Na edição 1896 do Jornal Opção, de Goiás, surgiu uma análise muito boa do seriado Chaves, feita pelo historiador Ademir Luiz. De acordo com o texto, esse programa de televisão seria uma representação do inferno. O autor usa argumentos sólidos, como o fato de D. Clotilde vez por outra perguntar por Satanás. De acordo com o estudioso, essa entidade é transmorfa, por isso há episódios em que é mencionada como um gato, em outros como um cachorro. Além disso, essa mulher é a bruxa do 71, o que permite duas referências interessantes – a primeira é a de que na tradição cristã as feiticeiras são associadas ao príncipe das trevas; a segunda é a de que os algarismos que compõem o número de sua casa, quando somados, formam o 8, o número que representa o infinito – e que é justamente o da casa em que mora o protagonista da série.
Ainda assim, há problemas na exposição do autor, como o argumento de que a atriz que foi chamada para interpretar essa moradora ser uma ex-miss, o que faria com que atuasse o castigo pelo pecado da vaidade. Não se deve confundir ator com personagem, do contrário, acabar-se-ia limitando a potencialidade da dramaturgia. E mesmo que o autor de programa, Roberto Gómez Bolaños, tenha tido alguma intenção sutil com tal escolha, ela teria sido tão discreta que não teria surtido eficiência em seu discurso. Mas, no momento, vamos nos concentrar nos pontos positivos da análise feita pelo goiano.
O protagonista desse humorismo no original não tem nome. No México a atração é chamada de El Chavo del Ocho, ou seja, “O Moleque do Oito”. No Brasil houve uma adaptação do termo hispânico “chavo” para “Chaves”. E de fato, como aponta Ademir Luiz, em nenhum momento o nome do menino é mencionado. Além disso, esse garoto fora acolhido por uma senhora que nunca é vista. Como ela mora na também nunca vista casa 8, número que, deitado, representa o infinito – Fernando Pessoa já fazia no começo do século XX essa mesma associação ao se achar especial por ter nascido em 1888, ano que apresenta três vezes esse signo –, essa mulher passa a ser entendida como a morte, a entidade eterna que intercepta os vivos.
Dentro desse raciocínio, a vila em que se passam essas histórias nada mais seria do que uma representação do inferno, com direito a vários tipos de demônios torturando as almas que para lá foram condenadas. O Satanás da Bruxa do 71 é Belzebu, entidade ligada à vaidade. Paty e tia Glória seriam súcubus, manifestações femininas do demônio e que têm a função de tentar com sua sedução os homens, no caso Chaves e Seu Madruga. Hector Bonilla seria um íncubo, versão masculina dos súcubos, com a função de tentar as mulheres. Nhonho seria Mammon, que castigaria Seu Barriga, a avareza em pessoa, fazendo-o destroçar sua fortuna. Popis seria Azazel, instigando a fúria de Chiquinha. Godinez seria Leviatã, atiçando a inveja intelectual de Quico.
Nesse campo, não é gratuito que Jaiminho, o carteiro, sempre se mostra cansado, pois, trazendo mensagens para os moradores, na verdade já mortos, seria um médium esforçando-se sobre-humanamente para estabelecer contato. Além disso, o fato de Chaves ser moleque, ou seja, o que apronta, o que subverte os valores, facilita que se entenda que se trata de um pecador.
É também um excelente argumento a ideia de os amigos da personagem principal representarem pecados capitais. Quico simbolizaria a inveja, tanto que é o mais abastado da vila, mas sempre tem inveja dos brinquedos que os outros têm, bem mais pobres que os dele. Chiquinha seria prisioneira da ira, que a faz atropelar com seu triciclo tudo e todos. Para piorar, como é a mais fraca do grupo, sua raiva não é extravasada, limitando-se a chorar e chorar. O Chaves, nesse sentido, seria o representante da gula, pois não para de pensar em comer.
