino trágico.


       O interessante é que essa inapetência para o contato com o outro tem aspectos paralelos, mas contraditórios entre si. O primeiro é a já mencionada habilidade assombrosa do protagonista de captar cheiros e memorizá-los. A outra é a sua total ausência de aroma, o que o faz muitas vezes passar despercebido. E quando se lembra que é dito no filme que “a alma dos seres é seu odor” (“the soul of beings is their scent”), nota-se que essa personagem acaba assumindo uma posição assustadora e injusta de captar a essência alheia sem que o recíproco se manifeste.
Entretanto, O Perfume, como uma boa narrativa, não se limita a um único tom. Além do tempero psicológico, também vai se alimentar do filosófico. No instante em que Grenouille detecta nas ruas da escura e suja Paris o odor sublime de uma virgem, acaba inebriado – e nem se importa com o fato de, para degustá-lo, acabar assassinando a coitada.  O que vale é que sua vida miserável deixa de ser sem sentido, pois agora ganhou um objetivo – o desenvolvimento da capacidade de produzir um perfume que eternize o ideal de perfeição presente na fragrância daquela jovem. É aí que a história de fato começa. Mas o mais importante, agora, é notar que se tocou na essência humana, que consiste na tentativa de alcançar a perfeição perdida, “a luz em um país perdido” (como dizia Camilo Pessanha). Tal tanto pode ser o platônico mundo das ideias, o paraíso cristão ou nada mais do que qualquer representação do conforto do útero  onde fomos expulsos.


       Esses dois campos, somados, trazem um riqueza extraordinária para o filme, pois fazem com que se perceba o exotismo do protagonista, que, incapaz de alteridade, quer criar o perfume que o faça ser amado. Para alcançar a sublimidade, torna-se um serial killer. Sem falar que, sem cheiro, sente o odor de qualquer um. E o final que lhe é destinado é a fusão dessas oposições (mas não se vai falar sobre ele para não se praticar spoiler).
Todas essas contradições parecem fazer sentido quando se convoca a ajuda de mais uma ciência, a História. É ela que nos faz notar que a narrativa se passa às vésperas da Revolução Francesa, quando se gerou a sociedade atual. E não é à toa que o protagonista se chama Jean-Baptiste, em português João Batista, referência àquele que, para o cristianismo, tornou-se o anunciador. Então a história de O Perfume é um pouco a de nosso nascimento. É por isso que o filme começa com fedor, como o mercado de peixe em que nasceu a personagem principal, passa pelo ambiente da manipulação das fragrâncias até terminar no seio das classes sofisticadas. Está havendo, portanto, um processo de higienização, que deu no nosso mundo racional, claro, antisséptico, que teve como a mais nefasta consequência a febre do politicamente correto. Que muitas vezes é só perfumaria.
Qual é a moral então? Podem-se levantar duas hipóteses, que não proíbem a existência de nenhuma outra. A primeira é que a criação de um perfume perfeito para ser amado abre caminho para um totalitarismo em que a alma das pessoas possa ser controlada. É o que se vê na fortíssima cena em que Grenouille coloca em si apenas uma gota do finalmente alcançado olor perfeito. A segunda é que acabamos nos tornando uma sociedade ainda mais hipócrita, pois que utilizamos toda uma combinação de técnicas, de racionalizações, para disfarçar nossa podridão, o fedentina do barro de que é feito o homem.

