domingo, 30 de setembro de 2012

Chaves: representação do inferno?




Na edição 1896 do Jornal Opção, de Goiás, surgiu uma análise muito boa do seriado Chaves, feita pelo historiador Ademir Luiz. De acordo com o texto, esse programa de televisão seria uma representação do inferno. O autor usa argumentos sólidos, como o fato de D. Clotilde vez por outra perguntar por Satanás. De acordo com o estudioso, essa entidade é transmorfa, por isso há episódios em que é mencionada como um gato, em outros como um cachorro. Além disso, essa mulher é a bruxa do 71, o que permite duas referências interessantes – a primeira é a de que na tradição cristã as feiticeiras são associadas ao príncipe das trevas; a segunda é a de que os algarismos que compõem o número de sua casa, quando somados, formam o 8, o número que representa o infinito – e que é justamente o da casa em que mora o protagonista da série.


Ainda assim, há problemas na exposição do autor, como o argumento de que a atriz que foi chamada para interpretar essa moradora ser uma ex-miss, o que faria com que atuasse o castigo pelo pecado da vaidade. Não se deve confundir ator com personagem, do contrário, acabar-se-ia limitando a potencialidade da dramaturgia. E mesmo que o autor de programa, Roberto Gómez Bolaños, tenha tido alguma intenção sutil com tal escolha, ela teria sido tão discreta que não teria surtido eficiência em seu discurso. Mas, no momento, vamos nos concentrar nos pontos positivos da análise feita pelo goiano.
O protagonista desse humorismo no original não tem nome. No México a atração é chamada de El Chavo del Ocho, ou seja, “O Moleque do Oito”. No Brasil houve uma adaptação do termo hispânico “chavo” para “Chaves”. E de fato, como aponta Ademir Luiz, em nenhum momento o nome do menino é mencionado. Além disso, esse garoto fora acolhido por uma senhora que nunca é vista. Como ela mora na também nunca vista casa 8, número que, deitado, representa o infinito – Fernando Pessoa já fazia no começo do século XX essa mesma associação ao se achar especial por ter nascido em 1888, ano que apresenta três vezes esse signo –, essa mulher passa a ser entendida como a morte, a entidade eterna que intercepta os vivos.


Dentro desse raciocínio, a vila em que se passam essas histórias nada mais seria do que uma representação do inferno, com direito a vários tipos de demônios torturando as almas que para lá foram condenadas. O Satanás da Bruxa do 71 é Belzebu, entidade ligada à vaidade. Paty e tia Glória seriam súcubus, manifestações femininas do demônio e que têm a função de tentar com sua sedução os homens, no caso Chaves e Seu Madruga. Hector Bonilla seria um íncubo, versão masculina dos súcubos, com a função de tentar as mulheres. Nhonho seria Mammon, que castigaria Seu Barriga, a avareza em pessoa, fazendo-o destroçar sua fortuna. Popis seria Azazel, instigando a fúria de Chiquinha. Godinez seria Leviatã, atiçando a inveja intelectual de Quico.
Nesse campo, não é gratuito que Jaiminho, o carteiro, sempre se mostra cansado, pois, trazendo mensagens para os moradores, na verdade já mortos, seria um médium esforçando-se sobre-humanamente para estabelecer contato. Além disso, o fato de Chaves ser moleque, ou seja, o que apronta, o que subverte os valores, facilita que se entenda que se trata de um pecador.
É também um excelente argumento a ideia de os amigos da personagem principal representarem pecados capitais. Quico simbolizaria a inveja, tanto que é o mais abastado da vila, mas sempre tem inveja dos brinquedos que os outros têm, bem mais pobres que os dele. Chiquinha seria prisioneira da ira, que a faz atropelar com seu triciclo tudo e todos. Para piorar, como é a mais fraca do grupo, sua raiva não é extravasada, limitando-se a chorar e chorar. O Chaves, nesse sentido, seria o representante da gula, pois não para de pensar em comer.
Entretanto, há problemas nessas aproximações. O protagonista, em sua fome insaciável, fala sempre em presunto e chega a chamar seu professor de Linguiça, referências, para Ademir Luiz, à carne de porco, alimento proibido por Deus, o que aumentaria a carga de seu pecado. Mas tal restrição só se aplica às culturas judaica e muçulmana, não à cristã, pelo menos conforme ela se consagrou. Além disso, esse menino também mostra sua gula também com churros. Ademais, qual criança não se mostra esganada?
Seu Barriga, por sua vez, seria a alegoria da ganância, pois vive ostensivamente fazendo cobrança. Entretanto, causa estranheza falar que sua Brasília amarela é referência à corrupção brasileira. Em primeiro lugar, o México também viveu problemas com a apropriação indevida de recursos públicos. Sem falar que a menção a esse automóvel pode ser só da tradução. Então por que aqui se aceita a adaptação à cultura brasileira e no nome do protagonista tão é rejeitada?


