domingo, 15 de maio de 2016

Arte imita a vida, vida imita a arte: hoje, qual a utilidade disso?


     Uma dos conceitos mais antigos associados à arte é o de que ela é mimesis, ou seja, cópia da realidade. Daí vem a consagrada ideia de que a arte imita a vida. Seja lá como se dê esse processo. No entanto, algumas obras se tornam tão famosas que acabam abrindo caminho inverso, em que a vida imita a arte. Basta lembrar que em Os sofrimentos do jovem Werther (1774), de Goethe, o protagonista põe fim à própria existência, o que inspirou a maior onda de suicídio de que se tem notícia. No entanto, nos últimos tempos, esses dois conceitos estéticos parecem que não se têm mostrado úteis.
     Duas obras cinematográficas despejaram no imaginário do grande público elementos que, mesmo produzidos pela fantasia, eram baseados na realidade. A primeira delas é Star Wars. Vimos nela como Palpatine ascende aproveitando-se de que o governo do chanceler Valorum estava minado por casos de corrupção (Episódio I). Ganha mais poder ao criar um inimigo à estabilidade da nação (Episódio II), por fim tornando-se imperador, aclamado pelo Senado da República (Episódio III). Valiosa é a declaração da senadora Amidala: "Então é assim que a liberdade morre: com um estrondoso aplauso". No fim, esse congresso será dissolvido no Episódio IV: os manipulados, não mais úteis, são descartados em um contexto em que cidadania não tem mais valor. 



     Arte imita a vida. Inúmeros são os exemplos da História – desde a Roma antiga até a Segunda Guerra Mundial – em que alguém subiu ao poder com a mesma estratégia e com o mesmo discurso: em nome de uma sociedade melhor. Mas não é preciso buscar tão longe um caso que comprove esse fato. Sentimos isso na pele aqui no Brasil. 
     Vida imita a arte. Em nome de uma sociedade melhor, abriram-se as portas do inferno em 2014 e produziu-se um terrorismo eleitoral por todos os lados. Não se discutiam programas de governo, mas atirava-se coquetel molotov por toda parte: candidato A vai acabar com bolsa família, candidato B vai dar o golpe comunista, candidato C vai ser governado por um banco... O resultado das ações desses inocentes (?) úteis (?) que se espalharam pelas redes sociais: dividir o país entre petralhas e coxinhas, ou, na versão mais atualizada, entre mortadelas e coxinhas. Política confundida com torcida de futebol. Qualquer um que tivesse ganhado, não conseguiria unificar o país.



     No meio dessa desordem de uma democracia não amadurecida, forças insidiosas dos dois lados agiram. Em nome de uma sociedade melhor. E com a garantia da lei. Prova disso é que o processo de impeachment foi inquestionavelmente legal. Mas o circo que foi a sua votação provou que o fato era só pretexto.
     Arte imita a vida. Outra obra conseguiu despejar elementos no imaginário das massas: a saga Harry Potter. Uma imprensa estrábica havia tornado inimigos públicos justamente quem lutava pelo bem: Harry Potter e Professor Dumbledore. O primeiro foi obrigado a se ver em ostracismo. O segundo, a ser afastado graças a um regulamento que ele próprio criara. Lei mais uma vez servia de pretexto. Nada mais útil para a instauração de planos insidiosos. Em nome de uma sociedade melhor, Professora Dolores Umbridge impõe uma reforma educacional que não prepara para a vida – adestra. Dementadores têm liberdade para agir. Inúmeros são os exemplos históricos que comprovam que a ascensão do totalitarismo, de direita ou de esquerda, dá-se dessa forma. 


     Vida imita a arte. Vivemos tempos sombrios – frase do ministro da magia em Harry Potter. Em nome de uma sociedade melhor, a assembleia de Alagoas proíbe que professores expressem opiniões em sala de aula, esquecendo que a formação educacional se dá por meio do contato com pluralidade de ideias. Em nome de uma sociedade melhor, elogia-se a tortura, assim como a cusparada. Em nome de uma sociedade melhor, um criacionista assume um ministério responsável pela ciência. Em nome de uma sociedade melhor, uma nuvem conservadora paira sobre um ministério atuante em muitas conquistas sociais, o da educação. Em nome de uma sociedade melhor, aceita-se, relativiza-se, ou partidariza-se a corrupção. 

     As perspectivas não são boas. A arte nos mostra como é a vida e continuamos caindo em erro. Mas como explicar a cegueira ou a visão seletiva que nos toma? Como sair de uma conjuntura que teoricamente é legal e seguiu os trâmites democráticos, pois seus atores foram legitimamente eleitos por nós mesmos? Como aceitar que as palavras de Gregório de Matos, do século XVI, ainda valham hoje: “Neste mundo é mais rico o que mais rapa: “Quem mais limpo se faz, tem mais carepa [caspa] / Com sua língua, ao nobre o vil decepa: / (,,,) Quem menos falar pode, mais increpa: / (...) A flor baixa se inculca por tulipa”. Vida imita a arte. Arte imita a vida. Como dizia o Velho do Restelo, comentando a situação humana: "Mísera sorte! Estranha condição!"

domingo, 8 de maio de 2016

Claro Enigma: que pode o vestibulando senão amar este livro?


