quinta-feira, 29 de novembro de 2012

Harry Potter e o seu valor na literatura


Vindo a público em 1997, Harry Potter e a Pedra Filosofal abriu caminho para uma série de estonteante sucesso que chegou a vender mais de um bilhão de livros, um feito digno de respeito. Entretanto, existe a ideia de que se deve desconfiar de tudo aquilo que provoca frenética movimentação ao seu redor, já que a turba costuma se orientar por critérios (se tais existem) desarrazoados. É fato. Mas a criação de J. K. Rowling merece uma análise mais serena e menos amarga, ou até menos despeitada, recalcada ou invejosa.
O primeiro aspecto que interessa quando se está diante de um texto literário é a sua linguagem, no que a obra em questão não fracassa. Há a utilização de um ritmo simples, fluente, que a torna cativante, ainda mais com a utilização engenhosa de neologismos, muito bem traduzidos na edição brasileira. Além disso, a informalidade que a narradora assume está no ponto certo, sem descambar para o desleixo e garantindo um tom de grata conversa, como se estivéssemos nos aconchegantes sofás de Grifinória, embalados por histórias carregadas do maravilhoso e que nos deslocam de nossa realidade de trouxas.
Nesse ponto, algumas considerações merecem ser observadas. Harold Bloom, valoroso cavaleiro em luta contra o processo de imbecilização de que vem sendo acometida nossa cultura nos últimos tempos, condenou Harry Potter por ser uma colcha de retalhos extremamente gastos, ou seja, uma colagem de metáforas tão esgarçadas que seriam clichês sem vida. Pode-se lembrar, todavia, que a obra sobre o pequeno bruxo é excelente no que se propõe, que é atender aos anseios de seu público juvenil. Não se deve procurar nela características de Machado de Assis, Clarice Lispector, James Joyce, Marcel Proust ou mesmo Lewis Carroll. Provavelmente Rowling não aspirava a isso quando planejou sua série, pois ninguém é obrigado a tal. Além disso, há quem diga que nada mais se criou desde a Idade Média, sendo toda nossa produção cultural repetição de arquétipos, de uma forma ou de outra. A autora inglesa tem seu mérito em saber lidar com esses retalhos (Fênix, pedra filosofal, elixir da longa vida, Pégasus, dragões, hipogrifos, unicórnios) e colá-los de uma maneira que emociona seus leitores, afinal, esse é um dos mais primitivos desejos da arte de contar histórias. Depois é que houve a preocupação com a manipulação de linguagem, a apresentação crítica da sociedade, a introdução de questões metafísicas. Na verdade, estas são tarefas modernas. E a palavra “modernidade” hoje vem carregada de um ranço doentio.
Fica então a impressão de que a grande qualidade de Harry Potter é proporcionar uma fuga para um passado, para uma inocência perdida. Todos os seus fãs, não importa a idade, seriam na verdade saudosistas. Pode até ser. E não é errado uma obra realizar isso. Mas há que se ter cuidado com o conceito de “inocência”.
Rowling não transformou sua obra em mais uma daquelas juvenis preocupadas com a assepsia temática. Na verdade, ela honrosamente respeitou seu público ao não subestimá-lo, ao não esconder a negatividade da vida. Mas não sobreviveu dela, ao contrário dos programas apelativos como Cidade Alerta ou Brasil Urgente. O foco dos seus romances está em aspectos positivos e, portanto, edificantes. Assim, há aspectos muito fortes, como o submundo do Beco Diagonal. Ou a venalidade de Gringotes. Ou a soturnidade dos comensais. Ou o ritual de magia negra que traz de volta à vida Voldemort. Ou o doloroso contato com a morte de Cedrico em O Cálice de Fogo. Ou questões mais constantes: a pobreza (como a da família Weasley) e o preconceito (contra os “sangue-ruim”). Se há uma fuga para um mundo mágico, nele não se está livre de temas pesados da existência humana.
Repita-se: talvez a inocência da obra esteja em apresentar valores edificantes, ainda mais num mundo niilista ou mesmo hedonista e alienado como o nosso. Os heróis da série não ignoram a malignidade que os cerca, mas aprendem a sobreviver levando em conta talento e esforço, amizade e lealdade e, mais importante, percebem que o eu interior é o que nos guia, indicando o certo ou errado. Essa é a verdadeira base do valioso senso ético. E por que não valorizar livros que conseguem mostrar isso de uma forma tão gostosa?
  
Compre agora! 

15 comentários:

  1. Muito bom! Com certeza é o estilo certo para a época em que estamos e que ja vem sendo repetido em outras obras como "Percy Jackson".

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Acho que é o estilo certo para toda época, meu caro. E obrigado pelo toque - preciso conhecer Percy Jackson.

