quarta-feira, 31 de outubro de 2012

ENEM: o que ter em mente neste domingo




No próximo final de semana ocorrerá a edição 2012 do Exame Nacional do Ensino Médio, o famoso ENEM. Então aquele que irá fazê-lo precisa ter em mente algumas características importantes dessa prova, principalmente no que se refere à matéria ligada às preocupações dO Magriço Cibernético.
A começar, a avaliação que se dará no domingo chama-se Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. É importante notar que o nome dela está no plural, o que coloca em destaque o fato de que não existe uma única forma de usar a língua portuguesa, mas várias manifestações dela. Portanto, é errado falar que existe um “português correto” e um “português errado”, como, por exemplo, cantava Renato Russo: “Eu canto em português errado, troco as pessoas, troco os pronomes”. Na verdade, deve-se falar em adequação ou inadequação de um determinado registro a determinado contexto.
Dessa forma, o examinando deve lembrar que existe um padrão culto, um padrão formal da língua, que é aquele ensinado em sala de aula. É o mais apegado às normas gramaticais. Mas não é o único, muito menos o correto. Existe também o coloquial, informal, usado no dia a dia em nossos bate-papos ou na literatura do Modernismo. Ele apresenta marcas de oralidade, como o emprego de “a gente” no lugar de nós, de “em” junto ao verbo ir no lugar de “a” (“vou no banheiro”), além do “troco as pessoas, troco os pronomes”, como na mistura da segunda com a terceira pessoa (“Você não foi na festa ontem? Eu não te vi.”).  Nunca é demais repetir: as duas formas são legítimas, cabendo ao usuário se preocupar com o contexto adequado em que deve utilizá-las. Em situações formais, como uma entrevista de emprego, por exemplo, deve-se usar a norma culta. Em uma situação informal, como uma conversa entre amigos, deve-se usar o padrão coloquial. Mas uma coisa não deve ser esquecida: o padrão culto, por ser associado às classes altas (não que elas de fato o dominem), é o mais prestigiado. Então aqueles que estão preocupados em buscar aceitação na sociedade preocupam-se em abandonar suas marcas de coloquialismos (e até de regionalismo).
Mas há outras formas peculiares de se empregar a língua. Existe a denotação, que é aquela em que as palavras devem ser entendidas em seu sentido primeiro, literal, e a conotação, em que devem ser compreendidas no seu sentido figurado, associativo. Assim, quando se fala que uma pedra é um pedaço de rocha, “pedra” está em linguagem denotativa, pois deve ser entendida ao pé da letra. Mas quando se diz que fulano é uma pedra no sapato, “pedra” já passa a ser entendida em seu sentido figurado, afinal, uma pessoa não pode ser um minério. Aqui está havendo uma associação da ideia de incômodo que o indivíduo provoca ao mal que esse seixo pode causar no calçado de alguém.
Cabe também lembrar que a língua pode ser usada de uma forma estética, chamando a atenção para recursos diversos que chamam a atenção para a sua construção: rima, métrica, repetição de sons, repetição de palavras, oposição de vocábulos, associação inesperada de termos, entre tantos outros. Trata-se, portanto, da linguagem literária, que põe em relevo o que se convencionou chamar de função poética da linguagem, preocupada em destacar as técnicas empregadas na construção da mensagem.
Vale então ter em mente, então, outras funções da linguagem além da poética. Existe a emotiva, que destaca o emissor da mensagem, como no verso de Vinicius: “Eu quero a mulher que passa”. Há também a conativa ou apelativa, que foca quem recebe a mensagem, como se vê em Castro Alves: “Senhor Deus dos desgraçados, / Dizei-me, vós, senhor Deus”. Encontra-se também a metalinguística, que é a que se preocupa em usar a linguagem para falar sobre linguagem, como faz Drummond: “Não faças versos sobre acontecimentos”. É interessante notar que nesse exemplo também ocorre a conativa, o que prova que um texto pode ter a manifestações de mais de uma delas. Ocorre também a função fática, que entra em ação no texto só para verificar se a comunicação está se efetivando, como quando dizemos “entendeu?”, “não é?”, “está certo?” ou quando cumprimentamos alguém, em sinal de que estamos abrindo a possibilidade de comunicação com essa pessoa. Por fim, existe também a referencial, preocupada apenas em passar uma informação, como em “Nos dias 03 e 04 de novembro ocorrerá o ENEM 2012”.
Há também questões nesse exame que se preocupam em mostrar que uma mesma ideia pode se materializar de formas diversas em plataformas diferentes. Então, é comum o confronto entre um poema e uma pintura, entre um texto literário e um texto crítico, para que se notem semelhanças de assuntos e diferenças de enfoque graças às especificidades do material em que se manifestam. Assim, um poema cubista, como o “Poema de Sete Faces”, de Drummond, mostrará sua vinculação a essa vanguarda ao ter sete estrofes justapostas, sem ligação temática entre elas, ao passo que As Senhoritas de Avignon, de Picasso, realizará sua filiação à mesma estética ao exibir as três mulheres da direita ligadas ao padrão europeu de beleza e as duas da esquerda ao padrão africano. Formas diferentes, mas que expressam a mesma técnica: simultaneidade de elementos.

