domingo, 2 de dezembro de 2012

A Licença Poética




Mathis Grünewald, O Retábulo de Isenheim (c. 1510-5)
Conforme já foi dito várias vezes aqui nO Magriço Cibernético, todo texto é um conjunto de elementos que, ligados entre si, estabelecem uma coerência, o que gera seu sentido. Muitas vezes os erros de interpretação ou mesmo de redação são fruto da má manipulação desses ingredientes, provocadora de dissonâncias semânticas comprometedoras, como seu viu no post de 01 de março de 2012. Outras vezes é justamente essa discrepância que dá charme à mensagem, como seu viu no post de 03 de março de 2012. Entretanto, há momentos em que tal discrepância precisa ser ignorada, pois ela não prejudica o sentido, muito menos serve para reforçar uma ideia. Quando isso acontece, diz-se que ocorre a licença poética, ou seja, a liberdade de se usar construções que não precisam se apegar a regras, até mesmo as que se referem à noção tradicional de coerência.
No quadro acima, O Retábulo de Isenheim, que hoje está no Museu de Unterlinden, em Colmar (França), notamos alguns “atentados” à lógica. O mais gritante deles é São João Batista estar à direita da cruz. Sabe-se que esse santo fora decapitado por Herodes anos antes da crucificação de Cristo. Teria então o pintor alemão praticado um anacronismo grosseiro? Como alguém se meteria a pintar um importante episódio cristão e demonstrar tamanha ignorância da Bíblia?
Na verdade, tal discrepância precisa ser ignorada, pois a inserção da personagem é nada mais do que um caso de licença poética. A função desse actante é de mero símbolo. Não é à toa que ele segura a sagrada escritura e aponta para Cristo, gesto que indica que o que está acontecendo já estava previsto no livro sacro. Não é à toa que a seu pé está um cordeiro, com uma cruz, e vertendo sangue para um cálice – é um eco imagético do Nazareno, o cordeiro de Deus, que tirou o pecado do mundo.
Outro “atentado” à lógica a ser levado em conta é a dimensão física desproporcional de Jesus, ainda mais quando comparado à de Maria Madalena, mais ao pé da cruz. Essa falta de verossimilhança deve ser desprezada, pois o mais importante para o artista era revelar, por meio do tamanho, a estatura religiosa das personagens.
Outro exemplo de licença poética pode ser visto no trailer abaixo, do filme Gladiador (2000):


            Inúmeras falhas são notáveis nesse vídeo: o protagonista, Maximus, usando arreio, uma invenção medieval, portanto, desconhecida dos romanos; ou então um dos gladiadores utilizando uma bola cheia de espinhos, outra criação medieva; ou ainda a personagem principal desatrelar um cavalo que puxava um carro e esse animal possuir equipamento para montaria, o que não faria sentido para a função que estava exercendo. Entretanto, alguns pontos não podem ser considerados erros, como as flechas incendiárias, que de fato não eram usadas pelas legiões romanas. Na verdade, aqui há um caso de licença poética, pois esse artefato bélico serviu apenas para criar o clima pirotécnico tão essencial às produções hollywoodianas. Outro ponto relevante para nossa discussão seria gladiadores lutarem com armas de níveis diferentes, o que ia de encontro às regras da Roma Antiga, preocupadas em garantir igualdade de combate. No filme, para dar mais emoção, deixou-se a desvantagem, pois ela serviu para incrementar valor na trama. Por fim, não se podia esquecer o que mais os historiadores de plantão criticaram: era impossível um general romano se tornar escravo e depois virar gladiador. Entretanto, essa questão acadêmica se transforma em filigrana diante da lógica da construção narrativa, já que é um elemento que engrandece o protagonista.
Mas é em poesia que a licença poética é mais facilmente reconhecida. Ela que nos faz não só aceitar o que chamam de erros gramaticais, como também os ligados à lógica. É o que vemos, por exemplo, na arquifamosa “Canção do Exílio” (1843), de Gonçalves Dias, da qual foram extraídas a seguir as duas primeiras estrofes:

Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.

         A lógica dita que o sabiá não canta na palmeira. Entretanto, o poeta teve de atropelar a razão para juntar dois grandes símbolos de nossa pátria. Além disso, nada sustenta a tese de que o nosso céu tenha mais estrelas que o da Argentina ou do Uruguai, por exemplo – a não ser a necessidade de se dar um tom mítico, fabuloso à nossa terra.
Portanto, devemos ter cuidado ao avaliar o que à primeira vista pode parecer uma falha na ligação entre elementos de um texto, principalmente os artísticos. Na verdade, o que pode estar acontecendo é nada mais do que uma leitura sob um diapasão errado.
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4 comentários:

  1. Que bacana o post, Lau!
    E obrigado por me situar no filme "Gladiador" haha.

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  2. Lembrei do Kiko Zambianchi:
    "Eu te amo você
    não precisa dizer o mesmo, não"
    Licença poética!

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    Respostas
    1. Tem razão! Deixando de acordo com o que prega a Gramática Normativa, o verso fica capenga, perde o ritmo.

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