quarta-feira, 7 de novembro de 2012

O ENEM e um jornalismo como terra de ninguém


A questão 121 da prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias do último ENEM (as numerações deste post referem-se ao caderno amarelo) apresenta um poema de Cecília Meireles cujos dois primeiros versos são: “Ai, palavras, ai palavras, / que estranha potência a vossa!” De fato, é uma estranha potência permitir a articulação da linguagem de uma maneira tão bem feita e bonita para desvirtuar a proposta primordial e sagrada da comunicação, que é revelar o mundo. Infelizmente, elas também podem ser empregadas para distorcer a noção sobre ele. Deve-se acreditar que esse tipo de erro não é fruto de maldade, mas de uma falha de conhecimento. O que é triste, pois vem de quem é da Imprensa, que se diz a luz, pois que formadora de opinião. Ai, palavras, que estranha potência a vossa!
Essas considerações iniciais se devem ao artigo de Reinaldo Azevedo publicado no site da Veja (“O tema estúpido da redação do Enem, as mentiras do examinador e as duas exigências absurdas feitas aos estudantes. Ou: Intelectualmente falando, prova de redação deveria ser impugnada!”). A começar, ele diz que não viu “no detalhe” a prova do ENEM, o que o eximirá de comentá-la. Mas já adianta que houve divergências sobre as respostas que os professores de cursinho deram sobre ela, o que considera  costumeiro, já que interpretação é “terra de ninguém”. Aqui já ocorrem alguns problemas: como ele emite um comentário baseado no que os outros falam, sem nem mesmo ter visto quais são esses defeitos apontados? E de que questões ele está falando? Que professores são esses? Que cursinhos são esses? Para piorar, os dois ou três cursinhos sérios, no que tange à prova de Linguagens, não apresentaram discordância entre seu gabarito e o do INEP. Falta rigor de raciocínio no que o articulista expõe.
Deixando-se de lado essa falta de apuro na exposição de ideias, outro problema grave se impõe: as questões de análise de texto são “terra de ninguém”? Trata-se de uma afirmação perigosa, pois não tem base na realidade e pode causar um estrago monstruoso, pois está em “um dos blogs (sic) mais acessados do Brasil”. A colocação de uma afirmação tão inacurada é ruim, pois depõe contra o autor da página ou desqualifica o usuário que a frequenta.
Mas afinal, de onde saiu esse veredito de que análise de textos é uma “terra de ninguém”? O interessante é que ela é um indicativo de que o jornalista não viu a prova e, pior, não tem noção do que se busca nesse tipo de exame. O que é uma falha, pois, como jornalista, ele deveria saber que a verdade tem que ser buscada onde os fatos estão, observando-os, investigando-os, analisando-os, e não juntando frases de efeito depreciativas, como quando chama a proposta de Redação de “macumbaria multiculturalista mal digerida”.
Não, análise de texto não é “terra de ninguém”. Quem acompanhou os vários posts dO Magriço Cibernético sabe que toda interpretação se baseia em elementos verificáveis. E qual a intenção de exigir essa habilidade em um exame? É avaliar e selecionar os que têm competência linguística. Apenas isso. Não se está querendo que o jovem se mostre um gramático, um linguista ou um literato.
Essas expectativas podem ser facilmente encontradas na prova de Linguagens do último ENEM. Basta olhar para a questão 96, em que se percebe que a expressão “rede social”, tão na moda, é a chave para o humor da charge, já que acabou associada também ao sufoco em que a personagem se encontra, dividindo sua rede de dormir com tantas pessoas. Ou então a 112, em que um cartaz da UFG aproveita um quadro de Dali para mostrar que os relógios que se derretem são referência à liquidez do tempo, ordenando que se respeitem os prazos de utilização de livros da biblioteca. Ou então a 120, em que a caracterização da linguagem radiofônica é exemplificada na letra da canção “A dois passos do Paraíso”, da banda Blitz. Ou a 114, em que o ideal renascentista de serenidade feminina pode ser visto em duas plataformas estéticas diferentes, o poema de Camões e a pintura de Rafael Sanzio. Ou a 126, bem mais ousada, cujo enunciado orienta a interpretação das alegorias que representam o contexto histórico do Brasil de 1972 como símbolos da violência instituída, como se vê em “morcegos de pesadas olheiras” ou “porco belicoso (...) que sangra e ri”. Ou a dificílima 111 (toda prova precisa delas), em que a expressão “muito peixe foi embrulhado pelas folhas de jornal” constitui uma engenhosa metáfora da passagem do tempo – páginas de jornal sucessivamente se desatualizando e sucessivamente se transformando em embrulho.
