sábado, 28 de novembro de 2015

FUVEST 2016: breves informações

No próximo domingo será realizada a prova da FUVEST, um dos vestibulares mais importantes do país. Aquele que vai prestá-la precisa entender que, pelo menos em Português, nos últimos anos essa avaliação tem-se mostrado sem sustos, artimanhas, mistérios ou segredos. Sua intenção não é descobrir entre os estudantes potenciais filólogos, linguistas, gramáticos ou literatos, mas apenas selecionar quem tem competência linguística adequada para as diversas carreiras do ensino superior, não importa se de humanas, biológicas ou exatas.
Dessa forma, por exemplo, as questões de literatura não vão se concentrar em literatices sobre quem escreveu tal livro ou qual o nome de tal período estético. O que se cobrará é o reconhecimento dos mecanismos de funcionamento do texto literário. Assim, pode-se indagar o que a repetição de um evento (consoante, rima, vocábulo, ação, o que quer que seja) tem a ver com a dinâmica da obra em análise.
Nesse ponto, há algo que ressaltar. Já que todo texto literário é um produto social, pode-se cobrar do vestibulando o reconhecimento da relação que um romance ou um poema tem com o seu momento histórico. Assim, o banditismo de Jão Fera em Til é um típico sinal de que a região em que ele se encontra, o interior de São Paulo, ainda não havia se civilizado por completo, abrindo caminho para a utilização desses recursos violentos para a manutenção de uma certa ordem.  Ou então, as plantações de Luís Galvão (cana e café) indicam processos econômicos a que o Brasil se havia dedicado. Até mesmo a posição de sua fazenda revela a maneira como essa região se povoou, concentrada inicialmente em atender a zona aurífera de Minas Gerais. Entretanto, não só de História se viverá. É possível fazer uma ponte com Geografia para entender que o tipo de solo que Alencar chama de rico e ferruginoso é nada mais do que a célebre terra roxa.
Além disso, o candidato deve estar preparado para questões que exigirão a comparação entre as nove obras da lista de livros. Assim, deverá captar, por exemplo, que a presença do comerciante italiano em Til e em O Cortiço revela flagrantes da composição de nossa população. Ou então que a escravidão justifica o comportamento cínico de Brás Cubas ou a desvalorização do trabalho rural como se vê em Jão Fera, de Til, e Jerônimo, de O Cortiço. Sem falar que deixa suas feridas em Memórias de um Sargento de Milícias e Sentimento do Mundo. Enfim, serão questões que funcionarão não apenas como verificação de leitura, mas principalmente de compreensão. Nesse ponto, é bastante válido reler os posts dO Magriço Cibernético dedicados a cada um desses livros (21 de janeiro24 de março29 de abril03 de junho17 de junho24 de junho12 de agosto16 de agosto02 de setembro09 de setembro26 de setembro03 de outubro07 de outubro17 de outubro e 28 de outubro).
É também importante lembrar que a FUVEST cobra a compreensão dos mecanismos de funcionamento de uma obra literária e não simplesmente a reprodução de clichês analíticos. Assim, por exemplo, em O Cortiço, obra que todo mundo facilmente associa aos ditames do Naturalismo, pode-se cobrar características comuns ao Romantismo, como a exuberância da natureza brasileira ou a sensualidade feminina associada ao ambiente em que a mulher vive. Ou em Capitães da Areia, há que se lembrar que, apesar de se tratar de um romance do regionalismo modernista, a relação entre Pedro Bala e Dora é uma atualização do Romantismo.
Quanto às questões de interpretação de textos que não fazem parte da lista de obras da FUVEST, o que inclui os literários e os não-literários, o esquema será basicamente o mesmo: o candidato será instado a observar e identificar os mecanismos de funcionamento da linguagem. Assim, será cobrada não só a compreensão do significado de um texto, mas também a busca, por exemplo, de uma palavra que sintetize as ideias apresentadas. Ou então, de uma expressão que as repita em outras palavras. Ou ainda as manifestações dos diferentes níveis de linguagem, principalmente o formal e o coloquial, assim como a transferência de uma frase de um registro para outro. Mas o que se tem mostrado mais interessante é que muitas vezes essa prova exige que o candidato observe um fato apresentado no enunciado para, sem se preocupar em classificá-lo ou rotulá-lo, localizar uma alternativa em que haja uma frase como o mesmo mecanismo linguístico.
Quanto à Gramática, percebe-se que não há mais espaço para filigranas como a cobrança do tipo de sujeito ou oração, ou a identificação da diferença entre um complemento nominal e um adjunto adnominal, entre um predicado verbal e um predicado nominal. As questões têm-se mostrado mais inteligentes, na medida em que mais razoáveis, pois cobram o que é útil para qualquer profissional, não somente para os especialistas em língua. Assim, quando aparecem testes sobre regência, concordância, crase, nota-se que a resposta é obtida sem absurdos conhecimentos gramatiqueiros, mas com um pouco de raciocínio e intelecção textual. No mesmo campo estão questões que pedem para que o candidato indique o valor de uma palavra, principalmente o de um pronome. Alcança a resposta quem compreende o contexto em que ela está inserida. Ou seja, quem sabe ler.
Enfim, é nesse ponto que a FUVEST se tem consagrado como um excelente exame. É uma prova que apenas verifica quem tem competência linguística. Essa habilidade será essencial para quem quiser estudar com eficiência na vida acadêmica. Qualquer que seja a carreira.


