domingo, 24 de junho de 2012

Mais A Cidade e as Serras: o Sebastianismo - ainda um mito atual?

A Cidade e as Serras (1901), de Eça de Queirós, apesar de não ser um livro extremamente empolgante, é rico em temas. No post da semana passada, por exemplo, falou-se da crítica que faz ao estilo de vida moderno, que se mostra desumano por nos massacrar num fluxo de atividades alienantes. Neste post, vai-se discutir outro ponto importante: a referência ao mito do sebastianismo.
A origem desse termo está na figura de D. Sebastião (1554-1578), décimo sexto rei de Portugal e que desapareceu nas areias do Marrocos, na famosa batalha de Alcácer Quibir. A nação portuguesa deparou-se então com um imenso problema: como o monarca não tinha esposa e filhos, não havia deixado herdeiros; além disso, ninguém vira o corpo dele. Um imbróglio estava formado. Por um lado, o rei Felipe da Espanha, parente mais próximo do desaparecido, assumiu o trono, pondo fim ao gigantismo do império português, que agora fora anexado ao domínio hispânico. Por outro, fica entre o povo a esperança do retorno do rei, que traria de volta a grandiosidade da nação. E até hoje o lusitano, principalmente o habitante das pequenas cidades de Portugal, alimenta esse anseio da volta do que passou a ser chamado de o Desejado, o Encoberto e até mesmo São Sebastião. A consequência desse processo é a paralisia em que se viu mergulhada aquela nação, um dos motivos de sua decadência.
Entretanto, na forma como a questão é colocada, tudo fica como se fosse um tema ligado à conjuntura ibérica. O que nós, brasileiros, temos a ver com isso? E como A Cidade e as Serras se torna útil em nosso contexto cultural? Uma pista para se chegar à resposta dessas indagações está em uma expressão usada no parágrafo anterior: “o retorno do rei”. Faz lembrar uma das obras da trilogia O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, mais especificamente o terceiro volume, O Retorno do Rei (1955).  Nota-se, portanto, que se está lidando com elementos que ultrapassam o contexto português.
A ideia do volta do governante, recuperando uma época gloriosa, já está, por exemplo, no mito clássico da Idade do Ouro, que relata um tempo maravilhoso em que o homem convivia com o deus Saturno. Este, ao partir, abandonou o seu conviva à imperfeição crescente, fazendo-o decair para a Idade de Prata, depois para a de Bronze e sem seguida para a de Cobre e Ferro. Cria-se, pois, a expectativa pelo restabelecimento dessa época fabulosa.
Esse desejo fará eco em um dos mais importantes mitos do cristianismo, que é o retorno de Cristo. Essa crença se mistura à profecia bíblica de Daniel, a qual fala de um Quinto Império, que lutaria pela implantação do Reino de Deus. Na cabeça do português, esse império, que sucederia o babilônico, o egípcio, o grego e o romano, só poderia ser o lusitano, que teria na figura de seu rei o defensor da implantação do governo santo. Essa história vai-se misturar a outro mito cristão, dessa vez medieval, que é o do Milênio, uma ordem de mil anos que, dependendo da versão, prepararia caminho para o Reino de Deus ou seria o próprio império divino.
 Nesse caldo há de se colocar mais um importantíssimo ingrediente, presente no vídeo acima, final de Excalibur (1981). Nele, o lendário rei Arthur pede a Percival, o mais puro dos cavaleiros da Távola Redonda, que jogue a espada, a qual dá nome ao filme, em um lago, pois um dia um rei surgiria e ela seria levantada novamente (“one day a king will come and the sword will rise again”). A vontade se cumpre em uma cena cheia de belas simbologias muito bem manipuladas pelo diretor John Boorman.
Assim, quando Jacinto, protagonista de A Cidade e as Serras, surge do estrangeiro e melhora a situação do povo de suas terras, ele passa a ser chamado de Dom Sebastião, tornando explícita a relação com o mito aqui analisado. Curiosamente é também nomeado Pai dos Pobres, expressão fortemente associada a outra figura lendária, desta vez da História do Brasil: Getúlio Vargas. Mas não foi apenas esse presidente que foi tocado por esse mito. Ele já se mostrou presente na revolta de Canudos, por exemplo. Deve-se lembrar que os revoltosos, segundo relatos, criam que D. Sebastião iria surgir no sertão da Bahia para lutar contra a maligna “república ateia”.
Enfim, por meio dessas observações nota-se que esse romance de Eça de Queirós lida com temas bastante atávicos da condição humana, da qual nós, brasileiros, não estamos isentos. Somos seres da esperança, que é o que nos mantém em pé principalmente nos piores momentos. Quem viu, por exemplo, o recém-lançado Prometheus (2012) sabe muito bem do que se está falando. Toca, pois, no que o Velho do Restelo, de Os Lusíadas (1572), de Camões, chamava de nossa “mísera sorte” e “estranha condição”.