A extensão do parágrafo anterior, que pincelou exemplos de boas questões, corrobora a eficiência da prova em discussão. Mas não se está negando que há testes falhos, como o 124. A simples observação da capa do álbum dos Mutantes não possibilita que o aluno chegue à conclusão esperada. Ou a questão 122, que isola o poema de Manuel de Barros de seu contexto, atrapalhando sua compreensão a tal ponto que não se vislumbra a resposta. Ou então a 105, em que a frase “Lugar de mulher também é na oficina” possui dois objetivos, um menor, que é estabelecer a comparação com o chavão “Lugar de mulher é na cozinha” (alternativa C), e um maior, mais geral, que é o de demonstrar a mudança da situação feminina na sociedade contemporânea (alternativa A, que de fato é a mais correta).
É certo que esses erros impedem que o ENEM seja uma avaliação excelente como há saudosos tempos, quando era menos pretensiosa e não esse gigante de hoje. Priscas eras em que dividia o pódio com os vestibulares da FUVEST e da UNICAMP. Ainda assim, é um bom exame, que merece respeito. Detalhe: está-se falando da prova em si. Não se está falando de sua logística, de metodologia de pontuação da redação, do SISU e outros elementos que lhe são externos.
Mas tudo o que foi discutido até aqui são coisas que o jornalista não viu, porque não analisou a prova. Como ele não viu, não viu. O pior são as coisas que ele viu, mas não viu. Fala-se de suas opiniões sobre a Redação, que ele diz ter analisado.
Reinaldo Azevedo não percebeu que a proposta de dissertação era bastante pertinente. Não entendeu que essa prova não é só tema. É principalmente uma maneira de avaliar como ideias são manipuladas, articuladas. Nesse ponto, é bobagem afirmar que as notas serão mais baixas porque o assunto surpreendeu, já que se esperava algo sobre meio ambiente ou política. Ou a Copa de 2014, como declarou uma jovem baiana. Aliás, o inesperado só veio tornar a prova mais justa, pois fez com que todos montassem na hora suas argumentações. O painel de textos servia, pois, para dar insumos à redação, não para cerceá-la, doutriná-la.
Além disso, o tema não era despropositado. É ainda discutido. Basta se mostrar antenado. Não só haitianos – poucos, é verdade – vieram para cá e foram assunto na mídia. Há também bolivianos, esses bastante comentados recentemente, pois se noticiaram até as condições a que estavam submetidos para abastecerem as grandes redes de magazines do país. E agora, com a crise europeia, fala-se dos portugueses e espanhóis que estão vindo para cá. Há, sim, um movimento imigratório e está no século XXI. 
Outro erro do jornalista – não há correção ideológica. É importante repetir – o que interessa à banca é ver como o candidato estrutura suas ideias diante da proposta que lhe foi apresentada. Caberia muito bem, portanto, a defesa da imigração como também a sua condenação, lembrando, por exemplo, que estaria trazendo uma mão de obra que viria concorrer com a formada aqui. O mais importante, enfim, é como essa informações seriam manipuladas, tudo em respeito aos direitos humanos. O que é plausível.
Em vista de tudo isso, o que Reinaldo Azevedo precisa entender é que o bom serviço de jornalista, como formador de opinião, não consiste em sobreviver à custa de atirar pedras. É um gesto que atrai a atenção, aumenta audiência, que dá ibope. Mas é um desserviço. O bom serviço consiste em apresentar fundamentação lógica. Em não distorcer. Em ser útil. 