Resumos, análises e comparações.
Para comprar, 

domingo, 18 de outubro de 2015

ENEM 2016 Orientações breves

No próximo final de semana ocorre mais uma edição do ENEM, prova que, apesar dos tropeços dos últimos tempos, conseguiu ganhar importância no universo dos vestibulandos.  Infelizmente, de um valioso termômetro do nível de ensino do País, transformou-se em um gigantesco vestibular, além de ferramenta de marketing de inúmeras utilidades. Entretanto, é mais útil discutir o que o examinando precisa ter em mente neste domingo na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
O ENEM avalia competências e habilidades (o que não significa que não tenha vez por outra um lado conteudista). Assim, o que o candidato precisa demonstrar é sua capacidade de leitura e interpretação de diferentes tipos de texto, a matéria-prima da prova. Dessa forma, é importante reconhecer e compreender diversas modalidades textuais e captar como elas funcionam socialmente.  Portanto, deve-se entender, por exemplo, que um cartaz apresenta concisão e ligação entre imagem e código verbal em nome da comunicação imediata, ou que um editorial apresenta elementos argumentativos, que uma propaganda tem preocupação em fixar a mensagem na mente no leitor, que uma charge sintetiza em imagem algum tema de clamor social.
Além disso, o candidato deve saber relacionar diversas espécies de texto, verbais ou imagéticos, buscando não apenas semelhanças, mas também diferenças. Ou então reconhecer neles quais são os objetivos do seu autor e a que público se dirige. Num romance de José de Alencar, por exemplo, a descrição idealizada pode servir para revelar que o escritor ou queria sofisticar o seu leitor, ou tinha em mente que quem degustava sua obra era preocupado com ostentação de luxo. Por fim, deve-se também detectar que estratégias um texto possui para influenciar o seu receptor. Basta lembrar que é comum propagandas de cerveja sempre apresentarem gente feliz degustando o produto, dando a entender que se trataria de um vital elixir da bem-aventurança.
No fundo, o que o estudante vai ter de captar são os mecanismos de funcionamento de um texto, perceber que palavras servem para conectar ou retomar ideias, quais termos têm o dom de resumir ou simbolizar pensamentos ou conjunto de valores. Assim, é de vital importância saber detectar a função da linguagem predominante - quando em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador confessa no primeiro capítulo que por um bom tempo hesitou se começava sua biografia pelo nascimento ou pela morte, ele fez com que a narrativa discorresse sobre ela mesma, o que configura a função metalinguística. Ou então notar como a linguagem pode ser usada para fazer com que o leitor preste atenção à sua construção, configurando a função poética, muito bem vista, por exemplo, no largo emprego de proparoxítonas em "Balada do Mangue", de Vinicius de Moraes, servindo para representar a situação anormal e canhestra de a feminilidade ser usada para prostituição. Além disso, o aluno pode ser instigado a reconhecer a capacidade que os textos têm de preservar nossa identidade e nosso patrimônio cultural. É o que se vê, por exemplo, no poema "Não Sei Dançar", de Manuel Bandeira, ou no romance Amar, Verbo Intransitivo, de Mário Andrade, em que se apresenta o corso: em ambos é descriTo como se festejava o Carnaval em tempos passados.