      Excluir
  2. Quando eu terminar de estudar (como se isso fosse possível) e de ler o Bontrager, com certeza lerei Harry Potter, acho muito interessante.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Você nunca vai parar de estudar. Mas sempre conseguirá arranjar um tempinho para encaixar esse tipo de leitura...

      Excluir
  3. A saga Harry Potter conseguiu mostrar, por vezes de um modo sutil, por vezes de um modo direto, a própria condição maniqueísta da sociedade em que vivemos. Também é interessante de se observar a condição da personagem principal que, assim como ocorre com outras personagens de obras ficcionais, é desprovido da presença física dos pais biológicos. Fato este interessante pois o percebemos na trajetória de muitos heróis ficctícios.

    ResponderExcluir
  4. Muito boa análise professor, mesmo hoje na faculdade, quando tenho certo tempo paro para ler harry potter (já li milhares de vezes)

    ResponderExcluir
  5. Laudespectrum Patronum

    Eu adoro o "Erripóter" e lembro que nos meus intervalos de sanidade durante a graduação, sentado com pessoas queridas do grupo de estudos, comendo pão com mortadela, eramos enfeitiçados pela obra cinematográfica da saga literária devorada tal como os livros de anatomia e fisiologia. E na leitura do seu texto confirmo a minha fama de saudosista mor. Obrigado pela analise. :)

    ResponderExcluir
  6. Pedra Filosofal foi o livro que abriu o mundo da leitura para mim. Lembro até hoje de quando comecei a ler, estava na 4 serie, faz muito tempo kkk desde de então nunca mais parei de ler. Acho muito importante esse tipo de literatura, mesmo com todo esse preconceito que tem hoje em dia com ele.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Você tem razão. E acho lamentável esse preconceito. O livro não é ruim, sério.

      Excluir
  7. Lau,

    Cena 1:

    Praia do Lázaro, Ubatuba, SP, Verão de 1999. O mar em frente e uma bela casa ao fundo. No meio, eu, minha família e minha farofa. A poucos metros, à esquerda, Nado Reis e seus muitos fihos. Atrás, na casa bonita, uma discussão entre crianças que tinham entre 9 e 12 anos. Combinaram de que cada um leria o único exemplar de Harry Potter por 20 minutos. Alguém não cumpriu o trato e o que testemunhei foi isso: crianças brigando por um livro, numa casa com piscina em frente ao mar...

    Cena 2:

    Minha filha, hoje com 15 anos, ouvindo a leitura do primeiro livro de HP, feita pela minha mulher, pois a Júlia ainda era analfabeta...

    Cena 3:

    Júlia, mais velha, não desgruda de livros, nem na praia...


    Há muito mais.

    De minha parte, repito o que ouvi: pela primeira vez, criança puderam comparar uma história em diferentes linguagens: primeiro leram os livros, depois assistiram aos filmes.

    Não temos ideia do impacto disso. Arrisco afirmar que teremos uma geração que saberá que há muita diferença entre a palavra lida e a falada. Esse é um ganho incalculável.

    Quanto aos puristas da teoria literária: avise a esses senhores que não estamos em condições ideais. Precisamos resgatar o gosto pela leitura. Primeiro garantimos isso aos mais jovens, depois avançamos, em busca do discutível conceito de "qualidade literária".

    P.S..: não li nenhum livro, assisti apenas aos filmes. EM relaçao a HP, estou menos qualificado do que essa geração com menos de 20 anos de idade....rs...

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Amei esse trecho seu: "Arrisco afirmar que teremos uma geração que saberá que há muita diferença entre a palavra lida e a falada. Esse é um ganho incalculável." Se isso de fato acontecer, HP terá feito uma tarefa extraordinária.
      E agradeço você ter trazido experiências, testemunhos tão bonitos sobre HP, captain, my captain.

      Excluir
  8. Adorei como usou as características do livro em favor dele, e sem destacar o que o deixa mágico A MAGIA, mas sim enfatizando a linguagem que o forma! E que não o faz um livro cansativo, mas sim o que explora a imaginação!
    Adorei seu "Review"

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. De fato, é um livro que não é cansativo. Sem você perceber, você devora páginas e páginas dele de uma só vez!

      Excluir
  9. É muito verdade a parte sobre não esconder a negatividade da vida. Lembro a primeira vez que li um livro do Harry, foi o sexto livro, e eu tinha acabado de terminar um sobre o Holocausto, e naquela época eu relacionava o Lorde das Trevas diretamente com Hitler, e com todas as pessoas/Estados que já haviam praticado genocidio alguma vez na Historia, não sei se era a intençao de Rowling estabelecer essa semelhança mas, definitivamente, me fez respeitar e gostar mais do mundo dos bruxos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Eu tb sinto essa relação, principalmente no que se refere à perseguição dos chamados sangue-ruim. Voldemort eu via como alguém semelhante a Hitler e seu séquito, que exaltava sua condição, mas que escondia que seu passado não era tão nobre assim.

      Excluir