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quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O ENEM e um jornalismo como terra de ninguém


A questão 121 da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do último ENEM (as numerações deste post referem-se ao caderno amarelo) apresenta um poema de Cecília Meireles cujos dois primeiros versos são: “Ai, palavras, ai palavras, / que estranha potência a vossa!” De fato, é uma estranha potência permitir a articulação da linguagem de uma maneira tão bem feita e bonita para desvirtuar a proposta primordial e sagrada da comunicação, que é revelar o mundo. Infelizmente, elas também podem ser empregadas para distorcer a noção sobre ele. Deve-se acreditar que esse tipo de erro não é fruto de maldade, mas de uma falha de conhecimento. O que é triste, pois vem de quem é da Imprensa, que se diz a luz, pois que formadora de opinião. Ai, palavras, que estranha potência a vossa!
Essas considerações iniciais se devem ao artigo de Reinaldo Azevedo publicado no site da Veja (“O tema estúpido da redação do Enem, as mentiras do examinador e as duas exigências absurdas feitas aos estudantes. Ou: Intelectualmente falando, prova de redação deveria ser impugnada!”). A começar, ele diz que não viu “no detalhe” a prova do ENEM, o que o eximirá de comentá-la. Mas já adianta que houve divergências sobre as respostas que os professores de cursinho deram sobre ela, o que considera  costumeiro, já que interpretação é “terra de ninguém”. Aqui já ocorrem alguns problemas: como ele emite um comentário baseado no que os outros falam, sem nem mesmo ter visto quais são esses defeitos apontados? E de que questões ele está falando? Que professores são esses? Que cursinhos são esses? Para piorar, os dois ou três cursinhos sérios, no que tange à prova de Linguagens, não apresentaram discordância entre seu gabarito e o do INEP. Falta rigor de raciocínio no que o articulista expõe.
Deixando-se de lado essa falta de apuro na exposição de ideias, outro problema grave se impõe: as questões de análise de texto são “terra de ninguém”? Trata-se de uma afirmação perigosa, pois não tem base na realidade e pode causar um estrago monstruoso, pois está em “um dos blogs (sic) mais acessados do Brasil”. A colocação de uma afirmação tão inacurada é ruim, pois depõe contra o autor da página ou desqualifica o usuário que a frequenta.
Mas afinal, de onde saiu esse veredito de que análise de textos é uma “terra de ninguém”? O interessante é que ela é um indicativo de que o jornalista não viu a prova e, pior, não tem noção do que se busca nesse tipo de exame. O que é uma falha, pois, como jornalista, ele deveria saber que a verdade tem que ser buscada onde os fatos estão, observando-os, investigando-os, analisando-os, e não juntando frases de efeito depreciativas, como quando chama a proposta de Redação de “macumbaria multiculturalista mal digerida”.
Não, análise de texto não é “terra de ninguém”. Quem acompanhou os vários posts dO Magriço Cibernético sabe que toda interpretação se baseia em elementos verificáveis. E qual a intenção de exigir essa habilidade em um exame? É avaliar e selecionar os que têm competência linguística. Apenas isso. Não se está querendo que o jovem se mostre um gramático, um linguista ou um literato.
Essas expectativas podem ser facilmente encontradas na prova de Linguagens do último ENEM. Basta olhar para a questão 96, em que se percebe que a expressão “rede social”, tão na moda, é a chave para o humor da charge, já que acabou associada também ao sufoco em que a personagem se encontra, dividindo sua rede de dormir com tantas pessoas. Ou então a 112, em que um cartaz da UFG aproveita um quadro de Dali para mostrar que os relógios que se derretem são referência à liquidez do tempo, ordenando que se respeitem os prazos de utilização de livros da biblioteca. Ou então a 120, em que a caracterização da linguagem radiofônica é exemplificada na letra da canção “A dois passos do Paraíso”, da banda Blitz. Ou a 114, em que o ideal renascentista de serenidade feminina pode ser visto