Quadro de Portinari retratando a zona de prostituição do Mangue no Rio de Janeiro.
Ainda nesse escopo, quem vai prestar ENEM precisa levar em consideração que a língua é um instrumento social e, portanto, suscetível a variações ligadas ao contexto em que é utilizada. Logo, não existe um padrão único, mas vários, que são os níveis de linguagem, todos legítimos, cabendo apenas observar em que situações são adequados. Deve-se então aceitar que a publicidade, entre tantos outros gêneros, utiliza linguagem coloquial para garantir maior alcance à sua mensagem. O que não significa que o padrão culto perdeu sua utilidade: há momentos em que ele é vital, como na documentação científica ou na redação de regulamentos.
Com relação ao corpo, não se deve esquecer que ele é capaz de carregar e transmitir significados, promovendo a criação de identidade, a integração social e a satisfação de necessidades cotidianas. Quando se dança, por exemplo, pode haver uma preocupação em seduzir, divertir, assim como quando se pratica esporte pode estar-se buscando conhecer pessoas ou mesmo competir e garantir a primazia dentro de um grupo social. Ou ainda garantir melhor qualidade de vida. Nesse aspecto, há sempre uma questão que apresenta um texto que versa sobre a necessidade de mudança de hábitos corporais em nome da saúde.
O ENEM cobra também a análise da arte em suas múltiplas manifestações, todas  legítimas, não importando se é um quadro de Cézanne, um concerto de Bach, um grafite nos muros de São Paulo ou o funk erotizado e marginal dos morros do Rio de Janeiro ou de ostentação da periferia de São Paulo. Seguindo essa linha, é vital entender que o conceito de beleza, essencial para a manifestação artística, não é universal, pois é um fenômeno cultural e, portanto, relativo: tanto é  bela uma top model como Gisele Bündchen quanto uma miss plus size ou mesmo uma mulher de pescoço de girafa da Tailândia.


Dentro do campo artístico, atenção especial deve ser dada à literatura. É importante perceber que esse tipo de produção está sempre inserido em seu momento e por isso revela características do seu contexto histórico, social e político. Assim, deve-se lembrar, por exemplo, que o Romantismo, surgido 14 anos após a independência do Brasil, acaba naturalmente expressando ideais nacionalistas. Ou que o Primeiro Tempo Modernista, surgido numa época em que a industrialização de São Paulo já se estava mostrando marcante, acabaria tendo tendências futuristas. Mas é também importante notar dentro dos textos literários quais concepções de sua função ou do processo de construção eles apresentam: um romântico acreditaria que sua arte é essencialmente emoção e, se a obra conseguiu tocar o coração do leitor, já cumpriu sua missão estética, sem que haja preocupação com a forma, o que é o oposto da visão parnasiana, que põe em primeiro plano o artesanato da palavra, ou do Realismo, que privilegia a crítica social. Além disso, é necessário lembrar que certos temas não se prendem a uma escola literária: a valorização da cultura popular, por exemplo, pode ser vista no Romantismo e no Modernismo, assim como o endeusamento da mulher está presente no Trovadorismo, no Classicismo, no Romantismo e no Modernismo de Vinicius de Moraes.
Ademais, o candidato precisa estar antenado às novas tecnologias, sabendo identificá-las, além de mostrar-se capaz de entender seu funcionamento e o impacto social que elas provocam na comunicação e na difusão de conhecimento. De fato, a internet tem servido para que ideias circulem de maneira espantosa, não apenas nas redes sociais, em que pessoas trocam informações, opiniões e conhecimento, mas também em comunicadores instantâneos (as chamadas mídias síncronas) ou e-mail e fóruns (as chamadas mídias assíncronas). Basta lembrar como as manifestações de rua de junho de 2013 ou mesmo as últimas eleições foram alimentadas pelo Twitter e Facebook. Ou então como o contato com arte e entretenimento ganhou novas dimensões, pois a qualquer hora é possível ver um programa de 2014 ou de 1969 pelo Youtube ou Netflix. Livros podem ser lidos em pdf, músicas ouvidas em mp3, o que faz a produção intelectual alcançar um nível antes inimaginável, ao mesmo tempo em que questões como direitos autorais passam a ser repensadas.
Importante destacar: muita atenção deve ser dada à dinâmica de uma questão do ENEM, muito diferente da de outros vestibulares. Esse grande exame nacional apresentará sempre um texto-estímulo, um enunciado que inicialmente o contextualiza ou o resume e – o mais importante – uma última oração que apresenta um comando que deve ser atendido. Vejamos um exemplo:

(Disponível em www.ccsp.com.br
Acesso em: 26 jul.2010 – adaptado.)