Picasso, As Senhoritas de Avignon (1907)

Além disso, é importante lembrar que todas as formas de manifestações de linguagem são válidas. Assim, para o ENEM o funk é um produto artístico e cultural tão legítimo quanto “Construção”, de Chico Buarque, ou a Nona Sinfonia de Beethoven. Uma pichação tem tanta dignidade quanto A Monalisa, de Leonardo da Vinci. Portanto, esse exame procurará defender de todas as formas a igualdade social, inclusive nas manifestações linguísticas e culturais. Nesse sentido, a redação deve ganhar especial atenção, pois se espera que em sua confecção entre a defesa da cidadania e dos direitos humanos.
Um ponto é importante quanto à Redação. Trata-se do aproveitamento dos textos da coletânea. Além de ser um mecanismo de segurança, que garante que o candidato montou na hora o seu texto, além de ser um apoio para a construção de argumentos, a utilização do painel de textos é outro momento em que o examinando irá mostrar sua capacidade de manipular as informações escritas, ou seja, a sua competência linguística.
Por fim, o clássico conselho. O ENEM não é uma prova difícil. É cansativa, mas não é difícil. Então é necessário ter foco, ler atentamente os textos e principalmente os enunciados das questões. Muitos deles (e não só em Linguagens Códigos e suas Tecnologias) já têm uma pista para a resolução ou até mesmo a própria resposta. Analisá-los cuidadosamente é outra maneira de mostrar a tão requerida competência linguística.
Feitas todas essas observações, resta apenas aO Magriço Cibernético desejar uma boa prova aos que vão prestar o maior exame do país.
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domingo, 28 de outubro de 2012

Vidas Secas: obra-prima de um mestre


Em 27 de outubro, ou seja, ontem, comemorou-se o aniversário de nascimento de Graciliano Ramos, um dos três maiores romancistas da Literatura Brasileira (os outros são Machado de Assis – sem dúvida alguma – e Guimarães Rosa). E basta aproveitar essa data para observar atentamente Vidas Secas (1938), obra cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013, para perceber que essa qualificação não é injusta. Nela, o autor consegue mostrar-nos quais devem ser os elementos válidos para um texto literário, tanto na forma, quanto no conteúdo.
Inicialmente, deve-se começar pelo conceito básico de que literatura é a arte da palavra, ou seja, é o trabalho estético com a linguagem, o que configura a função poética, preocupada em destacar a maneira como a mensagem foi construída. Chama a atenção na narrativa sobre a vida de Fabiano e sua família o predomínio da ordem direta da oração, da frase simples e curta, da economia vocabular. Mas nada disso deve ser entendido como desleixo ou mesmo falta de estilo. Tudo é calculado, programado, denotando o clássico caso da simplicidade obtida com muito suor. A intenção é atender sua grande preocupação com a eficiência de comunicação, pois, como ele já afirmara, “a palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.
Entretanto, essa simplicidade não pode ser entendida como pobreza. Há poeticidade em Vidas Secas. Como simples exemplo, basta observar o seguinte trecho, retirado do penúltimo capítulo, “O Mundo Coberto de Penas”:

Alguns dias antes estava sossegado, preparando látegos, consertando cercas. De repente, um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos juntos, nuvens, o medonho rumor de asas a anunciar destruição. Ele já andava meio desconfiado vendo as fontes minguarem. E olhava com desgosto a brancura das manhãs longas e a vermelhidão sinistra das tardes.

Nesse excerto há uma gradação na sequência “um risco no céu, outros riscos, milhares de riscos, nuvens”. Há também hipérbole em “nuvens”. Há ainda metonímia na menção a riscos no lugar das próprias aves, assim como também em “rumor de asas”. Esses poucos elementos já são suficientes para provar a literariedade da linguagem desse romance.
Outro ponto positivo na elaboração textual de Vidas Secas está no ponto tão bem declarado por João Cabral de Melo Neto no poema que fez em homenagem a Graciliano Ramos: “Falo somente com o que falo: / com as mesmas vinte palavras / girando ao redor do sol / que as limpa do que não é faca”. Há uma economia de elementos que acaba tornando-os extremamente significativos. O vermelho que está no cabelo, na barba e no rosto de Fabiano surge também no aspecto sinistro das tardes da seca. O azul de seus olhos está também no céu massacrante sem nuvem e que permite um calor abrasante. Ambos são representações do inferno, justamente a palavra cujo significado o menino mais velho quer saber. E, nesse campo, torna-se natural que as personagens se chamem ou se considerem condenados do diabo, excomungados.
Esses elementos já são suficientes para mostrar que Graciliano Ramos é um escritor de alta qualidade, pois domina os instrumentos que utiliza, ou seja, os mecanismos da linguagem literária. Mas a envergadura desse autor também se manifesta no campo do conteúdo. De uma maneira superior a Capitães da Areia, o autor critica as injustiças sociais provocadas pelas diferenças econômicas. Fá-lo sem cair no tom panfletário do livro de Jorge Amado. Fá-lo sem relegar a segundo plano o trabalho com o texto. Por causa desse fôlego analítico, Vidas Secas acaba saindo do âmbito do romance regionalista e se torna uma obra a criticar de maneira universal a opressão (que está em toda parte, na figura do soldado amarelo, do patrão, do fiscal da prefeitura, da seca, da chuva, do próprio Fabiano contra Sinha Vitória, dela contra o menino mais velho e da cadela Baleia), que é o seu grande tema.
Todavia, há outros assuntos a serem encontrados no presente romance. Temos a riqueza psicológica a mostrar que a pobreza a que suas personagens são submetidas, capaz de provocar um raciocínio embotado e uma linguagem deficiente, não retira delas um universo mental riquíssimo, cheio de remorsos, sonhos, preocupações, revoltas. Aliás, o emprego da palavra é outro tema importante e recorrente na obra, tornando-se preocupação vital de suas personagens. Fabiano queria falar como seu Tomás da bolandeira. O menino mais velho quer saber o significado do termo “inferno”. As duas crianças ficam admiradas com o monte de objetos que veem no capítulo “Festa” e chegam a duvidar que seres humanos sejam capazes de criar e saber o nome de todos eles. Quando Fabiano conta uma história em “Inverno” duas vezes e de formas diferentes, eles não acreditam que a realidade possa ser expressa de maneiras mudadas. Mas o mais importante é lembrar que o chefe dessa família tem sua integridade física e moral atropeladas nos capítulos “Cadeia” e “Contas” justamente porque não sabe falar direito.
É interessante lembrar que todos esses elementos temáticos são fruto das estruturas sociais injustas em que as personagens estão inseridas, tão fortes que, além de gerarem os problemas acima relatados, chegam até mesmo a retirar delas muito do caráter humano, tornando-as animalizadas, próximas, portanto, de Baleia, que por sua vez é humanizada graças ao seu companheirismo e afetividade.
Além disso, esse romance tem um lado tocante (apesar da frieza e imparcialidade do narrador), não só pelo apego que às personagens têm ao pouco que possuem, que na verdade não lhes pertence, mas também pelo universo psicológico delas (já citado) e principalmente por mostrar que, mesmo em face da desgraça, elas alimentam sonhos e esperanças.
Com base em tudo isso, pode-se então perceber o porquê de Vidas Secas ocupar um lugar especial – e de direito – entre as obras mais importantes da Literatura Brasileira. Tanto sua forma quanto o seu conteúdo são provas cabais de que Graciliano Ramos é senhor das ferramentas que utiliza, o que torna a leitura desse seu romance condição essencial para quem queira ter um repertório cultural digno.

