domingo, 18 de novembro de 2012

A Propósito do Dia da Consciência Negra

Às vésperas do Dia da Consciência Negra, O Magriço Cibernético resolve colocar em foco, por meio de mais uma prática de intelecção, considerações ligadas a essa comemoração, que não deve ser entendida como sinônimo de festejo, mas de evento que precisa ser lembrado em conjunto (co+memorar). Não se pode deixar de ter em mente a importância dessa etnia em nossa identidade cultural. Mas, mais importante, não se deve esquecer o quanto tal grupo foi vítima de injustiças, para que nem a sombra disso se repita.
O primeiro texto a ser analisado é a música “Strange Fruit”, na verdade poema que o norte-americano Lewis Allan (pseudônimo de Abel Meeropol) publicou em 1936, inspirado pelas fotos de linchamentos de negros que ocorriam principalmente no sul dos Estados Unidos pelos idos da década de 1930. Essa composição consagrou-se na voz de Billie Holiday em 1939, mas aqui é trazida na interpretação doída de Nina Simone:

Southern trees bearing a strange fruit
Blood on the leaves and blood at the root
Black bodies swinging in the southern breeze
Strange fruit hanging from the poplar trees

            Pastoral scene of the gallant south
The bulging eyes and the twisted mouth
Scent of magnolias, sweet and fresh
Then the sudden smell of burning flesh

            Here is a fruit for the crows to pluck
For the rain to gather, for the wind to suck
For the sun to rot, for the trees to drop
Here is a strange and bitter crop

O poema é marcado por imagens de sabor expressionista, pois se baseiam em elementos grotescos: sangue nas folhas e raízes, corpos negros balançando, olhos inchados, boca torcida, carne queimada. Mas o que o torna ainda mais chocante é a referência a elementos bucólicos que compõem o ambiente descrito, como a brisa do sul, a cena pastoril do sul galante, o doce e fresco perfume de magnólia. Cria-se então uma discrepância de elementos, instituidora de uma ironia amarga que denuncia a selvageria da estranha colheita da última estrofe a que havia se entregado o sul dos Estados Unidos, região nomeada insistentemente (vv. 1, 3, 5). 
Todavia, o mais discrepante e espantoso é que as fotos expostas no vídeo revelam pessoas posando como se se tratasse de uma obra benemérita, alheias à gravidade do que havia cometido. Algumas até serviram à época de cartão postal. Esse era o povo empreendedor, escolhido, abençoado, defensor da liberdade? 
O mesmo problema pode ser visto no retrato abaixo, de alguns anos depois:



Trata-se de uma imagem bastante emblemática. Nela, Dorothy Counts, uma garota de 15 anos, havia ganhado o direito de estudar em uma escola de brancos na Carolina do Norte. Vê-se uma multidão ensandecida achincalhando-a, processo que se prolongou por quadro dias, em que a jovem foi ignorada pelos professores, sofreu apedrejamento e cusparadas, tudo sob a orientação do Conselho dos Cidadãos Brancos, que não admitia que ela furasse a segregação racial. Por fim, por questão de segurança, seus pais decidiram que ela terminaria seu curso na Filadélfia. Mas o episódio serviu para abalar os Estados Unidos a ponto de alimentar a luta dos negros por seus direitos civis.
O que fica dos dois eventos é a ideia de que o homem, pretensamente racional, utiliza sua tendência a animal gregário para se mostrar um idiota, principalmente porque se mostra vítima fácil do comportamento de boiada conduzida. Vida de gado: povo marcado e povo feliz...
Há quem possa dizer, entretanto, que os problemas aqui arrolados não condizem com a realidade brasileira, famosa por sua “democracia racial”. Não se vai mencionar, entretanto, que no início do século XX negros eram proibidos de entrar em certas lojas de departamento da cidade de São Paulo. Não se vai mencionar, entretanto, que em 2012 uma criança etíope adotada por espanhóis foi expulsa de um restaurante paulistano por ter sido confundida com pedinte. Na verdade, o que acontece em nosso país é que a questão racial é confundida e camuflada com a econômica. Não é por acaso que em “Haiti”, de Caetano Veloso, a aliteração das oclusivas (/t/, /p/ e /b/) acaba dificultado a leitura dos versos – preto e pobre acabam se confundindo:

             (...) a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

Entretanto, não há como negar que houve evolução. Obama é presidente da nação mais poderosa do planeta. Joaquim Barbosa é um exemplo de sucesso ao mostrar que os afrodescendentes não se destacam apenas nas artes ou no futebol. Ainda assim, há muito ainda que caminhar. Ainda surgem frutos estranhos. Basta lembrar que o mesmo sul dos Estados Unidos apresentou uma rejeição monstruosa à reeleição do atual presidente. Além disso, é essa mesma região que está sofrendo para conseguir eliminar em plebiscito leis que ainda lidam com segregação e que na prática nem são mais aplicadas. Quanto ao Brasil, a charge a seguir, de Angeli, publicada na Folha de S. Paulo em 20 de junho de 2006, é magistral ao sintetizar toda a problemática tupiniquim:



 Nela, percebe-se a hipocrisia, fruto estranho da distância entre o discurso politizado – e politicamente correto – de respeito aos direitos humanos e a prática alienada e hedonista. Pensar em 20 de novembro apenas como um feriado, ou pior, fazer discurso sobre a consciência negra e permitir a perpetuação das injustiças que reforçam a segregação econômica, camufladora da étnica, é atualizar os linchamentos do início do século XX.
Enfim, é inegável que houve evolução (não é demais repetir), mas precisamos chegar ao ponto pregado por Morgan Freeman na entrevista abaixo, segundo o qual precisamos não mais sermos lembrados como negros ou brancos, como cristãos ou judeus, mas como pessoas, como seres humanos:




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14 comentários:

  1. Muito coerente todos os elementos citados, antes eu pensava de outra maneira sobre esse feriado, mas realmente há muito a ser lembrado nesse dia. Um ótimo feriado para assistir um bom filme sobre isso: Missisipi em Chamas

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    1. Lembro-me de Mississipi em Chamas. Filme muito forte. Não mais forte do que o horror que foi aquela época, não?

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  2. Bela análise professor =) com certeza como mencionou a questão racial brasileira é camuflada pela economia, onde é diferenciada pela classe social, infelizmente a realidade é que mais negros vivem em favelas ( não generalizando, pois vivo na maior comunidade de SP), infelizmente a esse muro social, claro que houve um grande avanço desde os tempos coloniais, porem leis como cotas raciais ainda geram discussões, (na minha opinião, concordo com as leis, pois conheço a dificuldade de um jovem negro para arrumar serviço) (também confesso que o governo em vez de criar cotas deveria investir na educação publica), uma conversa que ainda terá um longo caminho, porem nunca devemos ter atitudes fascistas (linchamento de negros) o que ocorre pelas ruas de SP ou (como a Policia paulista) salvo exceções, pois sei que policiais param mais negros que brancos, ou falsos socialistas da USP que escrevem no banheiro “Fora negros”, por que tomar tal atitude?por ideologias? Se sim prefiro ir contra qualquer uma, escutar RACIONAIS, O RAPPA, bandas ou grupos que já ouvi muita gente falar que é de maloqueiros, prefiro ser um maloqueiro do que seguir a boiada, como dizia Falcão “Todo ser humano tem um pouco de navio negreiro” infelizmente ainda a preconceito, cabe a nos pessoalmente tomarmos nossas próprias atitudes, obrigado Lau pela análise =)

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    1. Gostei muito dessa sua citação: "Todo ser humano tem um pouco de navio negreiro". E obrigado pelos elogios! E parabéns por você estar na luta, na garra. Parabéns mesmo!

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  3. Excelente texto, Lau. Somente com pensamento crítico é que podemos eliminar a melanina dos julgamentos morais.

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  4. Caríssimo professor,

    O meu comentário vai numa linha que o senhor mesmo já previu: a questão racial do Brasil não tem nada a ver com a norte-americana.

