quarta-feira, 14 de novembro de 2012

O Rappa e Drummond: dois exemplos de ruptura e continuidade histórica


Em vários momentos foi dito aqui nO Magriço Cibernético que o sentido de um texto é garantido pela conexão entre vários elementos. Sem essa interligação, aliás, o que se tem é nada menos do que um amontoado de ideias, impedindo que a coerência ocorra. Entretanto, é justamente essa falta aparente de nexo que dá sustentação ao clipe acima, “Súplica Cearense”, do Rappa (na verdade, uma composição de 1960, de autoria de Gordurinha, pseudônimo de Waldeck Artur de Macedo, e que já fora gravada por Luiz Gonzaga em 1984).
A primeira discrepância lógica que pode ser apontada está na relação entre a letra da canção e a animação que a ilustra. A cantiga faz referência ao sofrimento de um cearense diante da seca e da inclemente chuva que a substitui, justamente a mesma realidade exposta em Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos. Todavia, as imagens que são apresentadas encenam o conflito de Canudos, ocorrido no sertão baiano. Além disso, essa guerra, como o próprio vídeo mostra, teve seu desfecho em 1897, o que não condiz com o fato de o exército que combateu esses revoltosos surgir usando tanques, pois esses artefatos só chegaram a existir a partir da Primeira Guerra Mundial.
O que se pode inferir de todas essas incongruências? Algo bastante simples e interessante. A quebra da noção convencional de tempo e espaço acaba por construir outra lógica, outra significação, mais ampliada. Em outras palavras, serve para mostrar que os fatos exibidos não se restringem a um momento e a um local, já que são onipresentes. No caso em análise, o sofrimento do nordestino não se prende a um lugar ou a um momento. Ocorreu no século XIX, no XX e continua se manifestando no XXI.

         
            Esse mesmo expediente pode ser visto no poema “Tristeza do Império”, de Carlos Drummond de Andrade, presente no Sentimento do Mundo (1940), obra cobrada pelos exames da FUVEST-UNICAMP 2013:

Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristovão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e, sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos arranha-céus de
                           [Copacabana, com rádio e telefone 
                                                         [automático.
           
            A primeira coisa observável nesse poema é que ele se inicia com um vocabulário que já não é mais usado (“colo”, “ebúrneo”, “donzelas”, “opulentas”), mas que é expresso em uma frase com andamento moderno, próximo do coloquial, o que destoa da noção tradicional de poesia. Essa forma é coerente com o conteúdo, principalmente quando se lê no final do texto que os conselheiros, membros da elite do Segundo Reinado do Brasil, alheios à guerra do Paraguai e ao sofrimento dos escravos, estão fruindo seu rapé e pensando na libertação dos instintos a se realizar em apartamentos em “arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático”, uma realidade impossível de ser profetizada por essas personagens. Na verdade, o que Drummond institui é uma quebra da fronteira temporal com a intenção de mostrar que o comportamento alienado e hedonista dos privilegiados é de longa data. Nesse ponto, “Tristeza do Império” acaba se tornando irmão de “Os Inocentes do Leblon”. A doença que acomete os privilegiados é atemporal, é onipresente. E quando o poeta rompe a barreira do tempo, acaba por destroçar o discurso de modernização que se espalhou em nossa sociedade no que tange aos costumes. A liberação sexual, como se percebe, não tem nada a ver com modernidade, já que as velhas injustiças sociais continuam imperando. Não há nada de novo, como se dizia no Eclesiastes.
Assim, a competência na análise de textos precisa levar em conta que a relação entre os elementos que constituem o objeto estudado pode ser estabelecida não só pela relação lógica entre os ingredientes que o constituem, mas também pela dissonância que se estabelece entre eles.   

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