Entretanto, há problemas nessas aproximações. O protagonista, em sua fome insaciável, fala sempre em presunto e chega a chamar seu professor de Linguiça, referências, para Ademir Luiz, à carne de porco, alimento proibido por Deus, o que aumentaria a carga de seu pecado. Mas tal restrição só se aplica às culturas judaica e muçulmana, não à cristã, pelo menos conforme ela se consagrou. Além disso, esse menino também mostra sua gula também com churros. Ademais, qual criança não se mostra esganada?
Seu Barriga, por sua vez, seria a alegoria da ganância, pois vive ostensivamente fazendo cobrança. Entretanto, causa estranheza falar que sua Brasília amarela é referência à corrupção brasileira. Em primeiro lugar, o México também viveu problemas com a apropriação indevida de recursos públicos. Sem falar que a menção a esse automóvel pode ser só da tradução. Então por que aqui se aceita a adaptação à cultura brasileira e no nome do protagonista tão é rejeitada?
Torce-se o nariz, por sua vez, para a caracterização de Seu Madruga. É certo que ele pode representar o absurdo pecado da preguiça, pois sempre está gastando muito mais esforços para realizar suas tarefas, principalmente pagar o aluguel atrasado. De fato, são 14 meses que nunca chegam a 15, o que levou o historiador a fazer mais considerações numerológicas: 14 = 7 + 7, pondo à tona um número com fortes conotações bíblicas, como a famosa 70 x 07, outra referência ao infinito.
A grande falha da análise está na associação de Chaves à ideia do infinito como suspensão do tempo, uma das características marcantes das penas do inferno. É por isso que nunca se sairia dos 14 meses de aluguel atrasado (mas como se chegou aos 14?). É por isso que D. Florinda e o Professor Girafales estariam numa espiral infinita de nunca saciarem o pecado da luxúria, a cada episódio sempre com convite para mais uma xícara de café, bebida de consagradas propriedades estimulantes. Um detalhe muito importante está sendo esquecido: a forma em que o programa se apresenta, ou seja, o seu gênero.
Não se está dizendo que a suspensão do tempo não pode funcionar em arte como representação de uma condenação infernal. Vemo-la no filme 1408 (2007), em que o pior da tortura está na possibilidade claustrofóbica de toda a agonia se repetir integralmente a cada hora. Ou em Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, em que de fato o inferno, palavra crucial no romance, está no fato de as personagens estarem condenadas a um massacre social e existencial sem saída. Mas, note-se, nesses dois casos a forma em que se manifesta o texto possibilita essa interpretação.
Já no caso de Chaves, Ademir Luiz falha ao não perceber que se trata de um seriado humorístico popular, por isso as repetições quase que ad infinitum. É o mesmo que ocorre em Zorra Total e A Praça é Nossa. A forma acaba determinando o tema – cada um dos vários episódios naturalmente repete elementos. Não é um romance de pouco mais de cem páginas. Não é um filme de cerca de duas horas de duração. Além disso, o caráter claustrofóbico visto pelo historiador, que afirma que tudo se concentra em vila, rua, restaurante, sala de aula, é também característica desse gênero, que prima pela pobreza cenográfica.
Entretanto, tais pontos não invalidam a beleza do texto produzido pelo historiador, pois cumpriu uma excelente tarefa pertencente ao que há de mais nobre no ser humano: a produção e circulação de ideias. Seus argumentos, em boa parte, são bem embasados, basta observar a proporção dos pontos positivos arrolados aqui em relação aos negativos. É isso que torna a sua leitura prazerosa, principalmente para quem tem mente aberta e, portanto, livre de preconceitos. Além disso, não se está mais no tempo de proibição do livre pensamento. É lamentável, portanto, a desproporção na página do artigo do autor entre as inúmeras ofensas e as pouquíssimas contra-argumentações. Vivemos tempos sombrios. O inferno não está em Chaves. Está aqui.