domingo, 17 de junho de 2012

A Cidade e as Serras: século XIX = século XXI?

A Cidade e as Serras (1901), de Eça de Queirós, é uma obra que não deveria estar na lista de livros da FUVEST-UNICAMP 2013. A começar, é um romance incompatível com a capacidade do estudante que acabou de terminar o Ensino Médio. Seria muito mais válido, se a intenção é avaliar a compreensão do estilo do grande escritor português, que se colocasse O Primo Basílio (1878), livro infinitamente melhor e até mais empolgante. Até poderia ser admitido O Crime do Padre Amaro (1875).
Outro problema do referido romance é apresentar-se como um ótimo tema que foi esticado para além da conta. Como se sabe, ele é o desenvolvimento do conto “Civilização”, do mesmo autor. A diferença é que na pequena narrativa Jacinto, o protagonista, era morador de Lisboa, ao contrário do texto aqui discutido, em que esse indivíduo reside em Paris.
Acrescenta-se a isso o fato de haver uma irregularidade de estilo. A primeira metade passou pelo crivo da revisão do autor, que ele próprio considerava uma fase importantíssima na confecção de um texto. Infelizmente Eça faleceu antes que se entregasse à tarefa de burilamento do estilo da segunda metade, que ficou a cargo de um amigo, Ramalho Ortigão, que não tinha a mesma competência queirosiana. Isso impediu o romance de talvez se tornar uma das melhores obras da literatura em língua portuguesa.
De fato, o livro se vale pela primeira metade, que tem momentos magistrais, como o incomparável capítulo IV, em que ocorre o jantar no qual será degustado o tão esperado peixe da Dalmácia. Nesse episódio o escritor reúne personagens que representam os diferentes setores da alta sociedade parisiense, sobre os quais derrama sua verve. E nesse ponto, deixando de lado os anacronismos, A Cidade e as Serras acaba se tornando bastante atual. É um ponto que merece melhor explicação.
Jacinto é o que hoje seria considerado uma mistura de tecnófilo com nerd ou geek. Sua equação para a felicidade – suma potência + suma ciência = suma felicidade – reforça essas qualificações, pois o mostra como um apaixonado pelo universo da tecnologia e do conhecimento. E aqui essa narrativa do final do século XIX parece profetizar valores imperantes nesse começo do século XXI.
Recentemente se atingiu o feito de a maior parte da população mundial viver nas cidades, o que indica que os grandes centros urbanos e seu estilo de vida se firmaram como o ideal para o bem-estar humano. Entretanto, como vaticinava o capítulo VI de A Cidade e as Serras, isso tudo pode passar apenas de uma ilusão, pois esse ambiente, criação do homem, paradoxalmente não se mostra humano, já que, como declara Zé Fernandes ao seu desencantado amigo Jacinto, acaba oprimindo o seu morador.
Esse sufocamento pode ser vislumbrado por meio do vídeo acima, trecho de Koyaanisqatsi (1982), do diretor Godfrey Reggio. Nele conseguimos ver o perigo que é entregar a um filósofo a confecção de um filme. Com uma trama nada convencional, se é que ela existe (o mesmo se pode afirmar sobre A Cidade e as Serras), sentimos após a sequência de cenas que representam o cotidiano urbano uma vertigem que é um soco em nosso estômago existencial. Notamos o contínuo fluxo de pessoas e coisas (ressaltado pela música minimalista de Philip Glass), o que consiste no recurso cinematográfico da comparação. A partir dos 5 minutos de exibição a intenção do autor se torna mais evidente. É quando vemos os cidadãos se espremendo para entrar em filas de escadas rolantes e logo após aparece a linha de produção de salsichas. A semelhança que se estabelece é de tirar o fôlego, principalmente porque revela que estamos vivendo uma rotina de mecanização e automatização que atinge até mesmo os momentos de lazer. E é importante notar no vídeo como tal é passada de pai para filho. Consequência: estamos perdendo a vida. Ou como já dizia Drummond em Sentimento do Mundo (outra obra da lista de livros da FUVEST-UNICAMP 2013), especificamente no poema “Os Ombros Suportam o Mundo”: “Chegou um tempo em que a vida é uma ordem. / A vida apenas, sem mistificação.”
Enfim, um dos méritos de A Cidade e as Serras (assim como de Koyaanisqatsi) está em mostrar que o sonho positivista de que a ciência e a tecnologia trarão a felicidade corre um sério risco de fracassar. Não se está falando apenas das implicações ambientais, que por si sós já são bastante preocupantes. Há também as existenciais. Igualmente prementes.