O anúncio publicitário está internamente ligado ao ideário de consumo quando sua função é vender um produto. No texto apresentado, utilizam-se elementos linguísticos e extralinguísticos para divulgar a atração “Noites do Terror”, de um parque de diversões. O entendimento da propaganda requer do leitor
a)      a identificação com o público-alvo a que se destina o anúncio.
b)      a avaliação da imagem como uma sátira às atrações de terror.
c)      a atenção para a imagem da parte do corpo humano selecionada aleatoriamente.
d)      o reconhecimento do intertexto entre a publicidade e um dito popular.
e)      a percepção do sentido da expressão “noites do terror”, equivalente à expressão “noites de terror”.

Note que essa questão exige em primeiro lugar que se entenda que a imagem faz parte de uma propaganda. Além disso, deve-se perceber o que está sendo retratado: um pé com uma etiqueta colada ao dedo, o que remete ao processo de identificação de cadáveres em um necrotério. Dessa forma, o estudante com competência linguística capta uma referência a algo macabro – coerente com o produto divulgado. Além disso, o examinando tem que mostrar inteligência ao notar que a grande jogada do anúncio publicitário é tornar sua mensagem chamativa e para isso é bastante comum o emprego de jogos de linguagem, como o que aconteceu na frase “Quem é morto sempre aparece”, que surpreende ao inverter o dito popular “Quem é vivo sempre aparece”. Assim, depois de feita essa análise, o candidato já tem em mente qual é a resposta antes mesmo de saber as alternativas apresentadas. Seu trabalho será entender a proposta, apresentada na última oração do enunciado, e a partir de então meramente localizar a resposta correta, sem se preocupar com a eliminação das erradas. Quem não entende essa dinâmica acaba muitas vezes caindo em um problema muito comum: achar que mais de uma alternativa está certa. Na verdade, quem incorre nesse erro, ou não conhece a matéria cobrada, ou não entende o texto-estímulo, ou (aqui está a falha comum e mais simples de ser evitada) não leu atentamente o comando apresentado na última oração do enunciado.  
Por fim, há que se tomar cuidado quanto à redação, que tradicionalmente lida com problemas sociais. O examinando deverá primeiramente entender qual a proposta apresentada para então buscar no conjunto de textos-estímulo ideias que embasarão o seu ponto de vista dissertativo, sempre tendo em mente uma intervenção que solucione o problema debatido e que respeite os direitos humanos.
Enfim, a proposta do ENEM, apesar dos tropeços que o arranharam, é muito bem intencionada: avaliar o aluno dotado de competência linguística, aquela que fará, pois, um profissional e um cidadão eficiente. Resta então aO Magriço Cibernético desejar que seus leitores tenham um excelente desempenho neste final de semana. Boa prova a todos!



Resumos, análises, comparações 
e questões de vestibular, todas gabaritadas.
Para comprar o seu, 