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9 comentários:

  1. Aprendi que xingar não é argumentar. O texto do fulano parecia apenas qu e ele estava com ódio. Aliás, boa parte da mídia parece estar odiosa porque neste ano o ENEM ocorreu de forma tranquila.

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    1. Você tem razão. Quem xinga, já não está mais argumentando, mostra que está perdendo a razão - ou nunca a teve.

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  2. Lauzito, há sim discordâncias no gabarito em relação ao do INEP, segue o link: http://www.estadao.com.br/noticias/vidae,mec-divulga-gabarito-oficial-do-enem-2012,956512,0.htm

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  3. Lau, quanto ao tema da redação, é muito complexo, mas dá para apresentar vários fatos (ou argumentos) e escrever um belo texto.
    Gostei do tema!
    Há uma redação circulando na net, boníssima por sinal.
    Já viu?

    http://www.ocasuloazul.blogspot.com.br/

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    1. Achei a redação boazinha mesmo. Entretanto, não sei se ela condiz com a realidade de quem está no calor de uma prova do ENEM. Você sabe que fazer um redação no conforto de seu quarto, com um computador, é bem diferente de fazer uma redação numa sala de prova, não?

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  4. Olá Laudemir, como vai?

    Sou grande apreciador do trabalho de Reinaldo Azevedo. Tenho acompanhado seu blog desde o inicio. Por conta disso sei que raramente ele erra, sobretudo, em questões tão simples. A maioria do pessoal que mete o pau nele o faz por conta de questões ideológicas, o que muito me incomoda. Todavia, Laudemir, acho que nesse caso você tem razão. De fato ele não pode comentar com base no que as pessoas falam – é preciso antes analisar o objeto de forma cuidadosa - ainda que ele esteja certo, rs. Então, acho que posso lhe dar esse crédito. Seus textos são muito técnicos e objetivos, gosto muito disso no seu trabalho. Contudo, ao mesmo tempo admito que também detesto esse multiculturalismo forçado oriundo do meio acadêmico, e acho que o restante do que foi comentado cabe, desde que feito de forma respeitosa, discussão.

    Permita-me citar Mário Vargas Llosa para explicar melhor. “A esquerda tem o controle do establishment cultural. Ela domina o mundo acadêmico, as editoras e até os setores de cultura dos jornais e de revistas de direita. Isso dá um poder de chantagem enorme à esquerda. Todo escritor, desde muito jovem, sabe que não ser de esquerda significa defrontar com portas fechadas. Por outro lado, ser esquerdista garante regalias. A esquerda fracassou em tudo, menos no controle da cultura. Isso foi possível porque a direita é muito ignorante e também por não ter se preocupado em utilizar a cultura ideologicamente, politicamente. A esquerda, sim. Como resultado, muitos intelectuais e artistas, inclusive aqueles que não militam na esquerda, jamais se atrevem a criticá-la. Isso não ocorre apenas na América Latina. Conheci um ambiente assim na França dos anos 60. Não ser de esquerda dava muita dor de cabeça.”

    Acredito que Reinaldo, em um dos pontos, trata mais ou menos disso. Desse meio acadêmico carregado de ideologia. Não que isso não seja natural, acredito que seja. O que não dá é para transferir essas maluquices para as aulas, e pior, para o ENEM. Infelizmente, disciplinas, da chamada área de humanas, tornaram-se palco absoluto para politização, inclusive no cursinhos. Uma espécie de paulo-freirização aplicada no lugar errado. Dessa forma, ocorre um distanciamento enorme da técnica e uma aproximação de uma idiotice intelectual. Uma forma de premiar o aluno metodologicamente indisciplinado e punir o bom estudante. Acho isso muito triste. E acredito que ele (Reinaldo) acerte muito em alertar sobre isso.

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  5. No entanto, ele precisa especificar melhor os pontos, mais uma vez, vc tem razão. Talvez isso tenho ocorrido em decorrência da enorme produção que ele realiza, logo, seria necessário buscar outros posts para compreender melhor este citado. Mas isso não serve de justificativa. Afinal de contas, seguro morreu de velho.

    Parabéns pelo texto, Laudemir, como sempre impecável.

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    1. Gilson, gostei muito de suas observações. Aliás, amei a citação que você faz do Llosa. Aclarou muito a minha mente sobre a intelectualidade. De fato, a esquerda domina-a. Tanto que quando alguém articulado da direita aparece, é logo chamado de direita esclarecida, o que deixa subentendida a ideia de que ela é geralmente acéfala. Mas a minha queixa sobre o texto de Reinaldo é a sua imprecisão que muitas vezes beira a distorção dos fatos, principalmente por falar que análise de textos é terra de ninguém. Se fosse, por exemplo, como explicar que a discordância apontada pelos outros cursinhos não era de interpretação, mas de imprecisões das questões do ENEM que atrapalhavam as questões? E todos eles giravam ao redor das mesmas alternativas. A impressão que ele me deu é a de que embarcou no senso comum de malhar uma prova que é bem feita. Sem falar que algumas vezes, ao invés de argumentar, preocupou-se em ofender, o que faz com que perca a razão. Mas, em consideração a você, dono de ideias tão boas, vou ter em mente que essa não deve ser a postura natural desse jornalista. Vou então me esforçar em ler outros textos dele e montar outro conceito sobre sua produção.

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