domingo, 10 de junho de 2012

A magia da interpretação de textos: o dito que não é dito

A compreensão de um texto exige a mobilização de várias competências, entre elas a capacidade de perceber o que não está sendo dito explicitamente. Nesta semana O Magriço Cibernético se deparou com dois exemplos desse fenômeno.  O primeiro deles é a canção “Non ho l’hetà” (Ainda não tenho idade), apresentada em 1964 pela italiana Gigliola Cinquetti, vencedora do Festival Eurovisão daquele ano. O que pode ser analisado de uma peça tão inocente, em que uma menina de 17 anos declara não estar na idade para as aventuras amorosas, nem mesmo para andar sozinha com o seu amado, e por isso requer que seu querido espere o tempo adequado?
Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a necessidade de pedir pela preservação do ideal romântico é sinal de que se estava vivendo uma época em que tal já não era mais respeitado por todos. Se o fosse, estaria no campo dos valores óbvios e consuetudinários, portanto, não haveria a necessidade da solicitação. Assim, a música é um indício de uma pureza que já revelava decadência. Basta lembrar que ela foi apresentada em um período bastante conturbado: na década anterior, o filme Juventude Transviada (1955) apresentava James Dean como ícone da rebeldia com causa. Abria-se caminho para que os jovens questionassem o sistema de valores, o que iria desembocar no 1968, o famoso ano que ainda não acabou.
No meio de toda essa agitação social, de toda essa convulsão estava a meiga canção da italiana. Ela revela um esforço de alienação que no fundo põe em foco, para quem é mais sagaz, justamente o que se está tentando esconder. Aliás, toda forma de fuga nada mais é do que um conflito mal resolvido com o presente: o árcade, apaixonado pelo campo, não se sentia bem no novo ambiente urbano que via à sua frente; o romântico, perdido nos sonhos e idealizações, era um inadaptado ao mundo de derrocada dos ideais da Revolução Francesa; o simbolista, sonâmbulo hipnotizado pelas forças do inconsciente, recusava-se a aceitar o mundo cientificista do final do século XIX. A premiação dada em 1964 pode, então, revelar o desejo de setores preocupados com as mudanças que estavam fervilhando.
Curiosamente, no mesmo ano em que surgia na Europa “Non ho l’hetà”, nos Estados Unidos Pete Seeger apresentava o seu “What did you learn in school today”:
Nessa música, vemos uma sequência de ensinamentos que foram passados a uma criança na escola. Até esse ponto, nada de chamativo. Mas o interessante é que há uma ironia fora do comum, pois não se estabelece no nível do discurso entre adulto e infante, mas em um plano mais sofisticado, entre o texto e o seu receptor. Tal só pode ser captada por quem tem conhecimento do mundo em que estamos inseridos, que não corresponde ao que foi transmitido ao menino da composição. Washington nunca mentiu? Soldados raramente morrem? A Justiça não tem fim? Então se descobre que se está diante de um processo de doutrinação, mais cruel porque é feito de maneira afável, gentil – a criança é chamada amorosamente de “dear little boy of mine”. Em suma, o caráter terrível dessa lavagem cerebral é que ela se faz corrompendo a mais inocente das criaturas para que o sistema errado e injusto se perpetue.
Assim, por esses dois exemplos percebe-se que a compreensão de um texto vai além da mera decodificação dos elementos que o constituem. Trata-se de um processo muito sofisticado que requer até que se enxergue o que não está sendo exposto ou mesmo o que não se quer que se seja exposto. Como obter essa habilidade? Prática de leitura. Nunca é demais repetir essa receita.

