domingo, 11 de novembro de 2012

O Perfume: como diferentes conhecimentos ajudam na interpretação



       O filme O Perfume (2006), baseado no romance homônimo do alemão Patrick Süskind publicado em 1985, é um excelente e prazeroso exercício de captação dos diferentes níveis de uma narrativa literária. Quem assiste a ele, fica encantado, mesmo sem saber o que o torna tão especial, pois seu sentido sempre fica tão próximo e sempre acaba escorregando de nossas mãos. Prova de que a emoção estética dispensa compreensão. Mas nada impede que se tente deslindar o seu significado.
Para começar, é preciso lembrar que cinema (assim como romance) não é só a narrativa em si, ou seja, a própria história, a trama, as ações que são apresentadas. Dessa forma, a película em questão é mais do que a interessante biografia de Jean-Baptiste Grenouille, sujeito dotado de olfato apuradíssimo. Entram na composição dela outros ingredientes que a encorpam, como os ligados à Psicologia. Basta recordar que no começo da história, a mãe do protagonista, imaginando-o natimorto, joga-o entre as entranhas de peixe do mercado em que trabalha e no qual tivera o rápido trabalho de parto. Engano terrível, pois pouco depois a criança berra, lutando por sobrevivência. Sua geradora, acusada de tentativa de infanticídio, é condenada à morte.
Há nesse ponto algo muito valioso. A ciência da psique diz que o momento em que a criança nasce e é colocada diante da mãe determina toda a sua afetividade e socialização. Grenouille não tivera esse instante crucial, o que gerou sua psicopatia, sua incapacidade de relação com o próximo. É por isso que todos os que de alguma forma tiveram contato com ele e serviram de escada, conscientemente ou não, nos seus objetivos encontraram um destino trágico.


       O interessante é que essa inapetência para o contato com o outro tem aspectos paralelos, mas contraditórios entre si. O primeiro é a já mencionada habilidade assombrosa do protagonista de captar cheiros e memorizá-los. A outra é a sua total ausência de aroma, o que o faz muitas vezes passar despercebido. E quando se lembra que é dito no filme que “a alma dos seres é seu odor” (“the soul of beings is their scent”), nota-se que essa personagem acaba assumindo uma posição assustadora e injusta de captar a essência alheia sem que o recíproco se manifeste.
Entretanto, O Perfume, como uma boa narrativa, não se limita a um único tom. Além do tempero psicológico, também vai se alimentar do filosófico. No instante em que Grenouille detecta nas ruas da escura e suja Paris o odor sublime de uma virgem, acaba inebriado – e nem se importa com o fato de, para degustá-lo, acabar assassinando a coitada.  O que vale é que sua vida miserável deixa de ser sem sentido, pois agora ganhou um objetivo – o desenvolvimento da capacidade de produzir um perfume que eternize o ideal de perfeição presente na fragrância daquela jovem. É aí que a história de fato começa. Mas o mais importante, agora, é notar que se tocou na essência humana, que consiste na tentativa de alcançar a perfeição perdida, “a luz em um país perdido” (como dizia Camilo Pessanha). Tal tanto pode ser o platônico mundo das ideias, o paraíso cristão ou nada mais do que qualquer representação do conforto do útero  onde fomos expulsos.


       Esses dois campos, somados, trazem um riqueza extraordinária para o filme, pois fazem com que se perceba o exotismo do protagonista, que, incapaz de alteridade, quer criar o perfume que o faça ser amado. Para alcançar a sublimidade, torna-se um serial killer. Sem falar que, sem cheiro, sente o odor de qualquer um. E o final que lhe é destinado é a fusão dessas oposições (mas não se vai falar sobre ele para não se praticar spoiler).
Todas essas contradições parecem fazer sentido quando se convoca a ajuda de mais uma ciência, a História. É ela que nos faz notar que a narrativa se passa às vésperas da Revolução Francesa, quando se gerou a sociedade atual. E não é à toa que o protagonista se chama Jean-Baptiste, em português João Batista, referência àquele que, para o cristianismo, tornou-se o anunciador. Então a história de O Perfume é um pouco a de nosso nascimento. É por isso que o filme começa com fedor, como o mercado de peixe em que nasceu a personagem principal, passa pelo ambiente da manipulação das fragrâncias até terminar no seio das classes sofisticadas. Está havendo, portanto, um processo de higienização, que deu no nosso mundo racional, claro, antisséptico, que teve como a mais nefasta consequência a febre do politicamente correto. Que muitas vezes é só perfumaria.
Qual é a moral então? Podem-se levantar duas hipóteses, que não proíbem a existência de nenhuma outra. A primeira é que a criação de um perfume perfeito para ser amado abre caminho para um totalitarismo em que a alma das pessoas possa ser controlada. É o que se vê na fortíssima cena em que Grenouille coloca em si apenas uma gota do finalmente alcançado olor perfeito. A segunda é que acabamos nos tornando uma sociedade ainda mais hipócrita, pois que utilizamos toda uma combinação de técnicas, de racionalizações, para disfarçar nossa podridão, o fedentina do barro de que é feito o homem.

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7 comentários:

  1. Lau, bela resenha.... Q baita análise. Vou até ler de novo... Abs

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    1. Recebi um elogio de você é muito gratificante, pois você é um especialista de cinema. Sinto até que você deveria produzir algum como um blog na área. O que acha?

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    2. Quem sabe.... já me passou pela cabeça... e espero realizar... pensei tb em vídeo, mas ainda não apurei as ideias... é bom ter incentivo. Valew, Lau

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  2. Justo ele, que logo depois de nascer foi jogado junto dos peixes, não exala cheiro algum e tem o olfato aguçadíssimo, o que o faz querer extrair perfume de tudo: moças virgens, vidro etc. Lindo livro e lindo filme.
    É mesmo, Coruja, vc pode ser um blogueiro cinéfilo

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