sábado, 3 de março de 2012

Dissonância textual - um recurso positivo

Nos posts anteriores ficou suficentemente claro que, para se compreender um texto, é essencial que se entenda que seu sentido é obtido graças à ligação dos vários elementos que o compõem. Assim, não se pode dar atenção a um único ingrediente em detrimento do conjunto. Ainda assim, de acordo com o último post, um item sozinho pode, quando mal utilizado, inadvertidamente comprometer o significado de um texto ao permitir associações inesperadas e indesejadas.
Entretanto, a dissonância entre ingredientes textuais nem sempre é negativa. Na verdade, em alguns casos ela pode gerar resultados bastante positivos, ou pelo menos interessantes. É o que ocorre no vídeo apresentado acima. Nele, utilizou-se uma seleção de cenas do filme Mary Poppins (1964), que narra a história de uma família que tem a sua rotina de rigidez e frieza alterada graças à chegada de uma babá (a que dá nome à obra) cheia de magia e diversão. Trata-se, portanto, de uma melodiosa fantasia infantil. Mas a utilização de uma música de suspense desmancha toda essa leveza, dando a impressão de que se trata de uma película sombria e assustadora.
Procedimento semelhante está presente no trecho a seguir, do delicioso conto “Carmela”, de Brás, Bexiga e Barra Funda (1927), de Antônio de Alcântara Machado:
Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2º.
Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.
No excerto acima há um efeito humorístico muito fino e sutil. Para captá-lo, basta observar que se compôs um quadro que beira o extremo do clichê das narrativas românticas de amor: castelo imponente, ladeira íngreme, ginete fogoso, capacete prateado com plumas brancas, formosa donzela raptada e desmaiada com seus cabelos entregues ao vento. Reforça o espetáculo de lugares comuns a anteposição dos adjetivos (“imponente castelo”, “íngreme ladeira”, “apaixonado caçula”, “formosa donzela”), que cria um tom altissonante ou pomposo, ainda que um tanto forçado. Todo esse clima é engenhosamente quebrado com uma única palavra, que destoa radicalmente do contexto: “carambola”. Sua posição de destaque, no final do parágrafo e de toda a descrição, indica que não se trata de uma falha, mas de um efeito que foi buscado intencionalmente.
Em suma, o emprego da dissonância pode provocar efeitos bastante ricos e válidos em um texto. Você seria capaz de perceber como esse expediente é utilizado no vídeo abaixo, “Beautiful World” (1981), do grupo Devo?

7 comentários:

  1. Um robo(?) mostra na TV uma seleção de videos com uma música que fala sobre um mundo perfeito onde as pessoas são maravilhosas e se preocupam uma com as outras, nesses videos aparecem pessoas felizes e algumas tragédias que mudam totalmente o sentido da música. Pelo o que eu entendi eles estão querendo revelar como as coisas funcionam na TV, eles mostram uma felicidade falsa com muita beleza e "glamour", escondem as tragédias, corrupção, violencia, guerras, etc. A música chega ser ironica, fala sobre um mundo perfeito mostra no clipe que na verdade ele é cheio de imperfeições. Pelo que eu entendi parece que no final ele deixa claro na letra da música que para ele o mundo não é perfeito. É isso? '-'

    Esse também é dissonância, né?
    http://www.youtube.com/watch?v=ClLr5W_l82s

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    1. Cara Miss Brightiside, você fez uma análise muito boa. E eu até agradeço você ter visto uma coisa que eu não havia notado - tudo é exibido por um aparelho de TV. Parabéns. E quanto à outra cena, há sim dissonância entre a música-tema de Cantando na Chuva e a violência que é mostrada.

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  2. Acredito que ficou bem claro o contraste e o efeito criado como observado pela Miss Brightiside, entretanto me parece que desde o começo a beleza adquire um caráter superficial, ao ser posta em paralelo a elementos artificiais da época, como a TV e o painel eletrônico, o JetPack e o avião,e mais marcadamente a máscara com expressões (de plastico?). Obrigado por mais um ótimo texto!
    Me lembrou o Futurismo, que exaltava a maioria dos elementos presentes no vídeo, inclusive a guerra. Como no Manifesto de Marinetti: "A beleza... um automóvel de corrida é mais belo que a vitória de Samotrácia...Nós queremos glorificar a guerra -unica higiene do mundo-..."

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  3. Nossa, Luiz Eduardo! Eu é que agradeço - não tinha percebido esse lado do artificialismo! E bela sua relação com o Futurismo!

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  4. me pareceu que tudo que acontece no mundo (representado pelo monitor) é controlado por um humano sem expressão (sem sentimentos?) que tenta fazer da Terra um lugar "bonito". Mas essa beleza está presente apenas nas flores que se abrem no início do vídeo, nas modelos, na dança, na tecnologia... mais ou menos na metade do vídeo, essas imagens se intercalam com cenas de desastres, como se enquanto a humanidade estivesse se deliciando com essa "beleza", coisas terríveis acontecessem (na verdade é exatamente isso que acontece). Inclusive, no fim do vídeo, quando são mostradas apenas cenas de guerra, KKK, fome etc, o "homem que governa o mundo" tampa os olhos. Coincidência ele usar roupas com as cores da bandeira dos EUA?

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