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quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Pica-Pau e Pernalonga - mais exageros de interpretação: a vez da psicanálise


No post anterior discutiu-se a over-interpretation, um problema comum àqueles que se apaixonam pela análise de textos. Usou-se como exemplo as leituras estranhas que surgiram sobre desenhos animados como Scooby-Doo, Bob Esponja, além do infantil Teletubbies. Ficou claro que tais erros teriam sido evitados se houvesse a preocupação de observar a obra como um conjunto e não simplesmente privilegiar um único ingrediente.
Na verdade, é comum muito dos clássicos infantis serem alvo predileto dessas interpretações, como se fossem vítimas ideais de teorias de conspiração a mostrar que não existe inocência nem mesmo no que degustávamos na aurora de nossas vidas. Parece que tal febre é fruto da popularização da psicanálise, ou do que ousa querer ser chamado por esse nome. É o que podemos ver quando se diagnosticou por aí que o Pica-Pau e Pernalonga tinham transtorno de sexualidade, pois se mostravam extremamente sádicos quando se vestiam de mulheres sedutoras. Como não resolveram seus próprios conflitos libidinosos, descarregaram violentamente seus dilemas eróticos em seus oponentes. Quadro pior é o do Piu-Piu, que não se sabe se é masculino ou feminino. Seu prazer em associar a dor alheia – no caso, do Frajola – a cinismo e ironia seria resultado de uma androginia recalcada.

Ilustração de Gustave Doré para Chapeuzinho Vermelho (1861)

Não se está dizendo, entretanto, que a psicanálise é imprópria para a intelecção de textos. Ao contrário, ela é bastante útil quando suas observações podem ser referendadas por outros elementos da obra. É o que pode ser visto nas célebres análises que Bruno Bettelheim fez no A Psicanálise dos Contos de Fada. Lá vemos, por exemplo, que Chapeuzinho Vermelho é a história da preocupação que deve ocupar a vida de toda aquela que acabou de se tornar mulher. Não é à toa que a cor que a caracteriza nada mais é do que referência à menstruação, sinal de que não se tem mais uma menina. Nesse código semântico, faz sentido o Lobo não atacar de forma violenta, mas por meio de um discurso sedutor, sugerindo à jovem que vá por um caminho cheio de flores, tradicionalmente símbolos dos prazeres da vida. Além disso, a protagonista pouco depois encontra o vilão justamente na cama, móvel carregado de simbologias sexuais. É justamente nela que safado diz à inocente: “Venha deitar-se do meu lado”. Por fim, é bastante significativo que o salvador da garota seja um caçador ou um lenhador (depende da versão). Qualquer um deles representa um homem mais evoluído, preocupado com comida ou aquecimento. Enfim, um digno mantenedor de uma casa. Um excelente partido. A mensagem, portanto, é um sinal de alerta – a mulher deve dar atenção não ao sedutor, que muitas vezes é enganador e só quer trazer malefícios; ela deve acreditar no responsável, trabalhador, que vai poder garantir-lhe conforto e bem-estar. Mais importante que os prazeres da vida – que podem levar à destruição – é a segurança.
Portanto, apresentou-se aqui mais uma interpretação que provocará o já referido içar de sobrancelhas. É uma análise surpreendente, que foge do convencional. O que a impede de ser descabida, como tantas outras tão ou mais conhecidas, é o fato de ela estar sustentada por vários elementos dentro do próprio texto. Essa é a condição para que a leitura se mostre eficiente.