em duas plataformas estéticas diferentes, o poema de Camões e a pintura de Rafael Sanzio. Ou a 126, bem mais ousada, cujo enunciado orienta a interpretação das alegorias que representam o contexto histórico do Brasil de 1972 como símbolos da violência instituída, como se vê em “morcegos de pesadas olheiras” ou “porco belicoso (...) que sangra e ri”. Ou a dificílima 111 (toda prova precisa delas), em que a expressão “muito peixe foi embrulhado pelas folhas de jornal” constitui uma engenhosa metáfora da passagem do tempo – páginas de jornal sucessivamente se desatualizando e sucessivamente se transformando em embrulho.
A extensão do parágrafo anterior, que pincelou exemplos de boas questões, corrobora a eficiência da prova em discussão. Mas não se está negando que há testes falhos, como o 124. A simples observação da capa do álbum dos Mutantes não possibilita que o aluno chegue à conclusão esperada. Ou a questão 122, que isola o poema de Manuel de Barros de seu contexto, atrapalhando sua compreensão a tal ponto que não se vislumbra a resposta. Ou então a 105, em que a frase “Lugar de mulher também é na oficina” possui dois objetivos, um menor, que é estabelecer a comparação com o chavão “Lugar de mulher é na cozinha” (alternativa C), e um maior, mais geral, que é o de demonstrar a mudança da situação feminina na sociedade contemporânea (alternativa A, que de fato é a mais correta).
É certo que esses erros impedem que o ENEM seja uma avaliação excelente como há saudosos tempos, quando era menos pretensiosa e não esse gigante de hoje. Priscas eras em que dividia o pódio com os vestibulares da FUVEST e da UNICAMP. Ainda assim, é um bom exame, que merece respeito. Detalhe: está-se falando da prova em si. Não se está falando de sua logística, de metodologia de pontuação da redação, do SISU e outros elementos que lhe são externos.
Mas tudo o que foi discutido até aqui são coisas que o jornalista não viu, porque não analisou a prova. Como ele não viu, não viu. O pior são as coisas que ele viu, mas não viu. Fala-se de suas opiniões sobre a Redação, que ele diz ter analisado.
Reinaldo Azevedo não percebeu que a proposta de dissertação era bastante pertinente. Não entendeu que essa prova não é só tema. É principalmente uma maneira de avaliar como ideias são manipuladas, articuladas. Nesse ponto, é bobagem afirmar que as notas serão mais baixas porque o assunto surpreendeu, já que se esperava algo sobre meio ambiente ou política. Ou a Copa de 2014, como declarou uma jovem baiana. Aliás, o inesperado só veio tornar a prova mais justa, pois fez com que todos montassem na hora suas argumentações. O painel de textos servia, pois, para dar insumos à redação, não para cerceá-la, doutriná-la.
Além disso, o tema não era despropositado. É ainda discutido. Basta se mostrar antenado. Não só haitianos – poucos, é verdade – vieram para cá e foram assunto na mídia. Há também bolivianos, esses bastante comentados recentemente, pois se noticiaram até as condições a que estavam submetidos para abastecerem as grandes redes de magazines do país. E agora, com a crise europeia, fala-se dos portugueses e espanhóis que estão vindo para cá. Há, sim, um movimento imigratório e está no século XXI. 
Outro erro do jornalista – não há correção ideológica. É importante repetir – o que interessa à banca é ver como o candidato estrutura suas ideias diante da proposta que lhe foi apresentada. Caberia muito bem, portanto, a defesa da imigração como também a sua condenação, lembrando, por exemplo, que estaria trazendo uma mão de obra que viria concorrer com a formada aqui. O mais importante, enfim, é como essa informações seriam manipuladas, tudo em respeito aos direitos humanos. O que é plausível.
Em vista de tudo isso, o que Reinaldo Azevedo precisa entender é que o bom serviço de jornalista, como formador de opinião, não consiste em sobreviver à custa de atirar pedras. É um gesto que atrai a atenção, aumenta audiência, que dá ibope. Mas é um desserviço. O bom serviço consiste em apresentar fundamentação lógica. Em não distorcer. Em ser útil. 