domingo, 3 de junho de 2012

Viagens na Minha Terra, de Almeida Garrett

O vídeo acima apresenta a música Vltava (1874), trecho da obra Má Vlast, do tcheco Bedřich Smetana. Trata-se de um poema sinfônico que narra o que se encontra no curso do rio Moldava (Vltava, na língua da República Tcheca), o qual nasce das águas de dois cursos calmos, o “frio” e o “quente”, que se juntam, atravessam bosques e prados, encontram um casamento campestre, alargam-se, passam por Praga, a capital desse país, até que somem ao se integrar ao rio Elba. O interessante é que durante a execução do vídeo podem ser vistas diversas imagens daquela nação.
Fica claro, portanto, que se está diante de uma obra nacionalista e a tradução do nome dela (“má vlast” quer dizer “minha terra”) só vem reforçar esse ponto. E na hora surge à mente o “Canção do Exílio” (1843), de Gonçalves Dias, que se utiliza da mesma expressão:
Minha terra tem palmeiras
Onde canta o sabiá,
As aves que aqui gorjeiam
Não gorjeiam como lá.
Nota-se, então, que se vivia uma onda nacionalista, que deve ter atingido também Almeida Garrett, pois o mesmo sintagma se encontra no título de sua obra, Viagens na Minha Terra (1846), leitura obrigatória para os vestibulares da FUVEST e UNICAMP 2013. Entretanto, há um ponto que torna o autor português superior ao tcheco e ao brasileiro na confissão de seu patriotismo.
Smetana e Dias declaram uma paixão por seus países que se concentra na valorização da natureza. Garrett ama alguns pedaços de sua pátria – mas não todos. Tem uma visão crítica – talvez saudosista – ao apontar defeitos em alguns momentos da viagem que faz de Lisboa a Santarém. Entretanto, a superioridade do português não está em apontar falhas, mas em apresentar uma visão crítica, o que o distingue da avalanche nacionalista que varria o mundo romântico. Parece que o autor, colhido por essa corrente, não apenas se entregou a ela, mas passou a observar atentamente o que o carregava. Ou pelo menos passou a sentir. Explica-se.
Enquanto faz seu passeio, Garrett, como se sabe, vai tecendo comentários, muitos deles digressivos, que revelam seu vasto repertório cultural. Tornara-se moda esse tipo de narrativa em que o autor não parece seguir um rumo fixo, linear. Encontramo-la no Viagem ao Redor do Meu Quarto (1872), do francês Xavier de Maistre, assim como no Viagem Sentimental (1768), do inglês Lawrence Sterne. Mais tarde aparecerá no Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis. Mas para alguém incapaz de acompanhar a intensidade de suas referências histórico-literárias, esse fluxo de conteúdo pode provocar afogamento. A salvação parece ser nadar para a margem e fugir da correnteza. Em outras palavras – abandonar a leitura. Entretanto, como já provara Sete-de-Ouros em “O Burrinho Pedrês”, conto de Guimarães Rosa que abre Sagarana (1946), o mais sábio pode ser entregar-se à corrente. Fazer o mesmo que o autor, o que lhe possibilitou enxergar um problema que não se restringiu ao âmbito de sua pátria.
A partir do capítulo XI, quando o índice de digressões diminui, Viagens na Minha Terra passa a narrar a história de Carlos e Joaninha, primos que se amam. Ambos são netos de D. Francisca, que carrega uma misteriosa dor tão grande que a fez chorar tanto a ponto de ficar cega. Há ainda a presença aziaga de um frade, D. Dinis de Ataíde, exemplo do mais rígido e coerente apego à religiosidade cristã. Como pano de fundo, a guerra civil em que Portugal estava mergulhado: realistas (aliados de D. Miguel) contra constitucionalistas (aliados e D. Pedro IV, o nosso D. Pedro I). Os temas épico e lírico, entretanto, parecem mais ligados entre si do que parece.