A FUVEST 2017 incluiu Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, em sua lista de livros de literatura. É uma escolha que de certa forma surpreende, pois a obra apresenta elementos que não costumam fazer parte do repertório cultural ou mesmo da experiência de vida do público recém-egresso do ensino médio. Tal dissociação entre livro e leitor pode gerar dificuldades na compreensão dos textos que compõem o livro.
Estamos acostumados a ver nos vestibulares textos de Drummond com a iconoclastia um tanto narcisista e juvenil de Alguma Poesia (1930), em que se destaca o já mitológico “No Meio do Caminho”. É inegável a importância da coragem do poeta de fazer parte de um grupo que buscou renovar as nossas letras. Ainda assim, a feição poética que ultimamente vinha sendo bastante destacada nos vestibulares era a de Sentimento do Mundo (1940) e A Rosa do Povo (1945), em que o autor inclinara-se para a esquerda.
De fato, é bastante compreensível a guinada que a literatura mundial dera em direção ao socialismo. A humanidade estava sentindo-se massacrada pela crise de 1929, que gerou consequências pela década seguinte. Era também preocupante o Entre Guerras, que indicava um conflito mal resolvido e que por fim acabaria por culminar na Segunda Guerra Mundial. Além disso, mostrara-se agravante a ascensão de regimes totalitaristas como o nazismo e o fascismo. Tornara-se plausível, portanto, em um quadro tão conturbado, a escolha feita por alguns intelectuais, e neles se inclui Drummond, pelas doutrinas políticas de linha marxista.
No entanto, Claro Enigma é de época posterior ao contexto difícil dos anos de 1940. Publicado em 1951, encontrava um quadro de redemocratização e reconstrução. A guerra já havia acabado. Os tão temidos totalitarismos tinham sido derrotados. Ainda assim, o que se percebe na obra é um clima de desencanto, por sinal explicável. O mundo via-se sufocado pelo clima da Guerra Fria e a ameaça de uma extinção apocalíptica nuclear tornava-se cada vez mais iminente. A derrota sofrida pelo fascismo e nazismo não trouxera justiça social – o capitalismo continuava opressivo. E, talvez o mais frustrante para Drummond, seu namoro com o socialismo acabara. O poeta decepcionara-se ao ver que essa doutrina estava tomando um caminho errado ao se mostrar como mais uma forma de totalitarismo. O escritor, que ainda se declarava contra desigualdades, agora via como ingênua a ideia de que a mudança de um sistema econômico seria a chave para transformar o mundo em um paraíso que ignoraria a complexidade do ser humano.
Torna-se claro – não para todos – que Drummond havia amadurecido. Cansara-se do lado público, político, mas não desprezara as preocupações sociais. Passara a elevar-se para questões existenciais, o que alguns na época – os que padeciam da miopia da patrulha da obsessão ideológica – interpretaram como alienação. Seu espírito combativo fora substituído por uma postura resignada, de aceitação das limitações inerentes à condição humana. É o que se vê no vídeo acima, em que Marília Pêra declama “Amar”, um dos poemas que integram Claro Enigma.
Note-se o uso, já a partir do título, do infinitivo. Essa forma retira do verbo marcas temporais, do “tempo presente”, “da vida presente”, “dos homens presentes”, como pregava o mesmo poeta em sua fase combativa em “Mãos Dadas”, de Sentimento do Mundo. Agora, a discussão está posta para além das limitações de época. Assume-se, portanto, o enfoque universal, o que é reforçado por expressões vagas como “criatura” e “criaturas”: “Que pode uma criatura senão, / entre criaturas amar?”. Ou então “ser amoroso”: “Que pode, pergunto, o ser amoroso, / sozinho, em rotação universal, senão / rodar também, e amar?”.
É valioso observar nesse patamar como o emprego no sétimo verso da primeira pessoa do singular (“Que pode, pergunto, o ser amoroso”) não provoca comprometimento da referida universalidade. Trata-se, na verdade, de uma das características mais marcantes do eu poemático drummondiano: sua capacidade de conter o eu de todos nós.
Nesse ponto, ocorre o ponto preocupante anunciado no primeiro parágrafo desta postagem. O eu poético drummondiano serve de porta-voz de todos nós. Mas quem seria esse “todos nós”? “Amar” é um poema tocante, conforme atesta a cara confissão de Marília Pêra: seus olhos se turvam a ponto de atrapalhar a leitura. O conhecimento amoroso que causou as lágrimas da atriz não costuma pertencer ao mundo do vestibulando adolescente. Na verdade, não está universo confessional ao qual está afeiçoado. Faz parte do campo reflexivo da senectude, ao qual Drummond e Pêra aproximam-se.
  