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domingo, 21 de outubro de 2012

Scooby Doo, Teletubbies, Bob Esponja e os perigos dos exageros de interpretação



Várias vezes foi discutido aqui nO Magriço Cibernético que um texto é feito da relação que seus ingredientes estabelecem entre si, garantindo seu sentido. A falta dessa conexão ou estabelece uma incoerência, que pode comprometer a eficiência da mensagem (post de 1º de março de 2012), ou cria um efeito estético bastante interessante de dissonância (post de 03 de março de 2012), servindo como realce de ideia. Nesse sentido, a interpretação tem que prestar atenção aos diferentes elementos que compõem o conjunto, até mesmo seu feitio. É por isso que “Construção”, de Chico Buarque, é uma excelente composição, pois forma e conteúdo estão bem integrados (post de 05 de agosto de 2012). É por isso, também, que a análise que o historiador Ademir Luiz fez de Chaves (post de 30 de setembro de 2012) falhou porque não levou em conta que o veículo em que esse programa se manifestava, uma série humorística, determinou a repetição de elementos – o que compromete a tese de que a recorrência de cenas fosse uma manifestação dos castigos do inferno.


O respeito a todos esses requisitos garante o bom senso na intelecção textual, evitando, assim, um vício típico de quem se apaixona pela análise de textos, conhecido como over-interpretation, ou seja, a interpretação excessiva, desmedida. Tal pode ser visto não só no referente estudo sobre Chaves. Vemo-lo também, por exemplo, na ideia de que Velma, de Scooby Doo, seria lésbica, ou que o Salsicha, do mesmo infantil, seria maconheiro, o que faria de sua constante fome uma manifestação da “larica”. Para isso ser verdade, outros elementos da animação deveriam referendar essa hipótese – o que não acontece.


O mesmo problema de intelecção ocorreu com Teletubbies, que sofreu o ataque de uma cruzada conservadora que achava que Tinky Winky incentivava a homossexualidade nas crianças somente porque é roxo e possui um triângulo na cabeça. Sabe-se que essa cor e essa forma geométrica são elementos muito usados pelo Gay Pride. Entretanto, aquele programa da BBC foi produzido para bebês e crianças pré-escolares (é notável como a forma da barriga dessas personagens sugere o seu público) para apresentar elementos do cotidiano dessa faixa etária, e entre eles não se encontra a questão da sexualidade. Há bebê homossexual? Há bebê heterossexual? E, aliás, qual o problema de apresentar um homossexual ou heterossexual a um infante?
Bob Esponja Calça Quadrada também foi vítima dessa sanha, pois houve quem afirmasse que o protagonista e seu inseparável amigo Patrick Estrela teriam um relacionamento homossexual. Um despropósito, pois se trata apenas de um desenho com a intenção de retratar o universo dos pré-adolescentes, reforçando a necessidade do convívio social para o desenvolvimento do caráter e o enfrentamento dos desafios da vida. O próprio autor, Stephen Hillenburg, repudiou essa interpretação, mas de forma muito bem humorada brincou com ela em Bob Esponja, o Filme (2004), principalmente ao fazer Patrick usar botas pretas de cano alto brilhantes e uma meia-calça arrastão.


 Não se está proibindo, entretanto, que se façam novas leituras de textos consagrados. Às vezes esses novos olhares lançam novos sentidos que acabam por dar novos sabores, novos coloridos às obras que estamos degustando. É o que acontece com Caverna do Dragão. Por um bom tempo circulou pela rede uma teoria de que os jovens que estariam presos no Reino na verdade já estariam mortos, vítimas de um acidente na montanha russa em que estavam. É por isso que, toda vez que encontravam uma chance para saírem do lugar em que se encontravam, algo os impedia, principalmente Uni. Não se pode voltar do reino dos mortos.
Enfim, a leitura de um texto precisa ser regada, como se disse, como boa dose de bom senso, que saberá separar os exageros de interpretação dos verdadeiros achados de significado. É como se tudo fosse uma questão de sobrancelhas. Elas serão erguidas quando aquela novidade fizer sentido, for coerente. Elas serão baixadas, franzidas quando se tratar de bobagem.

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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

As três versões de Capitães da Areia: romance, minissérie, filme




Em posts anteriores (26 de agosto, 05 e 09 de setembro de 2012) foi discutido que a transferência de ideais de uma plataforma estética para outra provoca transformações e até mesmo adaptações válidas e bastante interessantes. Hoje veremos que essas mudanças levam em conta não apenas o gênero em que se manifestam, mas também o contexto em que vieram a público. Para que se entenda essa afirmação, serão analisadas três versões de Capitães da Areia (obra já discutida nos posts de 03 e 07 de outubro de 2012), de Jorge Amado.
A primeira versão é o romance, que é de uma época (1937) em que o Brasil se via mergulhado na Ditadura Vargas. Era natural que esse texto literário assumisse uma postura crítica com relação aos problemas de seu tempo, principalmente os provocados pelo sistema capitalista, causador de uma distribuição de renda tão injusta que mergulhava uma considerável parcela da população em condições indignas de miserabilidade. A consequência absurda é o fato de crianças serem jogadas na criminalidade, o que fez com que a infância – o que nossa sociedade julga como o que há de mais puro e precioso – acabasse destruída em nome da necessidade de sobrevivência.
Como era moda então, o ataque ao capitalismo vinha associado à defesa do socialismo. De fato, a prosa brasileira da década de 30 do século XX assumiu ideais de esquerda. Isso explica a aproximação que o Padre José Pedro faz entre os ideais humanitários de Cristo e o adjetivo comunista. Ou o encantamento de Pedro Bala pela palavra companheiro. Ou, mais descaradamente, a pregação da revolução socialista pela descoberta do valor heróico que o trabalhador tem em suas mãos graças à greve.