Torce-se o nariz, por sua vez, para a caracterização de Seu Madruga. É certo que ele pode representar o absurdo pecado da preguiça, pois sempre está gastando muito mais esforços para realizar suas tarefas, principalmente pagar o aluguel atrasado. De fato, são 14 meses que nunca chegam a 15, o que levou o historiador a fazer mais considerações numerológicas: 14 = 7 + 7, pondo à tona um número com fortes conotações bíblicas, como a famosa 70 x 07, outra referência ao infinito.
A grande falha da análise está na associação de Chaves à ideia do infinito como suspensão do tempo, uma das características marcantes das penas do inferno. É por isso que nunca se sairia dos 14 meses de aluguel atrasado (mas como se chegou aos 14?). É por isso que D. Florinda e o Professor Girafales estariam numa espiral infinita de nunca saciarem o pecado da luxúria, a cada episódio sempre com convite para mais uma xícara de café, bebida de consagradas propriedades estimulantes. Um detalhe muito importante está sendo esquecido: a forma em que o programa se apresenta, ou seja, o seu gênero.
Não se está dizendo que a suspensão do tempo não pode funcionar em arte como representação de uma condenação infernal. Vemo-la no filme 1408 (2007), em que o pior da tortura está na possibilidade claustrofóbica de toda a agonia se repetir integralmente a cada hora. Ou em Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos, em que de fato o inferno, palavra crucial no romance, está no fato de as personagens estarem condenadas a um massacre social e existencial sem saída. Mas, note-se, nesses dois casos a forma em que se manifesta o texto possibilita essa interpretação.
Já no caso de Chaves, Ademir Luiz falha ao não perceber que se trata de um seriado humorístico popular, por isso as repetições quase que ad infinitum. É o mesmo que ocorre em Zorra Total e A Praça é Nossa. A forma acaba determinando o tema – cada um dos vários episódios naturalmente repete elementos. Não é um romance de pouco mais de cem páginas. Não é um filme de cerca de duas horas de duração. Além disso, o caráter claustrofóbico visto pelo historiador, que afirma que tudo se concentra em vila, rua, restaurante, sala de aula, é também característica desse gênero, que prima pela pobreza cenográfica.
Entretanto, tais pontos não invalidam a beleza do texto produzido pelo historiador, pois cumpriu uma excelente tarefa pertencente ao que há de mais nobre no ser humano: a produção e circulação de ideias. Seus argumentos, em boa parte, são bem embasados, basta observar a proporção dos pontos positivos arrolados aqui em relação aos negativos. É isso que torna a sua leitura prazerosa, principalmente para quem tem mente aberta e, portanto, livre de preconceitos. Além disso, não se está mais no tempo de proibição do livre pensamento. É lamentável, portanto, a desproporção na página do artigo do autor entre as inúmeras ofensas e as pouquíssimas contra-argumentações. Vivemos tempos sombrios. O inferno não está em Chaves. Está aqui.

33 comentários:

  1. Eu gosto dessas "conspirações", porém neste caso acho mais sensato, e muito mais interessante, pensar que o anonimato de Chaves é uma referência as diversas crianças que vivem na situação dele, ou seja, um anonimato devido a sua pobreza e o abandono dos pais. Além do mais, que os 7 pecados capitais são comportamentos comuns do ser humano, sendo assim, de fácil identificação do espectador com o personagem, além de ser, talvez, uma crítica à esses arquétipos. Enfim, gostei da sua exposição, como também dos outros textos, porém, tem muito mais conspiração nos vídeos de maçonaria, annunakis, nova ordem mundial, entre outros.