domingo, 19 de abril de 2015

As lições dO Casal Arnolfini


O quadro acima, O Casal Arnolfini, obra prima que o flamengo Jan van Eyck apresentou em 1434, é um exemplo bastante salutar de como um texto só consegue funcionar a partir da ligação estabelecida entre seus diferentes elementos. Seguindo então esse raciocínio, o que poderia então ser lido nele?
Como o título indica, trata-se de um retrato de uma união amorosa, o que se infere pelas mãos unidas. Entretanto, outros gestos são bastante significativos. A mão que ela repousa sobre a dele indica que o casamento não é uma prisão, mas uma entrega em que predominam serenidade e confiança, reforçadas pela expressão facial das duas figuras. Além disso, a cabeça levemente inclinada da mulher revela submissão isenta de humilhação. Outro elemento gestual valioso é a maneira como a figura feminina avoluma o vestido para sugerir gravidez. Destaca-se aqui uma das funções primordiais do matrimônio: a produção de herdeiros.
No entanto, a observação desses elementos que saltam à vista, e que, portanto, são superficiais, diz pouco sobre a grandiosidade dessa obra. Uma leitura só se faz completa quando outros ingredientes, menos rasos, são ativados. E muitos deles têm a ver com o contexto em que o material analisado está inserido.
Uma primeira frente de análise, e predileta para muitos, é a historiográfica. Quem são os retratados? Como era a sociedade deles? Sabe-se que o casal é Giovanni de Arrigo Arnolfini e Giovanna Cenami, jovens representantes de uma rica classe de mercadores italianos. O casamento constitui uma união de interesses econômicos bastante proveitosa, mas que teve como resultado uma derrocada social: ela não conseguiu engravidar e, portanto, garantir um herdeiro; ele foi processado por uma amante que se sentiu prejudicada ao ser preterida.
No entanto, esses fatos enriquecem a obra apenas de curiosidades que resvalam o plano do mexerico, não dando conta da grandiosidade estética do quadro. Torna-se necessário, portanto, refinar a abordagem, deixando de lado o meramente factual e buscando o analítico, associando-o principalmente ao contexto cultural. No presente caso, esse é o caminho mais correto, pois a pintura flamenga do século XV consagrou-se por fazer com que objetos do cotidiano aparecessem não como mero detalhismo, mas como simbologia com a função de transmitir ensinamentos.
Por se tratar de um quadro de casamento, a figura do cachorro entre o senhor e a senhor Arnolfini é bastante significativa. Trata-se de um animal que tradicionalmente é associado a companheirismo e fidelidade, qualidades que devem nortear qualquer matrimônio. Essa ideia também está presente na única vela do lustre, que conota o compromisso de envolvimento assumido para uma só pessoa.
Esse engrandecimento do casamento atinge o nível do sagrado. Prova disso é que o casal está descalço, indicando que o solo em que estão pisando, o quarto (note que ao fundo se vê uma cama com roupas vermelhas) está sacramentado. Interessante é notar que ele deixou seus calçados de madeira no canto inferior esquerdo do quadro, quase saindo – sinal de que o homem está voltado para o mundo externo; enquanto ela deixou seus calçados vermelhos ao fundo, bem para dentro do cômodo – sinal de que a mulher está voltada para o mundo interno, doméstico.
Entre o espelho e lustre encontra-se em latim, em letras góticas (tipo oficial das documentações oficiais de então), a frase “Jan van Eyck esteve aqui em 1434”. Estudiosos veem nessa inscrição uma preocupação em mostrar que o quadro poderia servir como documento de casamento, servindo o próprio pintor como testemunha (não é à toa que ele aparece refletido – assim como o casal – no espelho). Reforça também esse caráter sagrado a única vela do lustre, simbolizando agora a presença de Deus, o pai todo poderoso como o único a ser venerado. E sobre a cabeceira da cama está a imagem de uma santa, que não se sabe ao certo se é Santa Margarida ou Santa Marta (a vassoura ao lado da entidade depõe a favor desta última). Ambas são padroeiras das donas de casa e do bom parto.
Já que se mencionou a preocupação com o ato de parir, um dos objetivos do matrimônio, é interessante notar que outras simbologias entram em ação reforçando esse sentido no quadro. Mais uma vez, cita-se a única vela do lustre, que agora ganha novo significado: o da fertilidade. O mesmo ocorre com os pés do senhor Arnolfini, que revelariam uma superstição da época: entrar descalço no quarto de núpcias garantiria fertilidade. O vermelho da roupa de cama é outro elemento que carrega a mesma simbologia.
Não se deve esquecer também que para muitos cristãos o casamento está ligado à sexualidade, fator que provocou a expulsão do Paraíso. Há referência a isso na laranja à janela, que não só está ligada à origem mediterrânea do casal, como também é associada ao fruto proibido. Essa união, para não incorrer em impureza, precisa submeter-se aos ditames do cristianismo. Daí o espelho com dez das quatorze estações da cruz, lembrando que Cristo sacrificou-se por nós para nos expurgar desse pecado original. E essa purificação também está simbolizada no rosário de cristal ao lado do espelho, típico presente que à época um noivo dava para sua noiva.
Ainda assim, o quadro que enfoca a união de dois membros representantes de famílias de mercadores riquíssimas não ignora as questões econômicas. Os dois jovens fazem questão de mostrar que não são estouvados, mas precavidos. Têm pé no chão, conotativa e denotativamente. Eles mostram que têm consciência de que uma união só se pode efetivar quando se tem equilíbrio financeiro. É o que as vestes que usam denotam, pois são refinadas para o padrão da época. É o que apontam as laranjas à janela, frutas até então caríssimas. É o que mostra o luxuosíssimo tapete de Anatólia ao pé da cama. Eles têm posses, por isso podem casar-se.  
Todos esses elementos arrolados indicam que uma leitura eficiente só é possível quando se presta atenção à articulação de elementos de um texto. Essa ligação tanto se dá no campo interno de uma obra quanto no externo, este último ligado ao contexto. E tal exercício só se faz competente quando se tem um bom repertório cultural. O que equivale a dizer que quanto mais se lê, mais conteúdo se adquire e melhor se lê.