A segunda versão, de 1989, é a minissérie em dez capítulos da Rede Bandeirantes de Televisão. Naquele momento o Brasil havia recentemente se redemocratizado e esse processo teve como capítulo marcante as greves operárias do ABC no final dos anos 70, projetando a figura de Lula, o qual mais tarde se tornaria Presidente da República. É curioso notar que Raimundo Loiro, pai de Pedro Bala, é apresentando como dono de uma barba cerrada, lembrando a figura daquele famoso ex-sindicalista.
Tanto na televisão como no romance a greve tornava-se instrumento para transformações positivas na sociedade. Entretanto, como a produção televisiva era veiculada num canal de comunicação cedido pelo governo, além de ser dirigida ao grande público, que longe estava de alimentar ideais socialistas – a Guerra Fria já estava chegando ao fim, já que o comunismo já não tinha mais força – todo o caráter panfletário do texto de Jorge Amado acabou desaparecendo.

Pedro Bala e Dora no filme Capitães da Areia

A terceira versão, o filme, é de 2011, ou seja, é contemporânea. É fruto, pois, de uma nova realidade. Talvez isso explique a ausência do teor político, já que houve ênfase em uma história de aventura e amor. Nem greve, nem socialismo, nem o maniqueísmo da luta de classes que alimentou o romance. Aliás, as personagens loiras, como Pedro Bala e Dora, tornaram-se aqui morenas. Até o branco Gato mudou, tornando-se negro. Numa época de concentração de esforços em nome da igualdade racial, torna-se compreensível o trabalho de não mostrar uma Bahia branqueada. E não adianta lembrar que Jorge Amado não acreditava que existisse em seu Estado alguém 100% branco ou 100% negro – todos seriam naturalmente mulatos. Cinema é feito de imagem, por isso parece que a maior preocupação na confecção da película foi fazer as massas verem essa questão étnica e não apenas compreendê-la, muito menos subentendê-la.
Enfim, com esses pequenos exemplos pincelados, percebe-se que uma obra de arte – não importa a sua qualidade – é fruto do momento em que foi gerada. Por causa disso, carregará em seu bojo os clamores que aconteciam durante a sua gestação ou até mesmo durante a sua adaptação. Como dizia Camões: "mudam-se os tempos, mudam-se as vontades".

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domingo, 14 de outubro de 2012

2001: Uma Odisseia no Espaço - o filão nobre da ficção-científica



Um gênero que merece respeito é a ficção científica. Sua essência não é a utilização da Ciência em sua narrativa, mas as especulações, considerações, hipóteses em cima do que esta área do conhecimento proporcionaria. Assim, o bom leitor notará nesse campo o valor de Philip K. Dick (1928-1982), por exemplo, autor de mais do que mera aventura juvenil. Seu Do Androids Dream of Electric Ship? (1968), que inspirou o filme Blade Runner (1982), possibilita uma discussão sobre a vida e sua longevidade, sem mencionar os fatos ligados a memória, exploração, escravidão. Ou então o We Can Remember it for You Wholesale, conto de 1966 que deu origem em 1990 à película Total Recall (O Vingador do Futuro) e que apresenta elucubrações que se dão no campo da identidade: até que ponto ela é autêntica, até que ponto é fabricada? Em ambas subjaz uma questão crucial – o que nossa mente sabe que é real, de fato o é? “What is real?”, perguntava Morpheus a Neo, em Matrix (1999), outro belo exemplar do setor, dessa vez dos irmãos Wachowski.
Mas o grande mestre desse gênero é Arthur C. Clarke (1917-2008). Mais do que ter inspirado uma excelente película, é praticamente co-autor de uma maravilha que ajudou a tirar esse gênero cinematográfico do limbo dos filmes B: 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Na verdade, o romance e o filme foram produzidos no mesmo ano, a partir das discussões entre esse autor e o cineasta Stanley Kubrick. Este, com sua genialidade, conseguiu tornar o filme um clássico, pois seus temas profundos continuam atuais, dando à obra um tom filosófico e até místico.
Não se trata de um filme fácil. Além de sua extensão (147 minutos), ele tem poucos diálogos. Aliás, não há uma fala sequer nos seus 25 minutos iniciais, assim como nos 23 finais. Isso já foi suficiente para afastá-lo do grande público. Uma parte imediatamente já o qualifica como monótono – opinião dos que consomem cinema eletrizante de ação. Ou como nonsense – juízo dos que consomem popcorn movies, buscando apenas diversão, sem a necessidade de utilizar o cérebro. A minoria, que consegue ver sentido nele, cultua-o, considerando pobres descerebrados quem não conseguiu entendê-lo. E assim, abre-se a celeuma. Mas quem falou que o bom tem de ser popular? Mas quem falou que o bom tem de ser difícil? Deve-se dar liberdade à arte – ela não tem obrigação de ser digerível ou intragável. Ela simplesmente é o que é.
 E o que é, então, arte? Sem a pretensão de esgotar o assunto em um espaço tão curto como o de um post, o que é impossível, pode-se entender, grosso modo, que arte é uma forma que se faz conteúdo. Ou um conteúdo que se mostra na forma. E isso 2001: Uma Odisseia no Espaço cumpre. Para tanto, basta observar o momento inicial do filme, “The Dawn of Man” (“A Alvorada do Homem”). Nele vemos nossos ancestrais primatas (na verdade, Kubrick não usou o homem primitivo porque queria evitar problemas com censura, já que este andava nu) em comportamento ao mesmo tempo gregário e briguento, neste último caso principalmente por questão de posse. Nossa essência já estava lá.
É noite. A escuridão tem também um sentido metafórico, pois numa cena anterior um dos integrantes do grupo foi morto por um felino e em outra perderam o acesso a uma poça d’água, conquistada por um bando que gritava mais alto, demonstrando ter mais força. Viver, como dizia Guimarães Rosa, é muito perigoso. Daí as trevas em que se encontram.


