domingo, 27 de outubro de 2013

Spaceballs, Star Wars, 2001 e Prometeus: os mecanismos da paródia

Há muito se falou, e se falou muito, que texto é feito da ligação entre os elementos que o compõem. Sem isso, não se estabelece sentido. Mas existe um tipo especial de construção em que o significado só se faz pelo contato com outro texto, imitando-o e ao mesmo tempo alterando o seu tom original, o que no fim muitas vezes acaba provocando um efeito de humor. Trata-se da paródia.
No vídeo acima, observamos um exemplo desse artefato linguístico. Trata-se da cena inicial de Spaceballs (1987), do célebre diretor cômico Mel Brooks. Acompanhamos longos e quase intermináveis 1min43s em que uma gigantesca nave espacial entra em cena, acompanhada de uma música e sonoplastia que reforçam um clima de titanismo. No começo a imitação é tão boa que nos sentimos confortáveis, pois nos vemos diante de um gênero ao qual já estamos familiarizados. Os filmes de ficção científica costumam apresentar essas entradas grandiosas. A associação imediata que se estabelece é com o início do Episódio IV de Star Wars, Uma Nova Esperança (1977), clássico dirigido por George Lucas:


 Vemos no vídeo acima os mesmo elementos de Spaceballs: a amplidão do espaço, a música de tonalidade épica e a entrada grandiosa de uma nave, no caso um destroier imperial comandado pelo vilão Darth Vader, que está perseguindo a nave diplomática da Princesa Leia Organa. Trata-se de uma cena que dizem que imprimiu uma maneira nova de fazer cinema: no lugar dos créditos que vão sendo mostrados enquanto a história é lentamente apresentada, já se é jogado na tensão de uma caçada barulhenta. Filmes nunca mais seriam os mesmos a partir de então...
Entretanto, há ingredientes em Star Wars que o próprio George Lucas confessou ter buscado em outra fonte, um filme que colocou a ficção científica em um novo patamar, tirando-a da circunscrição dos filmes B. Trata-se da obra-prima de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisséia no Espaço (1968).  Basta observar o vídeo abaixo e notar a filiação a que o épico de Lucas está filiado:

  
Vemos os mesmos fatores dos dois vídeos anteriores: a amplidão do espaço, a entrada magnânima de uma nave e as tomadas lentas e gigantescas, que deveriam ser muito mais estonteantes durante a estreia, em 1968. Mas há algo que Spaceballs não capturou, que é o cerne da ficção científica, que fez muitos críticos aconselharem trocar o nome desse gênero para “ficção especulativa”. Esse elemento dissonante é anunciado pela música, que tem um impacto diferente do dos outros dois filmes. O Adagio do armênio Aram Khachaturian (1903-1978) impõe à cena não um tom de grandiosidade, mas de melancolia. Estaria Kubrick mostrando a condição humana como entediante ou desencantada? Reforçaria essa tese o cotidiano da nave: um astronauta exercitando-se enquanto cuida do funcionamento do equipamento e de outros astronautas, que estão em hibernação (vemos suas câmaras na cena em questão). Faz até lembrar o androide David (interpretado por Michael Fassbender) no recente Prometeus (2012), dirigido por Ridley Scott, outro filme que produz um incômodo existencial.
O modelo está então estabelecido: a ficção científica legítima é um gênero que, por meio de uma narrativa, possibilita a especulação sobre questões vitais da condição humana. É o que vemos em 2001 – Uma Odisseia no Espaço, em Prometeus e um pouco em Star Wars. Mas Spaceballs não é uma cópia fiel desses moldes, por isso seu objetivo não é possibilitar reflexões sobre a existência. Como paródia, sua intenção é alterar, distorcer – e, a partir daí, gerar humor. Tal fica escancarado pela frase “We brake for nobody” (“Não brecamos para ninguém”), vinda do nosso cotidiano e que não condiz com a realidade de uma viagem interestelar. Mas a comédia já estava garantida pela extensão praticamente infinita da nave.  E, como já deve ter ficado claro por tudo o que foi discutido neste post, a compreensão desse fenômeno linguístico só é possível pelo conhecimento do gênero a que está ligado. Assim, a paródia só funciona intra e intertextualmente.

