domingo, 10 de abril de 2016

A construção do texto e os aprendizes de feiticeiros




Na semana passada (post de 03 de abril de 2016), foi discutida a importância da consciência de que o sentido de um texto é garantido pela ligação que se estabelece entre os elementos que o compõem. Dessa forma, a manipulação errada desse ingrediente produz efeitos indesejados e até desajeitados, como os de um atrapalhado aprendiz de feiticeiro. Vimos exemplos desse descuido no âmbito das frases e orações. Agora veremos como tais podem comprometer a estrutura geral de um texto.
O artigo acima, de 19 de outubro de 2014, é de Inácio Araújo, que escreve coisas bastante interessantes para a Folha de S. Paulo. No entanto, na peça em análise, seu condão não foi feliz. Quando se olha o título e a foto que ilustra a matéria, sabe-se que se vai discutir A Lista de Schindler (não se entende por que aspas simples no título e duplas no corpo do texto, quando o ideal seria apenas o destaque em negrito ou itálico...). O primeiro parágrafo apresenta uma ótima ideia, que merecia ser bem mais desenvolvida: a transformação do sagrado, marcado pelo inatingível e pelo insuportável, em espetáculo. Quanto tema delicioso aqui! Para começar, há muito o que se discutir na diferenciação entre inatingibilidade e suportabilidade. Ou, se o autor está considerando essas categorias como equivalentes, há mais ainda para debater (o problema é que a forma sintética do texto, quase epigramática, não torna claras as ideias: essas categorias são divergentes ou convergentes?).
O segundo parágrafo compromete mais ainda o desenvolvimento do artigo. Fala-se de uma passagem de Levi para Spielberg, excelente jogo de palavras, que não tem razão de aparecer em um parágrafo isolado, já que é ainda parte do raciocínio do parágrafo anterior. Por que ficou solto?
Então, deparamo-nos com o terceiro parágrafo, que começa justamente com a expressão “na verdade”, anunciadora de mudança de rumo – o que de fato acontece; passa-se a falar de A Fuga das Galinhas. E o título e a foto, que anunciaram A Lista de Schindler? Pipoqueia-se tanto tematicamente que é natural que, quando no final desse trecho se diz que “é um filme mais digno sobre o assunto”, fica-se na dúvida: qual assunto? O sagrado? O insuportável? O inimaginável? O espetáculo? A passagem do sagrado para o espetáculo?
O resto do artigo não muda muito. O quarto parágrafo apresenta um insight bastante interessante (a consciência do próprio extermínio), mas a expressão que o introduz, a mesma que abriu o parágrafo anterior, reforça que se está tomando mais outro rumo. O quinto parágrafo faz um gancho entre os dois filmes, mas continua desarticulado do conjunto e se mostra superficial, pois insiste em lançar um tema, sempre interessante, e não aprofundá-lo. Além disso, não se entende por que está separado do anterior. A própria expressão “essa animação”, que o inicia, sozinha não faz sentido, ou seja, não garante a autonomia do parágrafo. O sexto parágrafo é o tiro suicida e inconsciente de misericórdia, pois lança um tema dissonante que surge do nada e é jogado ao nada, pois, ao mesmo tempo em que puxa a abordagem para as alturas, já que fala sobre o sentido e a consciência de nossos hábitos essenciais, é largado, não é desenvolvido.
  
Mickey como o desastrado Aprendiz de Feiticeiro em Fantasia (1940).

Seis parágrafos, seis temas diferentes. O jornalista parece que pegou o espírito televisivo e começa a zapear pelo assunto, sem se deter em nenhum, tornando seu texto superficial. Pode-se desculpá-lo lembrando o que Rubem Braga já havia mencionado: a pressão do meio jornalístico, preocupado com produção periódica, sem se importar com inspiração. No entanto, quando o grande cronista havia tematizado isso, foi com a intenção de falar sobre a falta de assunto. Aliás, Braga tinha a maestria de conseguir superar esse estresse e redigir até mesmo sobre o vazio temático – caso bastante diferente de Inácio Araújo, que está com excesso de matéria, mas a apresenta de forma desarticulada e sem profundidade. Lembra o descompromisso da geração do ficar, que se envolve emocionalmente com tantos em uma só noite, mas sai das baladas vazia afetivamente. Estaria o autor atendendo ao universo de valores de seu presumido público?
Enfim, é importante ter em mente que o sentido de um texto não se dá apenas pelas ideias que ele apresenta. O exemplo acima analisado é eficaz em provar isso. É necessário que se estabeleça uma adequada relação entre seus constituintes, do contrário, o raciocínio estará comprometido e o esforço da escrita estará inutilizado.



Quinta, 14 de abril, às 19h30,
SESC Ribeirão Preto





2 comentários:

  1. Bom estou acompanhando seu Blog e na minha simplicidade estou amando os textos!

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    1. Obrigado por acompanhar! E participe também dele, fazendo comentários! O blog é um espaço coletivo!

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