Ao amanhecer (e novamente ocorre também um sentido metafórico), o grande mistério do filme aparece: um monólito preto. Curiosamente, tem a mesma proporção daquele que milhões de anos depois vai ser encontrado na Lua: 1x4x9. E o mais intrigante é que cada número é o quadrado dos três primeiros números inteiros. Representação de Deus em sua perfeição? Do Divino? Do Mistério Universal? Mas instigante é a reação que provoca na pequena tribo. Não incute a capacidade evolutiva daqueles macacos – desperta-a. Em outras palavras, o dom já estava dentro deles, só precisava ser estimulado. E tal está ligado à curiosidade e experimentação, que é o que os primatas liberam quando vencem o medo. Isso é que nos fez desenvolver nossas capacidades. Há quem diga que o fato de nos erguemos liberou os membros posteriores para a exploração e consequente intervenção na natureza. Mas antes disso era necessária a curiosidade, que o insólito objeto despertou.
Mas cinema é mais do que ação. É som e imagem. Depois que a descoberta se deu, tendo como trilha sonora o Requiem (1963-5) do húngaro György Ligeti (1923-2006), que em muito contribui para o clima de mistério e assombro, em 4min26 surge, sobre o monólito, o símbolo do zoroastrismo: o sol alinhado à lua crescente. É uma representação do que essa antiga religião pregava – a luta do bem, da luz, contra o mal, a escuridão. Deve-se lembrar que a música que virá logo depois, que abriu o filme e que o perpassa em vários momentos, é Also Sprach Zarathustra (Assim Falou Zoroastro), que Richard Strauss (1864-1949) compôs em 1896, inspirado no tratado filosófico homônimo de Friedrich Nietzsche (1844-1900), publicado entre 1883 e 1885. Segundo esse livro, Deus estaria morto. Então o monólito era prova disso? O Evolucionismo assassinou a ideia de Deus? Mas nessa publicação também se afirma que o homem é uma ponte entre o primitivo e o divino. Parece que esse sentido é mais condizente com o que Strauss compôs, com os metais anunciando a chegada de algo grandioso, o que é reforçado com a percussão. E é justamente o tema da obra de Kubrick e Clarke. Saiu-se das trevas para se entrar na luz.


       Em 5min11 a imagem do alinhamento volta, como uma lembrança no hominídeo. É o momento em que ele tem um insight, o famoso estalo mental, de delimitação complicada – até que ponto é algo que se dá apenas na mente, até que ponto é fruto de influência externa? Em 5min28, quando aparece a música de Strauss, o grande momento ocorre: a descoberta da ferramenta. É por meio dela que o homem evoluirá, ampliando suas potencialidades. O fato de agora estarmos utilizando a internet é prova disso: nossas capacidades de memória e interação foram elevadas exponencialmente.
Mas, pelo que se vê na cena, a vitória das luzes não foi completa, pois as trevas ainda estão presentes. O mesmo objeto que aumentou a possibilidade de alimentação trará também o assassinato em nome da posse, como mais tarde ocorrerá no próprio filme, em que a poça d’água será retomada graças ao assassinato do líder da tribo opositora.
E entre 6min51 e 6min58 a mais famosa transição da história do cinema é feita. Quatro milhões de anos de evolução são sintetizados no osso que é jogado ao ar e é substituído,  na tela, por uma espaçonave. Entra então o Danúbio Azul (1867), de Johann Strauss (1825-1899), a sugerir a precisão, como uma valsa, da movimentação das naves espaciais. É a maravilha do progresso científico. Mas isso é o resto do filme, que não cabe analisar aqui.  O que coube aO Magriço Cibernético foi mostrar como a ficção científica é capaz de traduzir questões importantes para o ser humano. E 2001: Uma Odisseia no Espaço é ideal para essas considerações.