domingo, 12 de abril de 2015

O sorriso de Mona Lisa: outra lição de texto



Em 22 de março de 2015, O Magriço Cibernético aproveitou o quadro Mona Lisa, que Leonardo da Vinci pintou por volta de 1505, para abordar aspectos aos quais todos devem prestar atenção durante o exercício de leitura. Tratava-se naquela ocasião de destacar fatores intratextuais. Hoje, a proposta é utilizar a mesma obra para discutir a relação estabelecida com elementos extratextuais, importantes para a arte da interpretação.
Durante a análise de um texto, é válido buscar ingredientes que estão fora dele para atribuir-lhe um valor mais completo. E esse esforço vem sendo feito durante séculos para explicar o misterioso sorriso de Mona Lisa. Pode-se, por exemplo, lembrar que essa obra pertence ao Renascimento, período em que foram recuperados ideais da cultura clássica como os ligados a razão, harmonia e equilíbrio. Dessa forma, a expressão facial da retratada atenderia a esse universo de valores, pois representaria o princípio de serenidade a que toda mulher deveria submeter-se.
Já durante o Romantismo outro conjunto de ditames subiu à tona, destacando a imagem da superioridade feminina graças a um suposto princípio de mistério e sedução. O enigmático sorriso de Mona Lisa então passaria a simbolizar essa postura que todas deveriam atingir, ou, pelo menos, valorizar.
Com o surgimento desse novo universo de valores, ampliou-se a autorização para a intervenção de outros elementos externos na significação do célebre quadro renascentista. Aqueles que bebem da fonte da psicanálise, crentes na teoria freudiana da bissexualidade humana, enxergam na representação da Gioconda o rosto do próprio pintor. Para tanto, baseiam-se no fato de o rosto de Leonardo da Vinci, sobreposto ao da retratada, conseguir um encaixe perfeito. Como a forma e a proporção dos elementos da face são exclusivos de uma pessoa, obter-se-ia uma prova de que a célebre figura feminina nada mais é o do que o autor travestido. O mais curioso é que o próprio Freud tinha outra visão, acreditando que a figura exibida era a projeção da imagem da mãe do artista, morta ainda na infância deste.
Os fanáticos por Medicina, ou pelo menos por Biologia, descarregam nessa obra outra sorte de sentidos. Há os que entendem que os lábios da Mona Lisa expressariam uma tensão típica de quem sofre de bruxismo. Outros defendem que são sinal de que a personagem demonstraria sinais de um leve acidente vascular cerebral, o conhecido avc ou derrame. Há os que asseguram que ela teria sido acometida por paralisia facial. Alguns, mais recatados, creem que a modelo sofria de dor de dente. Existem ainda os que, dentro desse campo, supõem que a forma misteriosa que os lábios fazem se deveria a nada menos do que o incômodo pelo uso de dentes postiços. Por fim, não se pode esquecer aqueles que atribuem a fonte desse enigma a uma mera questão de saúde de da Vinci, que, sofrendo de degeneração da mácula, teria composto sua obra prima sob influência de sua visão periférica.
Ainda no campo do reducionismo interpretativo, existem os que dizem que o enigmático sorriso é apenas o efeito do tempo alterando fisicamente a pintura, produzindo ranhuras na tinta, o que alterou o jogo entre luz e sombra.
A mais nova interpretação de que se tem notícia vem da neurolinguística, ciência que tem atraído a atenção da mídia nos últimos tempos. Para esse setor, trata-se da maneira como a interpretação pode ser reação de estímulos externos. Quando olhamos para um retrato, 5% de nossa visão, preocupada com foco, concentram-se nos olhos – que em Mona Lisa estão iluminados. Nesse exercício de atenção, a visão periférica, que ocupa 95% desse trabalho sensorial, fica atraída pelos elementos escuros da pintura, o que provoca uma leve distorção na percepção que temos dos lábios da Gioconda – daí a sensação de seu sorriso. A prova dessa teoria é que, quando se focaliza apenas a boca dessa mulher, todo esse conjunto de distratores perde o efeito, fazendo sumir o sorriso.
Toda essa miríade de teorias dá a impressão de que a leitura de um texto é um exercício ao mesmo tempo caótico e permissivo. Na verdade, a busca de elementos externos tem que encontrar correspondência com os internos. Por mais interessante que seja uma teoria, se ela não encontrar elementos dentro do próprio texto que a sustentem, tem de ser abandonada, mesmo que isso represente um exercício doloroso. Em outras palavras, devemos buscar em um texto o que está nele, sem transferir para ele nossas crenças, neuroses ou paixões. Não respeitar isso é atentar contra a verdade. E impedir que um texto sorria para nós.