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    1. Suas observações são muito boas, principalmente no que se refere ao anonimato. De fato, é uma maneira de fazer com que a personagem fale com algo que está dentro de todos nós.
      Detalhe: não sei o que é annunakis.

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  2. Caramba, nunca conheci tantos demônios, ótima conclusão!

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  3. "Godinez seria Leviatã, atiçando a inveja intelectual de Quico"
    Mas ele é tão burro quanto os outros...

    "Seu Barriga, por sua vez, seria a alegoria da ganância"
    Mas quase sempre perdoa os aluguéis atrasados do seu Madruga, que foi taxado de vagabundo, embora já tenha trabalhado como tudo nesta vida. Trabalhou como pintor, carpinteiro, empresário artístico, depenador de frangos, eletricista, cabeleireiro...

    "Paty e tia Glória seriam súcubus"
    Obaaaa... sabia que tinha algo de bom no inferno! :D

    "D. Florinda e o Professor Girafales estariam numa espiral infinita de nunca saciarem o pecado da luxúria"
    Luxúria??? Ta aí um dos (pré)conceitos bíblicos que considera como pecado todo contato físico visando ao prazer em detrimento da reprodução humana.

    Embora o autor se esforce para fazer de sua teoria algo respaldado, ele peca em tentar dar uma base racional para a irracionalidade, em outras palavras, para a fé. Seus argumentos se firmam em algo que não é fruto de experiências ou da razão.
    Mas se você é um daqueles que ama ouvir esse tipo de tese, visite o manicômio mais próximo de sua residência. Tenho certeza de que lá haverá também pessoas que, como o autor, enxergam demônios em todos os lugares.

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    1. Talvez o mais cômico fosse exatamente isso, um burro atiçar a inveja do conhecimento.
      Achei muito boa sua observação sobre seu Madruga, que no fundo não é tão vagabundo assim.
      Quanto ao problema de dar base racional à fé, esse era o problema da Igreja na Idade Média, material que o autor do artigo usa em sua análise. Além disso, a cultura ibérica que foi transposta para a América - Brasil e México - carrega essa essência da Idade Média.
      E lembra quem enxergava demônios em toda parte? Lembra-se da Inquisição?

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  4. Existe sim um episódio o qual os 14 meses de aluguel se tornam 15 meses

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  5. Ele estabeleceu diversas ligações plausíveis e algumas nem tanto. Admiro pessoas que conseguem chegar a aproximações como essas, é necessário um amplo conhecimento para tal. Gostei muito, apesar de ter achado um tanto quanto exagerada a comparação do casal Florinda e Girafales com Marquês de Sade e Messalina.
    Em relação à ira da Chiquinha, vejo de uma forma diferente: ela é uma menina de mais ou menos 9 anos que tem como amigo o "delinquente" Chaves. Obviamente (ah, mulheres!), se apaixona por ele e não é correspondida, por conta da maturidade que sempre chega atrasada no cromossomo Y. A inveja e a gula são típicas das crianças e o Jaiminho (natural de Tangamandápio) está sempre cansado porque não sabe andar de bicicleta e tem que vagar a pé pelas ruas. Agora chega de escrever porque prefiro evitar a fadiga.

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    1. Você fez observações muito boas, dignas de quem domina o assunto. Acho que você era viciada em Chaves!

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  6. Cresci assistindo e hoje assisto sempre que posso. Conversei certa vez com o Melécio sobre Chaves e ele me disse que um mexicano falou que o seriado foi inspirado na Revolução Mexicana (1910). Faz sentido, pois o seriado foi ao ar pela primeira vez em 1971.
    Segundo essa teoria, os homens saíram para lutar e a maioria não voltou (como o pai do Kiko), restaram os professores (Girafales), os idosos (Jaiminho), os inválidos/preguiçosos (Seu Madruga) e os "bacanas" (Seu Barriga). As viúvas recebiam uma pensão em dinheiro que era uma verdadeira merreca; as que conseguiam sobreviver com ele eram chamadas de bruxas, pois somente uma bruxa conseguiria viver com tão pouco (Dona Clotilde).

