Vindo a público em 1997, Harry Potter e a Pedra Filosofal abriu caminho para uma série de estonteante sucesso que chegou a vender mais de um bilhão de livros, um feito digno de respeito. Entretanto, existe a ideia de que se deve desconfiar de tudo aquilo que provoca frenética movimentação ao seu redor, já que a turba costuma se orientar por critérios (se tais existem) desarrazoados. É fato. Mas a criação de J. K. Rowling merece uma análise mais serena e menos amarga, ou até menos despeitada, recalcada ou invejosa.
O primeiro aspecto que interessa quando se está diante de um texto literário é a sua linguagem, no que a obra em questão não fracassa. Há a utilização de um ritmo simples, fluente, que a torna cativante, ainda mais com a utilização engenhosa de neologismos, muito bem traduzidos na edição brasileira. Além disso, a informalidade que a narradora assume está no ponto certo, sem descambar para o desleixo e garantindo um tom de grata conversa, como se estivéssemos nos aconchegantes sofás de Grifinória, embalados por histórias carregadas do maravilhoso e que nos deslocam de nossa realidade de trouxas.
Nesse ponto, algumas considerações merecem ser observadas. Harold Bloom, valoroso cavaleiro em luta contra o processo de imbecilização de que vem sendo acometida nossa cultura nos últimos tempos, condenou Harry Potter por ser uma colcha de retalhos extremamente gastos, ou seja, uma colagem de metáforas tão esgarçadas que seriam clichês sem vida. Pode-se lembrar, todavia, que a obra sobre o pequeno bruxo é excelente no que se propõe, que é atender aos anseios de seu público juvenil. Não se deve procurar nela características de Machado de Assis, Clarice Lispector, James Joyce, Marcel Proust ou mesmo Lewis Carroll. Provavelmente Rowling não aspirava a isso quando planejou sua série, pois ninguém é obrigado a tal. Além disso, há quem diga que nada mais se criou desde a Idade Média, sendo toda nossa produção cultural repetição de arquétipos, de uma forma ou de outra. A autora inglesa tem seu mérito em saber lidar com esses retalhos (Fênix, pedra filosofal, elixir da longa vida, Pégasus, dragões, hipogrifos, unicórnios) e colá-los de uma maneira que emociona seus leitores, afinal, esse é um dos mais primitivos desejos da arte de contar histórias. Depois é que houve a preocupação com a manipulação de linguagem, a apresentação crítica da sociedade, a introdução de questões metafísicas. Na verdade, estas são tarefas modernas. E a palavra “modernidade” hoje vem carregada de um ranço doentio.
Fica então a impressão de que a grande qualidade de Harry Potter é proporcionar uma fuga para um passado, para uma inocência perdida. Todos os seus fãs, não importa a idade, seriam na verdade saudosistas. Pode até ser. E não é errado uma obra realizar isso. Mas há que se ter cuidado com o conceito de “inocência”.
Rowling não transformou sua obra em mais uma daquelas juvenis preocupadas com a assepsia temática. Na verdade, ela honrosamente respeitou seu público ao não subestimá-lo, ao não esconder a negatividade da vida. Mas não sobreviveu dela, ao contrário dos programas apelativos como Cidade Alerta ou Brasil Urgente. O foco dos seus romances está em aspectos positivos e, portanto, edificantes. Assim, há aspectos muito fortes, como o submundo do Beco Diagonal. Ou a venalidade de Gringotes. Ou a soturnidade dos comensais. Ou o ritual de magia negra que traz de volta à vida Voldemort. Ou o doloroso contato com a morte de Cedrico em O Cálice de Fogo. Ou questões mais constantes: a pobreza (como a da família Weasley) e o preconceito (contra os “sangue-ruim”). Se há uma fuga para um mundo mágico, nele não se está livre de temas pesados da existência humana.
Repita-se: talvez a inocência da obra esteja em apresentar valores edificantes, ainda mais num mundo niilista ou mesmo hedonista e alienado como o nosso. Os heróis da série não ignoram a malignidade que os cerca, mas aprendem a sobreviver levando em conta talento e esforço, amizade e lealdade e, mais importante, percebem que o eu interior é o que nos guia, indicando o certo ou errado. Essa é a verdadeira base do valioso senso ético. E por que não valorizar livros que conseguem mostrar isso de uma forma tão gostosa?
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