    Nossa história é outra. Durante o Império, por exemplo, vários mulatos foram até ministros: Francisco de Montezuma, o Visconde de Jequitinhonha; João Mauricio Wanderley, o Barão de Cotegipe; José Mariano de Matos, que além de mulato, participou da Rev. Farroupilha contra o Império e ainda assim virou ministro da Guerra... tem ainda o dep. Antonio Pereira Rebouças, que não chegou a ser ministro, pais dos irmãos Rebouças, engenheiros de renome no séc XIX... e etc.

    Mas adiante, no período republicano, podemos citar Nilo Peçanha, um mulato que foi, vejam só, presidente do Brasil durante a dita República oligárquica.

    Enfim, a realidade brasileira é muito, mas muito, infinitamente diferente da norte-americana.

    O brasileiro tem uma tendência à miscigenação que vêm desde os primórdios do povo lusitano, como bem constata Gilberte Freyre.

    E essa tendência unitiva incomoda muita gente. Dividir para conquistar, já diziam os velhos romanos. Não é à toa que o novo movimento negro brasileiro (digo novo porque havia o antigo, de caráter conservador e ultra-nacionalista liderado pelo Arlindo Veiga dos Santos) que começou lá pelas décadas de 70 tenha como grande patrono a Ford Foundation...

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    1. Você apresenta ideias bastante acertadas quanto a participação do negro em nossa História, principalmente no Império anterior à última década de 1890. De fato, Rebouças foi um grande exemplo, pois chegou até a ser conselheiro, um título dos mais altos naquela sociedade. A questão no Brasil é bastante peculiar porque não se baseava na questão racial, mas na de propriedade (até mais do que dinheiro), o que é um resquício da sociedade que foi transposta aqui, ainda de herança medieval. Tanto que, olha que curioso, muitos negros, libertos, tinham escravos. Enfim, não havia a questão racial ainda. Ela só surge no final do século XIX, justamente importada dos Estados Unidos. Mas veio de uma forma desfocada. Como defender essa questão racial aqui, em um país miscigenado. Não que não houvesse discriminação racial a partir de então, mas ela não teve o mesmo caráter da estadunidense. Freire apontou bem isso. E fiz questão de colocar isso nas aulas do Terceiro Ano que montei. Enquanto lá famílias eram transplantadas na colônia, aqui vinha só o homem, que acabava se unindo à índia e depois à negra. Sem falar, com você mencionou, da tendência do português à miscigenação, que ele já possuía em Portugal, pois se unia aos muçulmanos e depois aos africanos. Tanto que há quem na Europa considere Portugal mais África do que Europa... Por fim, reforço: a questão da consciência negra já é um avanço, mas o objetivo a que devemos chegar é o de nem precisar lembrar desse tipo de data, pois seremos uma espécie só.

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    2. Ótima análise, Lau.

      Minha dúvida sobre essa sua resposta ao outro Anônimo é se a ideologia do "branqueamento" está inserida nessa importação feita dos EUA no final do séc XIX ou se foi mais inspirada numa falsa superioridade das civilizações europeias. Talvez até mesmo influenciada por esses dois casos.

      Obrigado pelo texto!

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  5. Caro Professor,

    Usei um texto seu, devidamente linkado e atribuído, lá no Facebook. Passei para agradecer.

    Meu nome é Paulinho Couto e o senhor pode me achar lá no Facebook mesmo. O texto foi sobre Magrite. Explicou uma marca que fiz.

    Obrigado de novo.

    Paulinho Couto.

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    1. Fico feliz pelo fato de O Magriço ter sido útil. Mas não te achei no face.

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  6. eu venho, logo quando acordo, todo domingo e quarta aqui, só pra ver se já apareceu uma nova postagem.

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    1. É muita honra ser motivo de tanta expectativa. Mas vamos acertar seus horários? Aos domingos, o novo post vem sempre às tardes. Oficialmente por volta das 14h. Às quartas, por volta das 19h.

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  7. Concordo com Morgan Freeman. No dia em que não for necessário falar em igualdade para sermos claramente iguais, é que haverá de fato igualdade. Pois se não lembrarmos de diferenças, então elas não existirão.

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