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    1. Muito boa essa interpretação. Muito boa mesmo. Mas em que ano foi essa revolução

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  7. Os antecedentes vêm desde 1876, no governo do ditador Porfírio Diaz, mas somente em 1910, com a reeleição fraudulenta de Diaz, a Revolução tem início. Terminou, creio eu, em 1923, após a morte de Pancho Villa (Emiliano Zapata já havia morrido em 1919). A morte deles acaba diminuindo as lutas sociais, que ressurgem em 1929 (decadência econômica), daí a necessidade de eleger um presidente populista (Lázao Cárdenas) para acalmar a população.

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  8. O seu desfecho foi genial Lau.Parabéns pelo texto! Acho que na realidade os personagens do chaves não passam de representações das pessoas na vida real de uma forma caricaturizada. Eu consigo enquadrar vários, ou talvez todos, os personagens em pessoas as quais conheço.

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  9. Antes do comentário procurei ler o texto de Ademir Luiz e pude verificar que realmente se trata de uma bela construção com argumentos bem embasados.
    Ocorre que há importantes ressalvas desconsideradas pelo autor. Por algum motivo, houve uma supressão de fatos marcantes na série "Chaves". Pode ser que Ademir Luiz não tenha sido um espectador efetivo da série, ou talvez não se lembrou de alguns fatos,ou até mesmo procurou desconsiderá-los para que não tivesse possíveis dificuldades de argumentação.
    Pois bem, Ademir Luiz considera que Roberto Bolaños "é o criador de uma das mais sutis, brilhantes e temíveis representações do inferno" , mas não aborda questões relevantes como grandes demonstrações de humanidade que fazem parte da série em questão.
    Quem não se lembra de quando o "Seu Madruga" oferece "seu corpo" para apanhar de Dona Florinda no momento em que ela pergunta sobre o destino de seus churros? Recordemos que Chaves se encarregou de cuidar dos churros que Madrugda estava vendendo uma vez que este precisava de ir ao banheiro. O resultado: Chaves comeu todos os churros e Madruga não o acusou à Dona Florinda. Muito pelo contrário, assumiu o feito... Quem assistiu a este episódio há de se lembrar com riqueza de detalhes...
    Continuemos esta abordagem despretensiosa...
    Quando Ademir Luiz mencionou os intermináveis "14 meses" de alguel, não se ateve ao fato de que houve dois episódios marcantes sobre a questão: em um deles, por incrível que pareça, "Seu Madruga" consegue sim pagar o aluguel! Tudo bem que os móveis de Madruga já estavam todos no pátio da vila... Mas quando Chaves derrubou um guarda-roupas , Madruga achou o dinheiro e pagou o aluguel! Foi demais a expressão de alívio e dever cumprido do Mestre Madruga,rs. No outro episódio, o Senhor Barriga está na iminência de despejar Madruga da casa quando inventa a desculpa de que este havia perdido certa luta e o salvou de uma dívida. Desta maneira, o aluguel foi perdoado. Cabe informar que depois do fato, o Senhor Barriga foi questionado pelo Professor Girafales sobre a conduta de se envolver com apostas de lutas. Senhor Barriga nega a conduta e rebate: "Se essa gente sair daqui, o que vai ser delas?"
    Continua...

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  10. Continuando:

