domingo, 19 de abril de 2015

As lições dO Casal Arnolfini


O quadro acima, O Casal Arnolfini, obra prima que o flamengo Jan van Eyck apresentou em 1434, é um exemplo bastante salutar de como um texto só consegue funcionar a partir da ligação estabelecida entre seus diferentes elementos. Seguindo então esse raciocínio, o que poderia então ser lido nele?
Como o título indica, trata-se de um retrato de uma união amorosa, o que se infere pelas mãos unidas. Entretanto, outros gestos são bastante significativos. A mão que ela repousa sobre a dele indica que o casamento não é uma prisão, mas uma entrega em que predominam serenidade e confiança, reforçadas pela expressão facial das duas figuras. Além disso, a cabeça levemente inclinada da mulher revela submissão isenta de humilhação. Outro elemento gestual valioso é a maneira como a figura feminina avoluma o vestido para sugerir gravidez. Destaca-se aqui uma das funções primordiais do matrimônio: a produção de herdeiros.
No entanto, a observação desses elementos que saltam à vista, e que, portanto, são superficiais, diz pouco sobre a grandiosidade dessa obra. Uma leitura só se faz completa quando outros ingredientes, menos rasos, são ativados. E muitos deles têm a ver com o contexto em que o material analisado está inserido.
Uma primeira frente de análise, e predileta para muitos, é a historiográfica. Quem são os retratados? Como era a sociedade deles? Sabe-se que o casal é Giovanni de Arrigo Arnolfini e Giovanna Cenami, jovens representantes de uma rica classe de mercadores italianos. O casamento constitui uma união de interesses econômicos bastante proveitosa, mas que teve como resultado uma derrocada social: ela não conseguiu engravidar e, portanto, garantir um herdeiro; ele foi processado por uma amante que se sentiu prejudicada ao ser preterida.
No entanto, esses fatos enriquecem a obra apenas de curiosidades que resvalam o plano do mexerico, não dando conta da grandiosidade estética do quadro. Torna-se necessário, portanto, refinar a abordagem, deixando de lado o meramente factual e buscando o analítico, associando-o principalmente ao contexto cultural. No presente caso, esse é o caminho mais correto, pois a pintura flamenga do século XV consagrou-se por fazer com que objetos do cotidiano aparecessem não como mero detalhismo, mas como simbologia com a função de transmitir ensinamentos.
Por se tratar de um quadro de casamento, a figura do cachorro entre o senhor e a senhor Arnolfini é bastante significativa. Trata-se de um animal que tradicionalmente é associado a companheirismo e fidelidade, qualidades que devem nortear qualquer matrimônio. Essa ideia também está presente na única vela do lustre, que conota o compromisso de envolvimento assumido para uma só pessoa.
Esse engrandecimento do casamento atinge o nível do sagrado. Prova disso é que o casal está descalço, indicando que o solo em que estão pisando, o quarto (note que ao fundo se vê uma cama com roupas vermelhas) está sacramentado. Interessante é notar que ele deixou seus calçados de madeira no canto inferior esquerdo do quadro, quase saindo – sinal de que o homem está voltado para o mundo externo; enquanto ela deixou seus calçados vermelhos ao fundo, bem para dentro do cômodo – sinal de que a mulher está voltada para o mundo interno, doméstico.
Entre o espelho e lustre encontra-se em latim, em letras góticas (tipo oficial das documentações oficiais de então), a frase “Jan van Eyck esteve aqui em 1434”. Estudiosos veem nessa inscrição uma preocupação em mostrar que o quadro poderia servir como documento de casamento, servindo o próprio pintor como testemunha (não é à toa que ele aparece refletido – assim como o casal – no espelho). Reforça também esse caráter sagrado a única vela do lustre, simbolizando agora a presença de Deus, o pai todo poderoso como o único a ser venerado. E sobre a cabeceira da cama está a imagem de uma santa, que não se sabe ao certo se é Santa Margarida ou Santa Marta (a vassoura ao lado da entidade depõe a favor desta última). Ambas são padroeiras das donas de casa e do bom parto.
Já que se mencionou a preocupação com o ato de parir, um dos objetivos do matrimônio, é interessante notar que outras simbologias entram em ação reforçando esse sentido no quadro. Mais uma vez, cita-se a única vela do lustre, que agora ganha novo significado: o da fertilidade. O mesmo ocorre com os pés do senhor Arnolfini, que revelariam uma superstição da época: entrar descalço no quarto de núpcias garantiria fertilidade. O vermelho da roupa de cama é outro elemento que carrega a mesma simbologia.
Não se deve esquecer também que para muitos cristãos o casamento está ligado à sexualidade, fator que provocou a expulsão do Paraíso. Há referência a isso na laranja à janela, que não só está ligada à origem mediterrânea do casal, como também é associada ao fruto proibido. Essa união, para não incorrer em impureza, precisa submeter-se aos ditames do cristianismo. Daí o espelho com dez das quatorze estações da cruz, lembrando que Cristo sacrificou-se por nós para nos expurgar desse pecado original. E essa purificação também está simbolizada no rosário de cristal ao lado do espelho, típico presente que à época um noivo dava para sua noiva.
Ainda assim, o quadro que enfoca a união de dois membros representantes de famílias de mercadores riquíssimas não ignora as questões econômicas. Os dois jovens fazem questão de mostrar que não são estouvados, mas precavidos. Têm pé no chão, conotativa e denotativamente. Eles mostram que têm consciência de que uma união só se pode efetivar quando se tem equilíbrio financeiro. É o que as vestes que usam denotam, pois são refinadas para o padrão da época. É o que apontam as laranjas à janela, frutas até então caríssimas. É o que mostra o luxuosíssimo tapete de Anatólia ao pé da cama. Eles têm posses, por isso podem casar-se.  
Todos esses elementos arrolados indicam que uma leitura eficiente só é possível quando se presta atenção à articulação de elementos de um texto. Essa ligação tanto se dá no campo interno de uma obra quanto no externo, este último ligado ao contexto. E tal exercício só se faz competente quando se tem um bom repertório cultural. O que equivale a dizer que quanto mais se lê, mais conteúdo se adquire e melhor se lê.

