Uma dos conceitos mais antigos associados
à arte é o de que ela é mimesis, ou
seja, cópia da realidade. Daí vem a consagrada ideia de que a arte imita a
vida. Seja lá como se dê esse processo. No entanto, algumas obras se tornam tão
famosas que acabam abrindo caminho inverso, em que a vida imita a arte. Basta
lembrar que em Os sofrimentos do jovem
Werther (1774), de Goethe, o protagonista põe fim à própria existência, o
que inspirou a maior onda de suicídio de que se tem notícia. No entanto, nos
últimos tempos, esses dois conceitos estéticos parecem que não se têm mostrado
úteis.
Duas obras cinematográficas despejaram no
imaginário do grande público elementos que, mesmo produzidos pela fantasia,
eram baseados na realidade. A primeira delas é Star Wars. Vimos nela como Palpatine ascende aproveitando-se de que
o governo do chanceler Valorum estava minado por casos de corrupção (Episódio
I). Ganha mais poder ao criar um inimigo à estabilidade da nação (Episódio II),
por fim tornando-se imperador, aclamado pelo Senado da República (Episódio
III). Valiosa é a declaração da senadora Amidala: "Então é assim que a
liberdade morre: com um estrondoso aplauso". No fim, esse congresso será
dissolvido no Episódio IV: os manipulados, não mais úteis, são descartados em
um contexto em que cidadania não tem mais valor.
Arte imita a vida. Inúmeros são os
exemplos da História – desde a Roma antiga até a Segunda Guerra Mundial – em
que alguém subiu ao poder com a mesma estratégia e com o mesmo discurso: em
nome de uma sociedade melhor. Mas não é preciso buscar tão longe um caso que
comprove esse fato. Sentimos isso na pele aqui no Brasil.
Vida imita a arte. Em nome de uma sociedade melhor, abriram-se as portas do
inferno em 2014 e produziu-se um terrorismo eleitoral por todos os lados. Não
se discutiam programas de governo, mas atirava-se coquetel molotov por toda
parte: candidato A vai acabar com bolsa família, candidato B vai dar o golpe
comunista, candidato C vai ser governado por um banco... O resultado das ações
desses inocentes (?) úteis (?) que se espalharam pelas redes sociais: dividir o
país entre petralhas e coxinhas, ou, na versão mais atualizada, entre
mortadelas e coxinhas. Política confundida com torcida de futebol. Qualquer um
que tivesse ganhado, não conseguiria unificar o país.
No meio dessa desordem de uma democracia não amadurecida, forças
insidiosas dos dois lados agiram. Em nome de uma sociedade melhor. E com a
garantia da lei. Prova disso é que o processo de impeachment foi
inquestionavelmente legal. Mas o circo que foi a sua votação provou que o fato
era só pretexto.
Arte imita a vida. Outra obra conseguiu
despejar elementos no imaginário das massas: a saga Harry Potter. Uma imprensa estrábica havia tornado inimigos
públicos justamente quem lutava pelo bem: Harry Potter e Professor Dumbledore.
O primeiro foi obrigado a se ver em ostracismo. O segundo, a ser afastado
graças a um regulamento que ele próprio criara. Lei mais uma vez servia de
pretexto. Nada mais útil para a instauração de planos insidiosos. Em nome de
uma sociedade melhor, Professora Dolores Umbridge impõe uma reforma educacional
que não prepara para a vida – adestra. Dementadores têm liberdade para agir.
Inúmeros são os exemplos históricos que comprovam que a ascensão do totalitarismo,
de direita ou de esquerda, dá-se dessa forma.
Vida imita a arte. Vivemos tempos sombrios
– frase do ministro da magia em Harry
Potter. Em nome de uma sociedade melhor, a assembleia de Alagoas proíbe que
professores expressem opiniões em sala de aula, esquecendo que a formação
educacional se dá por meio do contato com pluralidade de ideias. Em nome de uma
sociedade melhor, elogia-se a tortura, assim como a cusparada. Em nome de uma
sociedade melhor, um criacionista assume um ministério responsável pela
ciência. Em nome de uma sociedade melhor, uma nuvem conservadora paira sobre um
ministério atuante em muitas conquistas sociais, o da educação. Em nome de uma
sociedade melhor, aceita-se, relativiza-se, ou partidariza-se a corrupção.
As perspectivas não são boas. A arte nos
mostra como é a vida e continuamos caindo em erro. Mas como explicar a cegueira
ou a visão seletiva que nos toma? Como sair de uma conjuntura que teoricamente
é legal e seguiu os trâmites democráticos, pois seus atores foram legitimamente
eleitos por nós mesmos? Como aceitar que as palavras de Gregório de Matos, do
século XVI, ainda valham hoje: “Neste mundo é mais rico o que mais rapa: “Quem
mais limpo se faz, tem mais carepa [caspa] / Com sua língua, ao nobre o vil
decepa: / (,,,) Quem menos falar pode, mais increpa: / (...) A flor baixa se
inculca por tulipa”. Vida imita a arte. Arte imita a vida. Como dizia o Velho
do Restelo, comentando a situação humana: "Mísera sorte! Estranha
condição!"