    Um pouco acima houve a mencão de meste ao "Seu Madruga... Eplico: reservo-me ao direito de escrever Mestre Madruga porque esta personagem transmitiu aos espectadores mais sensíveis, valores importantes. Um deles já foi mencionado no bonito episódio dos churros. Existe um episódio em que a implacável Dona Florinda elogia Madruga pois ele havia dito às crianças a seguinte frase:"As pessoas boas devem amar seus inimigos". Lembro que neste episódio Chaves escapou de um cascudo pois repetiu a frase ao próprio Madruga. Falando em frases do Mestre Madruga, o que não dizer da seguinte: "A vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena"? Sem mais... E como não poderia de se mencionar, a frase mais célebre: "Não existe trabalho ruim, o ruim é ter que trabalhar." Afinal, devemos viver,rs.
    Lancemos o olhar mais longe para se verificar condutas admiráveis de outras personagens.
    O já mencionado Senhor Barriga proporcionou ao Chaves uma viagem a Acapulco. Sim, Acapulco! Também recebeu em sua residência os moradores do pátio da vila quando este passava por reformas. Ao término das reformas, até o barril do chaves foi beneficiado.
    Chaves, personagem principal, também tem o seu momento de bom samaritano. No episódio em que o aniversário do Quico foi o tema principal, Chaves se preocupa em guardar alimentos do referido aniversário. Neste caso, Ademir Luiz até pode falar da gula do menino... Desde que não assista até o final do episódio cujo desfecho foi inesperado: Chaves compartilha com Madruga os alimentos. E Madruga compartilha um "refresco" com Chaves. Também existe o episódio em que Chaves foi injustamente acusado de ladrão. Na oportunidade, o menino indefeso frente aos argumentos dos moradores da vila, resigna-se e aceita o erro de todos. Depois pede em algum tipo de oração para que o verdadeiro ladrão se arrependa.
    A chamada "Bruxa do 71" também pratica boas ações. O espectador deve se lembrar de quando os Chaves, Quico e Chiquinha entram na casa de Clotildes e criam uma ilusão do castelo de uma bruxa. Ao término do episódio eles são surpreendidos pelo agrado de Clodiltes(um pirulito para cada).
    Dona Florinda ama incondicionalmente o filho e, observados certos aspectos cômicos, pode-se dizer que a conduta é totalmente admirável. É fato que Dona Florinda tem uma relativa postura agressiva, mas o que se esperar de uma senhora que não sabe o destino do esposo marinheiro e zela pelos "bons costumes"? Não seria tão simples para Florinda se envolver sexualmente com outro homem pois não há certeza de que ela é viúva.

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    1. Continuando novamente...

      O destaque para o termo "bons costumos" veio em momento oportuno visto que o seriado Chaves não apresenta apenas condutas virtuosas de suas personagens.
      Dona Florinda utiliza demasiadamente o termo "gentalha" e o transmite ao filho. Esta conduta, assim como outras, mostra a possível dinâmina da série. Todas as personagens são dotadas de "vícios e virtudes
      Exemplifiquemos mais: existe um episódio em que o honrado Professor Girafales perde a sua ética. Chaves está sendo julgado por atropelar o animal de estimação do Quico, mas é "absolvido" por Girafales no momento em que iria dizer que atropelou o animal para se desviar de um homem que estava parado feito "bocó na rua" vendo a mulher bonita. Este homem não precisa de ser revelado... A despeito de Jaiminho, há uma questão importante a ser observada: ao passo que realmente a atividade mediúnica é desgastante(alusão feita por Ademir Luiz), as cartas deveriam seguir a o caminho inverso. São os mortos que falam com os vivos; nao o contrário. Também deve-se observar que Jaiminho é um funcionário público e, observado o estigma de um, verifica-se que ele adota a lei do menor esforço...
      Em relação às combinações numéricas, torna-se importante verificar que o infinito representa mais adequadamente a vida. Um ciclo sem fim. A vida em si, pode ser considerada infinita; não a morte. Abstenho-me de dizer sobre as outras combinações númericas pois não disponho de conhecimentos adequados.
      O caráter cíclico da obra pode ser interpretado unicamente como uma produção artística com características de novela(sim, novela cujos capítulos são, em geral, independentes)aliada ao carater cômico.
      Existem outros argumentos interessantes contra a tese de Ademir, mas este texto já está demasiadamente grande.
      Em suma, o seriado Chaves pode ser visto como uma representação da condição humanana: traquinagens, instintos primitivos, ou melhor, de sobrevivência(como a fome), atitudes louváveis e outras mais secundárias.

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    2. Obrigado por suas observações. Eles são bastante enriquecedoras. Fiquei muito feliz em lê-las!

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  11. Da série: gente que não entende que o texto é só pra ser divertido...

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    1. Gente que não entende que é só um seriado de humor...