Resumos, análises e comparações.
Para comprar, clique aqui.

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

ENEM: algumas orientações


No próximo final de semana ocorre mais uma edição do ENEM, prova que, apesar dos tropeços dos últimos tempos, conseguiu ganhar importância no universo dos vestibulandos.  Infelizmente, de um valioso termômetro do nível de ensino do País, transformou-se em um gigantesco vestibular, além de ferramenta de marketing de inúmeras utilidades. Entretanto, é mais útil discutir o que o examinando precisa ter em mente neste domingo na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
O ENEM é uma prova que avalia competências e habilidades (o que não significa que não tenha vez por um outra um lado conteudista). Assim, o que o candidato precisa demonstrar é sua capacidade de leitura e interpretação de diferentes tipos de texto, a matéria-prima da prova. Dessa forma, é importante reconhecer e entender diferentes modalidades textuais e captar como elas funcionam socialmente.  Assim, deve-se entender, por exemplo, que um cartaz apresenta concisão e ligação entre imagem e código verbal em nome da comunicação imediata, ou que um editorial apresenta elementos argumentativos, que uma propaganda tem preocupação em fixar a mensagem na mente no leitor.
Além disso, o candidato deve saber relacionar diversas espécies de texto, verbais ou imagéticos, buscando não apenas semelhanças, mas também diferenças. Ou então reconhecer neles quais são os objetivos do seu autor e a que público se dirige. Num romance de José de Alencar, por exemplo, a descrição idealizada pode servir para revelar que o escritor ou queria sofisticar o seu leitor, ou tinha em mente que quem degustava sua obra era preocupado com ostentação de luxo. Por fim, deve-se também detectar que estratégias um texto possui para influenciar o seu receptor. Basta lembrar que é comum propagandas de cerveja sempre apresentarem gente feliz degustando o produto, dando a entender que se trataria de um vital elixir da bem-aventurança.
No fundo, o que o candidato vai ter de captar são os mecanismos de funcionamento de um texto, perceber que palavras servem para conectar ou retomar ideias, quais termos têm o dom de resumir ou simbolizar pensamentos ou conjunto de valores. Assim, é de vital importância saber detectar a função da linguagem predominante - quando em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador confessa no primeiro capítulo que por um bom tempo hesitou se começava sua biografia pelo nascimento ou pela morte, ele fez com que a narrativa discorresse sobre ela mesma, o que configura a função metalinguística. Ou então notar como a linguagem pode se usada     para fazer com que o leitor preste atenção à sua construção, configurando a função poética, muito bem vista, por exemplo, no largo emprego de proparoxítonas em "Balada do Mangue", de Vinicius de Moraes, servindo para representar a situação anormal e canhestra de a feminilidade ser usada para prostituição. Além disso, o aluno pode ser instigado a reconhecer a capacidade que os textos têm de preservar nossa identidade e nosso patrimônio cultural. É o que se vê, por exemplo, no poema "Não Sei Dançar", de Manuel Bandeira, ou no romance Amar, Verbo Intransitivo, de Mário Andrade, em que se apresenta o corso: em ambos descreve-se como se festejava o Carnaval em tempos passados, no salão ou no corso.


Quadro de Portinari retratando a zona de prostituição do Mangue no Rio de Janeiro.