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domingo, 4 de novembro de 2012

Amadeus: Salieri x Mozart, Sucesso x Qualidade




Apesar de ter estreado em 1984, Amadeus, dirigido por Milos Forman, é uma das melhores produções que Hollywood já apresentou. Mas em que está seu valor? Há quem ache suficiente para responder tal pergunta o fato de esse filme ter recebido oito Oscar. Entretanto, não se deve imaginar que é óbvia a relação entre essa premiação e a qualidade de uma obra cinematográfica. Basta olhar para dois exemplos da época: Laços de Ternura (1983) obteve cinco estatuetas e Carruagens de Fogo (1981), quatro. Hoje entraram para a lista dos esquecíveis. Ou então, é suficiente observar algo mais recente: o superficial Titanic (1997) chegou a arrebatar onze, o que é a prova mais gritante de que o juízo da Academia nem sempre é confiável, pois profundidade na narrativa de James Cameron foi legada só ao navio.
Enfim, o que há de bom nessa peça de Milos Forman? Não se vai mencionar a espirituosidade dos diálogos, tampouco a alta casta da interpretação, principalmente de F. Murray Abraham, que consegue atuar apenas com o olhar. Tudo isso já seria suficiente como incentivo para se degustar essa obra-prima. Vai-se caçar aqui outro elemento, a tornar a fita ímpar. Mas, qual? 
Pode-se então pensar que a força de Amadeus está na primorosíssima trilha sonora, mas O Mestre da Música (1988) e Minha Amada Imortal (1994) também são caprichados nesse aspecto e não atingiram o mesmo feito daquele filme. Para complicar mais nossas reflexões, o primeiro e o terceiro filme são adaptações livres da biografias de grandes músicos, respectivamente Mozart e Beethoven. E, segundo alguns especialistas, este é superior àquele. Ainda assim, a maior relevância não foi suficiente para colocar o filme do pré-romântico acima do do clássico.
Na verdade, a pujança da narrativa de Forman está na construção. Há um capricho com figurino, cenografia, iluminação (os ambientes fechados contaram apenas com velas), tudo para manter fidelidade à época. Até a música foi gravada respeitando as partituras de Mozart, e tudo executado pela Academy of St. Martin in the Fields, sob a regência de Neville Mariner. O cuidado chegou ao ponto de parte da história ser gravada nas ruas de Praga, que se mantivera semelhante à Viena do século XVIII. Até as cenas de Don Giovanni foram tomadas no teatro em que essa ópera fora encenada no momento de sua estreia.
Entretanto, é em outro plano de construção que Amadeus chama a atenção, sendo um excelente exemplo de metalinguagem. Célebre é a cena em que o invejoso Salieri (interpretado pelo já citado Abraham) descreve a Serenata K 361, “Gran Partita”, de Mozart:


Outro exemplo maravilhoso é a confecção do “Confutatis Maledictis”, do Réquiem K. 626:


Nesse ponto, o filme é uma aula introdutória à música, mostrando-nos do que essa arte é feita e como é criada. Ela é como que materializada à nossa frente – e quem, diante dessas cenas, não sente vontade de aprender essas técnicas para também passar a compor?
Entretanto, a metalinguagem do filme se mostra mais poderosa quando voltada para a produção artística em geral. Para tanto, basta notar a lição que se passa no embate entre Salieri e Mozart. Nele aprendemos que talento e qualidade estética têm um quê de gratuidade, não dependendo de vontade ou de intenções nobres (pátria, religião) ou venais (bilheteria, fama). Vemos também que nem sempre os premiados são os melhores: Salieri, cheio de medalhas, viu sua música perecer e a do menosprezado Mozart sobreviver. É o que nos faz levantar a pergunta: que critério levar em conta para julgar a Arte? A opinião dos especialistas? A movimentação do mercado? O gosto do público? Os vaticínios da crítica? O índice de premiações? O apego às regras? O conceito dos próprios artistas?
Todas essas reflexões ainda são bastante atuais, o que faz com que, passados 28 anos, Amadeus seja uma obra ainda validade, atemporal. Um clássico. É, portanto, vital apreciá-lo em tê-lo em nosso repertório cultural.


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