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    2. Gente que não entende que é inspirado em Sartre e que é sim só um seriado de humor, e é só uma crítica social, mas é o inferno também, porque esta é a dinâmica sartreana de elaborar suas tramas

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  12. Essa teoria possui vários furos e inverdades (algumas informações foram retiradas diretamente do artigo do autor dessa teoria):

    1. O autor da teoria (Ademir Luiz), em seu artigo original, publicado na revista "Bula", afirma que Bolaños encheu sua obra de sinais que deveriam ser decodificados para que o verdadeiro sentido de sua obra seja percebido. Isso está bem distante da realidade. Ao analisarmos algumas entrevistas do próprio Bolaños e de pessoas próximas a ele (e vários outros pontos que serão usados para refutação), vemos que a inspiração de sua obra se baseou em uma série de observações do mundo real. Em primeiro lugar, o personagem Chaves é fruto de uma análise social e psicológica (feita pelo próprio Roberto), considerando o fato de que existem crianças pobres espalhadas por todo o mundo, mas que mesmo em suas maiores dificuldades, permanecem otimistas de que algum dia irão superar as barreiras e sairão das péssimas condições sociais. Ou seja, o personagem Chaves é fruto de uma observação social das crianças pobres. Não existe nenhum segredo oculto aqui. Em segundo lugar, o comportamento dos demais personagens do seriado é fruto de uma observação familiar. Muitas das ações realizadas pelos personagens do seriado são baseadas nos comportamentos dos filhos do próprio Roberto. Também não há nenhum segredo. Quanto aos demais possíveis sinais de uma mensagem oculta que o autor da teoria aponta, serão analisados abaixo.

    2. A definição de "moleque", realizada pelo próprio autor em seu artigo me parece forçada. Moleque pode simplesmente significar uma criança, não necessariamente "quem subverte a ordem moral". E mesmo que esse fosse o caso, devemos nos lembrar que Chaves é retratado em toda a série como uma criança inocente de apenas 8 anos. As ações que poderiam ser consideradas moralmente más não se encaixam na definição de pecador, porque o pecador é aquele que peca com intenção, quem comete um erro sem intenção ou ainda sem conhecimento do que é errado, não pode ser considerado pecador. Logo, não se pode definir "Chavo" como pecador. As ações ruins do personagem são fruto de ingenuidade infantil, não de malícia.

    3. O número da casa 8 não é uma representação da "morte eterna", mas apenas uma referência ao canal da emissora mexicana (Televisa) onde o seriado foi criado e exibido.

    4. O ciclo interminável de confusões e brigas nada mais é do que um loop que é presente na maioria das obras de comédia e serve para trazer mais familiaridade do público com o seriado e seus personagens. Esse loop de situações também existe em "Todo Mundo Odeia o Chris" (o Chris sempre se dá mal), "Os Simpsons" (o Homer sempre quer bater no Bart) e etc. Mas nem por isso dizemos que estes seriados e desenhos são uma representação do inferno. Não existe qualquer relação com uma punição eterna.

    5. O cenário de Chaves não possui tantas variações pelo simples fato de que a história é centrada na própria vila. O mesmo ocorre em qualquer seriado que tenha um cenário principal e em muitos destes seriados, o cenário permanece inalterado. Assim como em Chaves.

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    1. 6. Chaves não está pecando por comer carne de porco. Essa proibição só foi aplicada por Deus no Antigo Testamento, não no Novo. Essa proibição era para a Antiga Aliança, não para a Nova Aliança. Logo, Chaves não comete pecado por comer sanduíche de presunto. Além disso, ele só chama seu professor de "mestre linguiça" por conta da sua altura. Isso fica claro no episódio "A caricatura do Professor Girafales" de 1977, onde o Quico faz uma caricatura do Professor Girafales com um corpo de linguiça.