domingo, 12 de abril de 2015

O sorriso de Mona Lisa: outra lição de texto



Em 22 de março de 2015, O Magriço Cibernético aproveitou o quadro Mona Lisa, que Leonardo da Vinci pintou por volta de 1505, para abordar aspectos aos quais todos devem prestar atenção durante o exercício de leitura. Tratava-se naquela ocasião de destacar fatores intratextuais. Hoje, a proposta é utilizar a mesma obra para discutir a relação estabelecida com elementos extratextuais, importantes para a arte da interpretação.
Durante a análise de um texto, é válido buscar ingredientes que estão fora dele para atribuir-lhe um valor mais completo. E esse esforço vem sendo feito durante séculos para explicar o misterioso sorriso de Mona Lisa. Pode-se, por exemplo, lembrar que essa obra pertence ao Renascimento, período em que foram recuperados ideais da cultura clássica como os ligados a razão, harmonia e equilíbrio. Dessa forma, a expressão facial da retratada atenderia a esse universo de valores, pois representaria o princípio de serenidade a que toda mulher deveria submeter-se.
Já durante o Romantismo outro conjunto de ditames subiu à tona, destacando a imagem da superioridade feminina graças a um suposto princípio de mistério e sedução. O enigmático sorriso de Mona Lisa então passaria a simbolizar essa postura que todas deveriam atingir, ou, pelo menos, valorizar.
Com o surgimento desse novo universo de valores, ampliou-se a autorização para a intervenção de outros elementos externos na significação do célebre quadro renascentista. Aqueles que bebem da fonte da psicanálise, crentes na teoria freudiana da bissexualidade humana, enxergam na representação da Gioconda o rosto do próprio pintor. Para tanto, baseiam-se no fato de o rosto de Leonardo da Vinci, sobreposto ao da retratada, conseguir um encaixe perfeito. Como a forma e a proporção dos elementos da face são exclusivos de uma pessoa, obter-se-ia uma prova de que a célebre figura feminina nada mais é o do que o autor travestido. O mais curioso é que o próprio Freud tinha outra visão, acreditando que a figura exibida era a projeção da imagem da mãe do artista, morta ainda na infância deste.
Os fanáticos por Medicina, ou pelo menos por Biologia, descarregam nessa obra outra sorte de sentidos. Há os que entendem que os lábios da Mona Lisa expressariam uma tensão típica de quem sofre de bruxismo. Outros defendem que são sinal de que a personagem demonstraria sinais de um leve acidente vascular cerebral, o conhecido avc ou derrame. Há os que asseguram que ela teria sido acometida por paralisia facial. Alguns, mais recatados, creem que a modelo sofria de dor de dente. Existem ainda os que, dentro desse campo, supõem que a forma misteriosa que os lábios fazem se deveria a nada menos do que o incômodo pelo uso de dentes postiços. Por fim, não se pode esquecer aqueles que atribuem a fonte desse enigma a uma mera questão de saúde de da Vinci, que, sofrendo de degeneração da mácula, teria composto sua obra prima sob influência de sua visão periférica.
Ainda no campo do reducionismo interpretativo, existem os que dizem que o enigmático sorriso é apenas o efeito do tempo alterando fisicamente a pintura, produzindo ranhuras na tinta, o que alterou o jogo entre luz e sombra.
A mais nova interpretação de que se tem notícia vem da neurolinguística, ciência que tem atraído a atenção da mídia nos últimos tempos. Para esse setor, trata-se da maneira como a interpretação pode ser reação de estímulos externos. Quando olhamos para um retrato, 5% de nossa visão, preocupada com foco, concentram-se nos olhos – que em Mona Lisa estão iluminados. Nesse exercício de atenção, a visão periférica, que ocupa 95% desse trabalho sensorial, fica atraída pelos elementos escuros da pintura, o que provoca uma leve distorção na percepção que temos dos lábios da Gioconda – daí a sensação de seu sorriso. A prova dessa teoria é que, quando se focaliza apenas a boca dessa mulher, todo esse conjunto de distratores perde o efeito, fazendo sumir o sorriso.
Toda essa miríade de teorias dá a impressão de que a leitura de um texto é um exercício ao mesmo tempo caótico e permissivo. Na verdade, a busca de elementos externos tem que encontrar correspondência com os internos. Por mais interessante que seja uma teoria, se ela não encontrar elementos dentro do próprio texto que a sustentem, tem de ser abandonada, mesmo que isso represente um exercício doloroso. Em outras palavras, devemos buscar em um texto o que está nele, sem transferir para ele nossas crenças, neuroses ou paixões. Não respeitar isso é atentar contra a verdade. E impedir que um texto sorria para nós.