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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

"Isto não é um cachimbo" - pequenas reflexões sobre a arte

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Entre 1928 e 1929, o belga René Magritte (1898-1967) produziu uma série de pinturas intitulada A Traição das Imagens (La Trahison des Images). A mais famosa delas é a que está reproduzida acima, Isto não é um Cachimbo (Ceci n’est pas une Pipe), que surpreendentemente causou muita polêmica desde então, principalmente em razão de seu aparente nonsense: vê-se um cachimbo e afirma-se que não se trata de tal.
Na verdade, essa obra se presta a uma excelente reflexão sobre o papel da arte. Inicialmente, deve-se lembrar que o nome do trabalho do belga não é um contrassenso, já que, óbvio, ninguém fumaria o quadro. Então, algo extremamente lógico – mas pouco lembrado – vem à tona: o que temos diante de nós é apenas uma imagem que representa um cachimbo e não o próprio utensílio para fumar. Em suma, não temos o objeto, mas uma imagem dele.
Essa pintura tem parentesco com um famoso poema de Fernando Pessoa, “Autopsicografia”, do qual destacamos a primeira estrofe:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

O grande mestre da heteronímia nos informa que um poeta, ao construir seu texto, na verdade não coloca suas emoções no papel, mas apenas finge, ou seja, cria uma outra realidade, feita de palavras. Torna-se, portanto, indiferente para a apreciação de sua peça o que a inspirou ou se de fato se baseia em elementos que fazem parte da biografia do artista.
Tanto Pessoa quanto Magritte nos mostram, então, que a arte precisa ser entendida não como a realidade em que estamos, mas como uma representação desta, como um universo paralelo. E funcionando assim, acaba tendo seus próprios mecanismos, que não necessariamente são iguais aos do ambiente em que vivemos. Portanto, é errado exigirmos de um trabalho estético uma conformidade com o nosso universo imediato.
Feitas essas reflexões preliminares, algumas considerações podem ser feitas.  Quando no post anterior se mencionou que o estupro praticado por Pedro Bala fazia parte da crise em que a personagem se encontrava, já deve ter ficado claro que tal ação deve ser entendida dentro da lógica de construção de Capitães da Areia. O livro não deve ser condenado por apresentar esse valor antiético deplorável, mas por não saber manipular adequadamente os elementos que fazem parte de sua narrativa. Da mesma forma, quando em Til, de José de Alencar, Jão Fera salta no lombo de vários queixadas para resgatar Berta, ou quando esta consegue dominar uma cobra apenas com a força do olhar, não se deve atirar pedras contra o romance, pois esses fatos são extremamente coerentes com a lógica de construção do texto, mesmo não tendo relação plausível nenhuma com o nosso mundo.
Em suma, devemos analisar uma obra pelo que está nela e saber que se trata de uma representação apenas. Ceci n’est pas une pipe. Não ter isso em mente é cair na zona de erro primário em que também se encontram aqueles que querem bater em atores só porque estes interpretam o papel de vilão de uma novela.

domingo, 7 de outubro de 2012

Ainda Capitães da Areia



No post anterior, apresentaram-se alguns valores que tornavam válida a leitura de Capitães da Areia (1937), cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013. Algumas observações complementares precisam ser feitas.
Em primeiro lugar, essa obra não subiria ao pódio dos melhores livros do autor (que por sua vez não ocuparia as primeiras colocações entre nossos literatos...). À frente dela há Mar Morto (1936), Dona Flor e seus Dois Maridos (1966), Gabriela, Cravo e Canela (1958) e o inigualável A Morte e a Morte de Quincas Berro D’Água (1961). Curiosamente, todos são textos em que o caráter panfletário, ou seja, a preocupação em transmitir ideais políticos não aparece. Há que se reconhecer, então, que é estranha sua presença (assim como a de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós) na lista de livros de dois grandes e respeitáveis vestibulares. Mas, já que está, desajuizado rejeitar esse livro e, (in)consequentemente, não observar alguns de seus ingredientes.
Já foi destacada a linguagem de Jorge Amado em Capitães da Areia. Em alguns momentos ela mostra o lirismo do narrador, emocionado com o assunto que aborda. Às vezes ele se mostra piegas, mas em boa parte delas é eficiente ao transmitir emoção. Além disso, há um intenso trabalho estético do texto, com o emprego de ritmo, musicalidade, figuras de linguagem, recorrência de termos, tornando sua prosa saborosamente poética. Por fim, a intenção em fazer a obra acessível ao maior número possível de leitores – o que é coerente com sua preocupação partidária – dá à coloquialidade um posto privilegiado, o que obtém resultado positivo, pois o autor é muito eficiente ao reproduzir o falar do povo.
Ademais, a coerência literária deve ser observada na narrativa dos meninos liderados por Pedro Bala. Como se trata de uma história com intenção de defender os ideais da revolução socialista, tudo nela precisa funcionar nesse diapasão. Dessa forma, colocar trombadinhas como heróis faz sentido, pois o que estão praticando não seria crime. Basta lembrar que Proudhon (1809-1865), um dos pensadores prediletos do anarquismo de esquerda, defendia que “toda propriedade é um roubo”.
Pode-se levantar como elemento que depõe contra a obra, entretanto, o estupro que o protagonista comete no final do capítulo “Docas”. É um acontecimento revoltante, sem dúvida, mas não há como negar que é fruto da confusão psicológica em que a personagem está e que só termina por complicar mais ainda o estado em que se encontra. Bala havia acabado de descobrir acontecimentos ligados à sua origem e principalmente ao seu pai, líder grevista assassinado por lutar pelos direitos dos trabalhadores. A violência sexual que o menino pratica é resultado da angústia e agonia em que a personagem se vê mergulhada. Na vida real é uma ação condenável. Mas se trata de literatura e precisa ser lida dentro do código estético estabelecido pelo autor. Do contrário, devemos mandar para o lixo obras infinitamente superiores como Memórias Póstumas de Brás Cubas com seu protagonista inútil e seu narrador petulante, autoritário e caprichoso; Viagens na Minha Terra com seu Carlos volúvel; Memórias de um Sargento de Milícias com sua ética flexível. Não devemos esquecer que arte é representação, não é a vida real. Ou, nos termos de René Magritte (1898-1967), “Ceci n’est pas un pipe”.