      7. Não é verdade que os 14 meses de aluguel nunca se tornaram 15 meses. No episódio "O Despejo do Seu Madruga" de 1977, o Sr. Barriga afirma que naquele mesmo dia os 14 meses se tornaram 15 meses. Ou seja, a ideia de eternidade é completamente destruída e refutada, uma vez que não é possível existir acréscimo naquilo que é eterno. Além disso, o próprio fato de serem 14 meses prova que o tempo no seriado não é eterno, pois estes mesmos 14 meses um dia foram 5, 6, 10 e por aí vai. E no final do episódio "O Dinheiro Perdido" de 1978, o Sr. Barriga afirma que eles estavam no dia 6. Ou seja, a noção de tempo é claramente abordada e é existente no seriado. No episódio "O Ano Novo do Chaves" de 1973, os personagens comemoram o ano novo e é dito claramente que mais 1 ano estava se aproximando. Pode ser dito que em episódios posteriores a dívida volta para 14 meses, mas isso volta justamente para o ponto 4: o loop infinito é apenas para fins cômicos e existe em vários seriados. Não tem nada a ver com o inferno.

      8. A Brasília do Sr. Barriga não faz referência ao Brasil e a corrupção, ela foi selecionada como carro no episódio "Lavagem Completa" por três motivos: já era o carro do próprio ator do Sr. Barriga (Édgar Vivar), a produção não queria gastar o orçamento apenas para inserir um carro no seriado (tanto é que a mesma Brasília apareceu em vários episódios até o fim dos anos 70) e o carro estava se tornando popular no país (já havia produção local do veículo no México em 1974. O episódio da Lavagem, que é o primeiro onde a Brasília aparece, é de 1975).

      9. O animal da Bruxa do 71 ser um gato em um episódio e em outro ser um cachorro, apenas sugere que o mesmo episódio foi gravado em anos distintos e não é de se esperar que algumas alterações no roteiro e até mesmo nos personagens sejam feitas (isso é comum em Chaves). Em 1975, no episódio "A Casa da Bruxa", o animal é um gato e em 1979, é um cachorro. Da mesma forma, em três episódios diferentes da mesma história, o Sr. Furtado é interpretado por atores diferentes. Na primeira versão de 1974 é um ator, na versão de 76 é outro e na versão de 82 é outro completamente diferente! Um outro exemplo é a clássica história do Despejo do Seu Madruga, cuja versão mais famosa é a do episódio "O Dinheiro Perdido", de 1978. Nessa versão, não existe a presença do personagem Jaiminho. No entanto, essa mesma história possui uma versão de 1984 onde o Jaiminho aparece. Em resumo, são apenas mudanças que ocorrem em versões diferentes do mesmo episódio.

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    2. 10. Sobre os personagens secundários (como Hector Bonilla, a Paty, a Glória e etc) serem demônios, não é de se surpreender com o fato de que qualquer sitcom ou série de comédia tenha personagens secundários. A existência de personagens secundários existe para trazer dinamismo ao cenário e expandir piadas ou servir de suporte narrativo. Associar estes personagens secundários a criaturas demoníacas que geram confusões no seriado me parece um problema, porque é evidente que se essa fosse realmente a intenção de Bolaños, estas criaturas demoníacas apareceriam com maior constância no seriado ou seriam ainda mais presentes. O que claramente não ocorre. Hector Bonilla aparece em apenas um único episódio, Godinez é um aluno calado com pouca participação em comparação com Chaves, Nhonho, Quico e Chiquinha, Popis também não é tão participativa no seriado e Paty e Glória aparecem em poucos episódios. Se eles realmente fossem patronos infernais, se esperaria que eles fossem mais presentes no seriado, justamente para tornar este cenário de sofrimento e confusão infernal ainda mais terrível (ainda mais considerando o fato de que a teoria diz que essas almas morreram sem arrependimento dos pecados, estão no inferno e apenas estão aguardando o julgamento final). E o pior é que muitas dessas supostas funções infernais claramente não funcionam. Pode ser dito que apesar de Hector Bonilla não estar presente na vila, ele pode causar essa "tentação" por meio da televisão, pois é dito no seriado que ele é um ator. Mas isso cria um novo problema: o fato de que o professor Girafales e a dona Florinda sempre estão juntos, independente do que ocorra. Se a função deste patrono infernal é trazer confusão entre o casal, essa função claramente não é exercida com êxito, pois nem Glória e nem Hector Bonilla foram capazes de separar a dona Florinda e o professor Girafales. Logo, ao invés desses supostos "demônios sexuais" trazerem desunião, trazem ainda mais união (o que vai ao oposto do que eles deveriam fazer). Isso claramente quebra a tese de que esses personagens secundários seriam patronos infernais. Vale ainda notar que me parece muito forçado associar Nhonho a Mammon pelo simples fato dele pedir para seu pai comprar alguma coisa para ele, pois isso é comum com outros personagens no seriado. Por exemplo, Chiquinha também pede constantemente para seu pai comprar coisas pra ela e Quico também pede constantemente para sua mãe comprar doces pra ele. Então, ao invés de dizer que o Nhonho é uma criatura infernal que reforça a ganância por dinheiro do Sr. Barriga, é muito mais racional dizer que este comportamento apenas reflete um comportamento muito comum em qualquer criança mimada. Ou seja, faz muito mais sentido dizer que Nhonho é apenas uma criança como qualquer outra.