domingo, 29 de março de 2015

Bach: o engrandecedor de almas


Em 31 de março (ou 21 de março, conforme o calendário adotado) comemoramos o nascimento de Johann Sebastian Bach (1685-1750), para muitos o maior nome da música erudita. É por esse motivo que O Magriço Cibernético lembra uma data tão valiosa trazendo algumas obras capazes de mostrar o talento desse grande artista.
A primeira delas, exibida acima, é o Magnificat (1723), cuja letra é bastante significativa. Trata-se da primeira frase que Maria diz, na Bíblia, ao receber do anjo Gabriel a notícia de que será mãe de Cristo: “Magnificat anima mea Dominum” (“Minha alma engrandece o Senhor”). De certa forma, serve como representação do papel de Bach na cultura universal: sua habilidade elevou a música a padrões praticamente divinos.


Na verdade, a técnica desse compositor atingiu níveis folclóricos ou até mesmo míticos no universo musical. Reza a lenda quem em 07 de maio de 1747 Bach encontrou-se com o rei Frederico II da Prússia, que exigiu do artista a criação de uma música a partir de um tema até então visto como infrutífero. A intenção do monarca, ao nem deixar Bach descansar de tão longa viagem que acabara de fazer, era bastante clara: rebaixá-lo, mostrando-o como um músico ultrapassado. Inútil: o artista conseguiu criá-la de improviso. No entanto, o regente, não contente, exigiu mais outra peça. O desafiado sabiamente pediu um tempo para descanso – ou para fugir da armadilha. Dias depois, a humilhação mudava de mão: Bach apresentara não uma, mas mais de uma dúzia de músicas (uma delas uma sonata completa), todas variações do mesmo tema.
O mais incrível é que essas habilidades eram fruto de um cérebro extremamente prático. Bach certa vez se queixou da falta de falecimentos onde estava, pois isso diminuía a quantidade de encomendas musicais, acarretando-lhe prejuízo econômico. É interessante ter noção da existência de um espírito tão pragmático para paradoxalmente desdivinizar sua produção e enaltecê-la de forma mais justa. Em outras palavras, devemos tirar os clichês simplistas e, assim, enxergar melhor sua grandiosidade.
Como exemplo desse esforço de desembaçamento da visão sobre a obra de Bach, basta lembrar a arquifamosa Tocata e Fuga em Ré Menor (composta entre 1703 e 1707). Trata-se de uma peça a que sempre se associou a ideia de soturnidade, de fantasmagoria, chegando-se a imaginar que fora composta em algum momento conturbado. Na verdade, sua criação se dera em uma das fases mais felizes do compositor. E sua intenção era apenas experimentar, como em um exercício lúdico, as múltiplas possibilidades de emprego do órgão (ou do violino, já que há quem imagine que ela tenha sido composta originalmente para tal instrumento):


Talvez esteja neste ponto a riqueza da arte de Bach: ele consegue ser tão excelso partindo de princípios tão pragmáticos, muitas vezes praticamente matemáticos. É o que se nota em O Cravo Bem Temperado (1722), conjunto de peças para teclado composto apenas para lição ou mero entretenimento. Mais uma vez, sua arte foi de suplantação, a ponto de, no exemplo a seguir, nascer de uma mente protestante e acabar, no nosso imaginário (graças, 137 anos depois, ao compositor francês Charles Gounod), sendo associada à Virgem Maria:


Dessa forma, podemos entender que a arte de Bach é capaz de extravasar limites. Não é à toa que nos idos dos anos de 1970 a sonda Voyager, da NASA, carrega em um disco dourado o Concerto Brandemburguês número 2 (1721), para que, na remota hipótese de a astronave ser interceptada por civilizações alienígenas, permita que se conheça o que de melhor a espécie humana produziu. A gravação que será ouvida pelos extraterrestres é exatamente a seguinte:


O inusitado é que esse e os outros cinco concertos de Brandemburgo, considerados o mais perfeito exemplo da música barroca, foram apresentados por Bach a Cristóvão Ludovico de Brandemburgo-Schwedt, marquês de Brandenburgo, que nem lhes deu atenção, deixando-os esquecidos em sua biblioteca, só sendo redescobertos em meados do século XIX. Hoje, nem se fala mais desse nobre, ao passo que o desprezado atingiu fama que se poderá dizer interestelar.
A conclusão a que se chega é necessariamente de estilo repetitivo, pois a música de Bach é de engrandecimento múltiplo. Não apenas ele engrandeceu esse trabalho estético, como se engrandeceu como homem e artista. Engrandeceu também a relação entre o engenho e a arte, permitindo que, a partir de ingredientes tão pragmáticos, o excelso fosse alcançando. O resultado final é o engrandecimento de nossa alma, que assume nada menos do que a obrigação de engrandecer nesta data esse inigualável músico. Só ele é capaz de nos fazer dizer, com dignidade, como na música a seguir, continuação de Magnificat, que “o meu [nosso] espírito se exultou” (“Et exultavit spiritus meus”):




domingo, 22 de março de 2015

O Sorriso de Mona Lisa: uma lição de texto

A eficiência tanto na leitura quanto na redação só é obtida quando se tem em mente que um texto não é apenas um amontado de frases e ideias, mas um conjunto que se sustenta pela ligação entre tais elementos. Essa é uma regra sagrada que precisa ser lembrada sempre, pois dela depende a compreensão do mundo e de nosso papel nele. E para exemplificação de como esses mecanismos de articulação garantem significação, seria interessante a análise do arquifamoso Mona Lisa, que Leonardo da Vinci (1452-1519) pintou por volta de 1505.
Inicialmente, quando olhamos para a paisagem que está atrás da Gioconda, notamos um fenômeno interessante: a linha do horizonte à direita é mais alta que a da esquerda. Cria-se então uma perspectiva impossível, estando o ponto de vista da direita mais alto que o da esquerda.
No entanto, a distorção provocada pelos horizontes impossíveis não é uma falha. Na verdade, é um ingrediente muito bem planejado, uma peça importante na articulação do texto imagético e que contribui para sua significação. Para comprovar essa qualidade, basta observar que não é à toa que a união das duas perspectivas se dê atrás da cabeça da nobre florentina. Trata-se de uma técnica que destaca justamente essa região do corpo da retratada.
Mas, qual a finalidade de se realçar o rosto da Gioconda? A resposta a essa questão é guiada pelo próprio quadro, que orienta a nossa visão. O horizonte à direita faz nosso olhar movimentar-se para cima, ao passo que o horizonte à esquerda produz um encaminhamento contrário. Assim, temos a impressão de que os lábios de Mona Lisa se elevam ligeiramente à direita, como se estivessem prestes a sorrir. E esse gesto é dirigido a nós, o que se nota pelos olhos, coincidentemente (ou não) também voltados para direita.
Dessa forma, o sorriso de Mona Lisa é um signo que não funciona sozinho. Se eliminarmos todos os elementos do quadro e ficarmos apenas com os lábios da Gioconda, já não teremos mais certeza, muito menos a impressão de que ela está sorrindo. Esse gesto só aparece quando conjugado a outros elementos, como os horizontes e o olhar da florentina.

A conclusão que se tira é cabal e igualmente vital para o grato trabalho de leitura e redação: Mona Lisa só sorrirá para nós, ou seja, um texto só entregará seu sentido quando observarmos a ligação que há entre os diferentes elementos que o compõem.