Nesse sentido, a interrogação “Que pode (...)?” na verdade é retórica, funcionando como uma afirmação categórica, que indica um eu resignado que compreende as características inevitáveis do amor. Essa construção frasal equivaleria a “Não resta nada a não ser...”: “Não resta nada a uma criatura a não ser amar”, “Não resta nada ao ser amoroso, sozinho, em rotação universal, senão amar”.
  Adota-se, portanto, uma visão que se avizinha da negatividade, ou da falta de colorido da existência. Torna-se coerente, portanto, o aparecimento de expressões em “Amar” como “deserto”, “inóspito”, “áspero”, “vaso sem flor”, “peito inerte”, “ave de rapina”, “coisas pérfidas ou nulas”, “ingratidão”, “concha vazia”, “procura medrosa”, “amar a (...) falta (...) de amor”, “secura”, entre outras.
Esse pessimismo, ao contrário do que o senso comum interpretaria, não equivale a desistência da vida. Basta notar a declaração “este o nosso destino” para se recusar a hipótese de que o poeta se tenha tornado inerte. Na verdade, percebe-se aqui uma postura assumida em Claro Enigma: a aceitação do caráter negativo irrevogável e inerente ao ser humano. Atitude de poeta amadurecido que não deve ser confundida com passividade, indolência ou alienação. É a compreensão de que, por mais sombria que a perspectiva existencial possa parecer, ela nos pertence e é nosso papel continuar na luta.

domingo, 1 de maio de 2016

"Ain't Got No", de Nina Simone - Exemplo de construção textual

A ligação que os elementos de um texto estabelecem entre si garante o seu significado. Quando esse processo é bem elaborado, vão-se construindo blocos de sentido que mantêm coesão e coerência textuais, como se vê, por exemplo, na composição “Ain't Got No/I Got Life”, de Nina Simone (a obra dessa artista já foi discutida nas postagens de 22 de agosto de 2012 e de 18 de novembro do mesmo ano). Essa peça é capaz de mostrar de que maneira forma e conteúdo podem produzir um casamento sólido e harmonioso. 

 

Em primeiro lugar, deve-se observar como o piano e principalmente a bateria marcam a divisão temática da obra, indicando os blocos de assunto que se materializam em estrofes. Num primeiro momento, enquanto esses dois instrumentos vão tocando suas melodias de repetitivamente, a enunciadora enumera as coisas materiais que não possui:

I ain't got no home, ain't got no shoes
Ain't got no money, ain't got no class
Ain't got no skirts, ain't got no sweater
Ain't got no perfume, ain't got no bed
Ain't got no man

Então a bateria faz um volteio, abrindo caminho não só para a mesma melodia, mas também para outra estrofe, que introduz uma nova enumeração, agora ligada a elementos que denotam relacionamentos sociais que a enunciadora diz não possuir:

Ain't got no mother, ain't got no culture
Ain't got no friends, ain't got no schooling
Ain't got no love, ain't got no name
Ain't got no ticket, ain't got no token
Ain't got no God 

Nesse ponto, em que se toca no sagrado (God), a composição prepara-se para seu clímax, já que o eu poemático atingiu um ponto crítico de profundo esvaziamento. Não é à toa que se sente um crescendo na instrumentação por meio do qual um caráter reflexivo entra em cena. As interrogações retóricas permitem entender que o processo de negação funciona como escada para se vislumbrar o que realmente importa:

Then what have I got?
Why am I alive anyway?
Yeah, what have I got nobody can take away

Atingido o clímax, ocorre a primeira pausa da música. Após ela, uma nova melodia surge, indicando que a enunciadora realizou um sábio processo de desapego, encontrando o que realmente é importante para uma existência plena e feliz:

I got my hair, I got my head
I got my brains, I got my ears
I got my eyes, I got my nose
I got my mouth, I got my smile

I got my tongue, I got my chin
I got my neck, I got my boobs
I got my heart, I got my soul
I got my back, I got my sex 

I got my arms, I got my hands
I got my fingers, got my legs
I got my feet, I got my toes
I got my liver, got my blood 

Apesar de a voz que se manifesta aqui cantar esse trecho em três blocos, talvez por questão de fôlego, a instrumentação não se altera, indicando que se trata da mesma realidade e, portanto, do mesmo assunto: o que no fundo nós temos é muito pouco – apenas o corpo. É então que surge outra pausa, importantíssima, para abrir caminho para mais uma estrofe e, portanto, para mais uma matéria:

I've got life
I've got my freedom
I've got the life
I've got the life
And I'm gonna keep it
I've got the life
And nobody's gonna take it away
I've got the life

Esse último momento, com voz e instrumentos musicais atingindo o seu máximo, funciona como conclusão, apresentando o que realmente vale em nossa existência: a vida em si, sem rodeios e ilusões materialistas. O pouco (para os olhos dos não iluminados) que na verdade é muito (para os olhos dos iluminados).
O exemplo aqui analisado, portanto, mostra-nos como a organização textual é vital para a produção de um discurso eficiente, qualquer que seja a realidade abordada. Esse é um ponto que devemos ter em mente tanto para a leitura quanto para a redação.