Carlos, conquistado na universidade pelas doutrinas novas, acaba se desentendendo com D. Dinis, religioso que inexplicavelmente exercia forte influência sobre D. Francisca e seu neto.  Exila-se na Inglaterra, onde se apaixona sucessivamente por três irmãs britânicas. A última, a que lhe sobrou, é Georgina. Deflagra-se a guerra civil em Portugal e o jovem se alista nas tropas de D. Pedro, pois este defende a modernidade que o protagonista tão bem conheceu em seus estudos e na terra estrangeira que o acolhera.
O combate enfim concentra-se em Santarém, o que faz com que a personagem principal volte às suas origens. É quando reencontra a paixão antiga, Joaninha. É quando também se defronta com o soturno D. Dinis. O clima de tragédia só tende a aumentar. Mas mais não se vai falar, para não estragar o prazer da leitura da obra. A preocupação deste post é outra: guiar a compreensão do texto.
O grande problema de Carlos, que se vê indeciso entre amar Joaninha, sua companheira de infância, e Georgina, que conhecera em terras ditas mais civilizadas, parece representar o drama de Garrett e do próprio Portugal: a indefinição entre tradição e modernidade. É um tema que de uma forma ou de outra está em outras obras da lista de livros da FUVEST-UNICAMP. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas está na apresentação de uma elite brasileira que abraça o moderno discurso liberal, mas que ainda se mostra escravista. Em Til (1872) estará na dura decisão de Miguel de abandonar tradições atávicas como o cigarro de palha e o costume de falar mecê para evoluir e unir-se a Linda, seu grande amor, e abandonar a divina Berta, superior a qualquer outra personagem. Em A Cidade e as Serras (1901) estará no embate entre Paris, capital da modernidade da civilização, e Tormes, recanto aprazível da tradição portuguesa. Enfim, essa dispersão só põe em foco o fato de que esse conflito entre passado e futuro não foi resolvido.
Esse dilema se torna mais crítico quando se percebe que o impulso nacionalista de Viagens na Minha Terra segue uma moda que está em outros países. Monta-se então um paradoxo: é-se nacionalista porque outros países também se mostraram; faz-se uma arte patriótica que segue o padrão aberto por outras obras de outros países. Então, onde está o nacionalismo? E essa questão ainda é atual. Georgina está em terras portuguesas por razões humanitárias, cuidando dos feridos que a guerra, alimentada por ideais de sua Inglaterra, havia provocado. Lembra a dúvida: a ajuda humanitária dos países “evoluídos” é socorro ou intromissão? Não é o que estamos vendo no Oriente Médio, assolado há pouco tempo pela Primavera Árabe? O que é a ajuda dos EUA ao Iraque e Afeganistão?
Enfim, Garrett parece ciente de que esse choque nos empurra para uma situação periclitante e que está acima do mero embate entre tradição e modernidade. No fundo, como bem profetizou D. Dinis, nenhum dos dois lados é vencedor, pois nenhum está preocupado com grandes valores humanos. Quando se vê que Carlos, tanto tempo indeciso entre Joaninha (tradição lusitana) e Georgina (modernidade importada dos países “desenvolvidos”), acaba caindo em um suicídio moral, transformando-se em um barão, enxergamos o tipo de sociedade que acabou sendo construída para nós. Vivemos em um mundo em que os ideais nobres foram solapados e substituídos por um prosaísmo vulgar. Não aquele tão bem cantado por modernistas como Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Clarice Lispector, entre outros. Mas o que nos faz aceitar a corrupção de valores éticos, a dilapidação da decência. Aquele que nos faz aceitar que a integridade seja sepultada, que líderes políticos mintam e ainda assim sejam reeleitos. Porque o que mais importa é o prosaísmo vulgar, a economia. Olhemos nossa História recente. Grandes líderes caíram não por causa dos valores humanos, mas porque não souberam manter a economia firme: Bush, Blair, Berlusconi, Mubarak. Não é mais o coração que nos governa, mas o bolso. Os barões assinalados, nobres, de Camões não valem mais. Agora os barões endinheirados de Garrett é que nos comandam.