Percebe-se, pois, que a análise literária não deve se concentrar na ética praticada pelas personagens. Basta lembrar que em O Cortiço a canalhice pulula em todos os parágrafos e não transforma o romance em um feito deplorável do autor. Muito pelo contrário. Enfim, quando se observa a obra de Aluísio Azevedo, conclui-se que seu valor está na manipulação das estruturas literárias. Nesse rumo, se Capitães da Areia não é um ótimo romance, isso não se deve ao fato de lidar com ideais caducados do socialismo, com violência sexual ou com criminalidade. Isso se deve ao fato de Jorge Amado perder o controle de sua narrativa e forçar na história a entrada da utopia que defende de maneira a tornar o livro bobo. Não soube seguir o caminho de Drummond em A Rosa do Povo (1945), que defende o socialismo sem ser pedante, sem deixar de lado o valor estético de seus poemas.
Capitães da Areia é um bom romance. Para alguns, bastante humano, o que justificaria o sucesso que tem obtido desde sua estreia, empolgando muitos adolescentes até hoje. Possui defeitos deploráveis, principalmente no seu quarto final, o que dá a impressão de seu autor ter perdido o fôlego ou mesmo a inspiração apaixonante com que iniciara seu texto. Mas tais problemas não justificam que volte para a fogueira. Há o que se aproveitar nele.




quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Capitães da Areia: qual a razão de seu sucesso?




Publicado em 1937, Capitães da Areia, de Jorge Amado, é, entre os livros cobrados para as provas da FUVEST-UNICAMP 2013, aquele que tem aceitação mais fácil entre os vestibulandos. O curioso é que esse sucesso faz com que se deite uma vista grossa sobre a intenção do volume de divulgar os falecidos ideais da revolução socialista, o que é uma lição para que entendamos que a qualidade de uma obra de arte muitas vezes supera o contexto histórico que a inspirou.
Estabelecidos esses fatos, é necessário vislumbrar algumas características desse romance para que se possa entender os mecanismos de seu funcionamento e, por consequência, a razão de seu sucesso. A começar, deve-se ter em mente que esse livro é fruto de uma época em que seu autor estava ligado ao partido comunista. Dessa forma, esse texto é irmão de outra obra-prima do autor nesse setor: Jubiabá (1935). Por causa disso, quando se focaliza o enredo de cada um desses livros, vêm à tona alguns pontos importantes.
Jubiabá é a história de um lutador de boxe, que dá título ao livro, que, em meio a sua vida simples, passa por inúmeras peripécias, por vários momentos de emotividade e sensualidade, até que percebe que, se está na pobreza, não é por causas gratuitas, mas porque vive em um sistema injusto de exploração: o capitalismo. Dedica-se então à luta pela revolução socialista, que lhe é despertada no instante em que conhece a força que o trabalhador tem por meio da greve.
O parágrafo acima expõe um aspecto crítico na obra de Jorge Amado, principalmente na produção de recorte esquerdista: o esquema fixo. Tanto isso é verdade que, apenas com a mudança de elementos de superfície como personagens e espaço, esse esqueleto pode ser aplicado facilmente em Capitães da Areia. Tal faz entender a crítica que se faz de que o autor, descoberto um esquema de sucesso, passou a reproduzi-lo à exaustão. Não se está discutindo aqui o mérito ou demérito desse procedimento. O que se está tentando afirmar é que o romancista quer-se utilizar de todas as formas possíveis para garantir a transmissão de sua mensagem. Esse é o ponto que precisa ser analisado: tendo em vista um objetivo, Jorge Amado manipula um conjunto de elementos literários – o que foi apontado é apenas um entre outros elementos – para que obtenha êxito de comunicação.
Cabe aqui, então, uma metáfora insólita. O que acontece em Capitães da Areia é como se o grande autor baiano quisesse oferecer para o grande público um excelente macarrão, feito com aqueles que considera os melhores ingredientes. Entretanto, sabe que ninguém come macarrão puro, sem tempero algum. Em outras palavras, tem consciência de que, por mais justos que sejam os ideais socialistas, qualquer livro que ele componha apenas com a exposição das ideias desse sistema não terá grande número de leitores. Então ele aplica a essa massa um excelente molho – peripécias, sensualidade, lirismo, português coloquial brasileiro, alto nível poético de linguagem – para que, assim, seus ideais finalmente tenham vazão.
Dessa forma, deve ser aplicada na avaliação de Capitães da Areia a capacidade de seu autor de manipular a linguagem literária – e não o conteúdo que está sendo passado. Portanto, a análise dessa obra não deve se preocupar, portanto, com o valor do socialismo, se esse sistema tem ou não eficácia, ainda mais no mundo de hoje. Olhar para isso é datar a obra – e o sucesso que ela ainda detém mostra que não ficou presa às fronteiras daquele tempo.  O que se tem de observar é como esse romance, dentro do universo de valores que se propôs abordar, conseguiu manipulá-los. Essa é a essência da análise literária, e que não é difícil, pois está à altura de qualquer estudante que terminou com competência o Ensino Médio.