Ainda nesse escopo, quem vai prestar ENEM precisa levar em consideração que a língua é um instrumento social e, portanto, suscetível a variações ligadas ao contexto em que é utilizada. Logo, não existe um padrão único, mas vários, que são os níveis de linguagem, todos legítimos, cabendo apenas observar em que situações são adequados. Deve-se então aceitar que a publicidade, entre tantos outros gêneros, utiliza linguagem coloquial para garantir maior alcance à sua mensagem. O que não significa que o padrão culto perdeu sua utilidade: há momentos em que ele é vital, como na documentação científica ou na redação de regulamentos.
Com relação ao corpo, não se deve esquecer que ele é capaz de carregar e transmitir significados, promovendo a criação de identidade, a integração social e a satisfação de necessidades cotidianas. Quando se dança, por exemplo, pode haver uma preocupação em seduzir, divertir, assim como quando se pratica esporte pode estar-se buscando conhecer pessoas ou mesmo competir e garantir a primazia dentro de um grupo social.
O ENEM cobra também a análise da arte em suas múltiplas manifestações, todas  legítimas, não importando se é um quadro de Cézanne, um concerto de Bach, um grafite nos muros de São Paulo ou o funk erotizado e marginal dos morros do Rio de Janeiro ou de ostentação da periferia de São Paulo. Seguindo essa linha, é vital entender que o conceito de beleza, essencial para a manifestação artística, não é universal, pois é um fenômeno cultural e, portanto, relativo: tanto é bela uma top model como Gisele Bündchen quanto uma miss plus size ou mesmo uma mulher de pescoço de girafa da Tailândia.


Mulher com pescoço de girafa da Tailândia.

Dentro do campo artístico, atenção especial deve ser dada à literatura. É importante perceber que esse tipo de produção está sempre inserido em seu momento e por isso revela características do seu contexto histórico, social e político. Assim, deve-se lembrar, por exemplo, que o Romantismo, surgido 14 anos após a independência do Brasil, acaba naturalmente expressando ideais nacionalistas. Ou que o Primeiro Tempo Modernista, surgido numa época em que a industrialização de São Paulo já estava se mostrando marcante, acabaria tendo tendências futuristas. Mas é importante notar dentro dos textos literários quais concepções de sua função ou do processo de construção eles apresentam: um romântico acreditaria que sua arte é essencialmente emoção e, se a obra conseguiu tocar o coração do leitor, já cumpriu sua função estética, sem que haja preocupação com a forma, o que é o oposto da visão parnasiana, que põe em primeiro plano o artesanato da palavra, ou do Realismo, que privilegia a crítica social. Além disso, é necessário lembrar que certos temas não se prendem a uma escola literária: a valorização da cultura popular, por exemplo, pode ser vista no Romantismo e no Modernismo, assim como o endeusamento da mulher está presente no Trovadorismo, no Classicismo, no Romantismo e no Modernismo de Vinicius de Moraes.
Por fim, o candidato precisa estar antenado às novas tecnologias, sabendo identificá-las, além de mostrar-se capaz de entender seu funcionamento e o impacto social que elas provocam na comunicação e na difusão de conhecimento. De fato, a internet tem servido para que ideias circulassem de maneira espantosa, não apenas nas redes sociais, em que pessoas trocam informações, opiniões e conhecimento, mas também por meio de comunicadores instantâneos (síncronos) ou por e-mail e fóruns (assíncronos). Basta lembrar como as manifestações de rua do semestre passado foram alimentadas pelo Twitter e Facebook. Ou então como o contato com arte e entretenimento ganhou novas dimensões, pois a qualquer hora é possível ver um programa de 2013 ou de 1969 pelo Youtube ou Netflix. Livros podem ser lidos em pdf, músicas ouvidas em mp3, o que faz a produção intelectual alcançar um nível antes imaginável, ao mesmo tempo em que questões como direitos autorais passam a ser repensadas.
Em suma, a proposta do ENEM, apesar dos tropeços que o arranharam, é muito bem intencionada: avaliar o aluno dotado de competência linguística, aquela que será, pois, um profissional e um cidadão eficiente. Resta então aO Magriço Cibernético desejar que seus leitores tenham um excelente desempenho neste final de semana. Boa prova a todos!