domingo, 24 de abril de 2016

Fotojornalismo: manipulação e distorção - Parte II

Na última postagem (17 de abril de 2016), discutiu-se de que maneira o fotojornalismo utiliza a ligação entre elementos visuais para produzir significado. Outros exemplos dessa atividade serão abordados hoje, como o do fotógrafo israelense Marc Israel Sellem: Retrata-se aqui o encontro entre a chanceler alemã Angela Merkel e o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu. Observe-se a roupa escura, sóbria dos dois. Note-se ainda ao centro a bandeira israelense ao centro, com o azul que se reflete na blusa que a líder europeia tem sob seu terninho. Esse mesmo jogo pode ser visto nas laterais da foto entre a escondida bandeira da Alemanha, que tem o vermelho refletido na gravata do político de Israel. Há uma harmonia aqui, inclusive pelo fato de o azul, central, chamar a atenção na política, e o vermelho, periférico, estar parcialmente oculto pelo braço do político. Esse intercâmbio de elementos parece sugerir a união entre dois povos que no passado eram inconciliáveis. Poder-se-ia pensar que feridas estavam finalmente cicatrizadas. No entanto, o fotojornalista põe denotativa e conotativamente sombra sobre esses fatos. O dedo erguido de Netanyahu projeta um falso bigode sobre Merkel, fazendo vir à tona a imagem de Hitler. Novos significados surgem: o olhar de soslaio (malícia?) e o gesto impositivo do israelense fazem com que não se veja mais o olhar da alemã como sereno, mas como de alienação à troça que se está fazendo ou, se se levar em conta a postura curvada dela, como de abatimento diante da triste e irrevogável realidade: a Alemanha ainda não conseguiu apagar seu passado sombrio.
O mesmo tipo de abordagem, em que o autor sabe aproveitar na rapidez dos acontecimentos ingredientes fortuitos para a produção de sentido, pode ser visto a seguir: 



Aparentemente, trata-se de uma cena sem grande riqueza: funcionários da FIFA envolvidos em corrupção foram presos e, no momento flagrado, ao serem conduzidos para a polícia, são protegidos, em nome da preservação de identidade contra os olhares de abutre da imprensa. É interessante o contraste entre o escuro do carro e da roupa dos figurantes, tanto dos protetores quanto dos infratores, e a brancura do lençol. Aliás, quase todo o ambiente é marcado pela claridade, quebrada apenas pelo verde da árvore (sinal de vida?) e pelo escuro dos elementos ligados ao processo criminalístico. Haveria a significação de tempos mais luminosos chegando ou enxergar isso seria exagero de interpretação? No entanto, o que é bastante marcante na foto em análise é o escrito na placa do estabelecimento: “vanity”, que em inglês quer dizer “vaidade”. Funcionaria como um carimbo, atestando o pecado capital responsável pelo lamentável desvio de caráter.
Outro exemplo bastante valioso é o da foto do dinamarquês Mads Nissen, que ganhou o World Press Photo em 2015: 



A imagem acima enfoca um momento íntimo de um casal homoafetivo. Basta notar o carinho delicado que o curvado dedica ao deitado, que se entrega ao toque, fechando os olhos. Essa ideia de privacidade também está sugerida pela cortina fechada e pela luminosidade fraca. No entanto, essa mesma iluminação produz um jogo de luz e sombra que serve para destacar a escuridão, o que soma à imagem um caráter sombrio. Quando se tem ideia de que essa fotografia foi produzida para retratar a homossexualidade na Rússia, sua significação ressalta. Trata-se de uma crítica aos tempos soturnos em que vivem os russos, com o homossexualismo enfrentando cerceamentos e perseguições alimentados até mesmo pelas esferas governamentais.
Por fim, um exemplo da Associated Press bastante intrigante, pois que lembra as intervenções artísticas do politizado Banksy:

  
Focaliza-se a repressão da polícia turca a um protesto realizado em Ankara por estudantes universitários em 2014. A beleza do campo de delicadas flores amarelas produz um efeito bastante agradável aos olhos, reforçado pela harmonia cromática das figuras de azul. No entanto, o cassetete erguido de uma delas não nos deixa iludir: um jovem, escondido pela vegetação, está apanhando. Assim, entendemos que o outro soldado está procurando mais um alvo. Produziu-se então uma peça de estranha beleza poética marcada pela ironia, o que provoca uma crítica incômoda do mesmo nível de cenas de Laranja Mecânica (1971), de Stanley Kubrick.
Enfim, os casos apresentados nesta postagem e na da semana passada foram suficientes para mostrar que o fotojornalismo é capaz de gerar sentido pela manipulação de elementos visuais. O problema está na fronteira bastante tênue entre manipular e distorcer. Essa é uma questão complexa que entra no mérito de definições como de viés (postagem de 24 de março de 2013) e de realidade, que ainda serão discutidas aqui em momentos oportunos. Por ora, basta ter em mente que o mais aconselhável é o desenvolvimento de capacidade crítica constante e alerta para não se deixar levar pelo senso comum – ou, pior, pelo senso de um grupo jornalístico.


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