      11. O que a teoria não explica é em relação aos personagens que são mencionados mas não aparecem ou aparecem em um único episódio (como a esposa do Sr. Barriga, a esposa do Seu Madruga e outros). Eles também estão no inferno ou estão no céu? O pai do Quico está no inferno? Faço essa última pergunta porque ele aparece como uma lembrança no episódio "Recordações" de 1977, e é apresentado como tendo as mesmas características tanto físicas quanto comportamentais do Quico. Ou seja, seguindo a lógica da teoria, era para o pai do Quico também estar no inferno. Mas por que ele não aparece? Por que ele é tido apenas como uma lembrança do passado? Ele está realmente no inferno?

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    3. 12. A teoria originalmente diz que Jaiminho seria um representante da terra, uma espécie de médium que possui uma função espiritual de portador de mensagens. Mas essa hipótese também apresenta problemas. O personagem do Jaiminho passa a morar permanentemente na vila a partir de 1982 no episódio "Jaiminho Garabito". Jaiminho, mesmo morando na vila, ainda permanece com suas funções de carteiro ou na teoria, de médium. Mas se o Jaiminho é um médium, ele não poderia exercer sua função estando permanentemente no inferno. Isso traz duas únicas possibilidades que acabam colapsando a teoria: 1. Ele também morreu (o que invalidaria sua função como médium e que contradiz o seriado, pois é mostrado que ele continua como carteiro) ou 2. A vila não é o inferno e é um lugar comum como qualquer outro no mundo físico. Esse ponto é extremamente problemático para a teoria, porque ela teria que explicar como Jaiminho poderia exercer suas funções de médium estando permanentemente no inferno e porque ele escolheria viver permanentemente em um cenário de sofrimento, dor e confusão que nunca irá cessar. Por fim, um ponto que é fundamental de ser mencionado e que também refuta essa teoria é a religiosidade do próprio Roberto. Roberto era católico e expressou fortemente a sua fé em episódios como "O festival da Boa Vizinhança" (a parte 4, de 1976) e "Natal, Noite de Paz!" (de 1973). E esses dois episódios também representam mais um problema pra teoria, qual seria o sentido dos personagens prestarem reverências e demonstrarem fé em Jesus Cristo se eles já estão condenados? O inferno é, por definição, o afastamento eterno de Deus. Não seria possível este tipo de ambiente de adoração e reverência no seriado. Bolaños jamais criaria uma história onde um médium é um mensageiro do céu para o inferno, uma vez que o catolicismo condena fortemente o espiritismo. Roberto já manifestou sua fé católica até mesmo acerca de assuntos políticos e morais (como a sua posição contrária ao aborto).

      13. Para finalizar, a questão dos 7 pecados pode ser facilmente respondida quando consideramos o fato de que Bolaños criou personagens humanos com uma clara caricatura de situações do cotidiano. Logo, é óbvio que as confusões e problemas que vemos em Chaves seriam tão presentes. Além disso, é bem claro que os personagens possuem muita aproximação com o público (isso pode ser percebido com maior clareza com o Seu Madruga), então é óbvio que Bolaños também iria utilizar comportamentos falhos que são comuns nos seres humanos justamente para que o público que assiste o seriado se sinta familiarizado com o comportamento dos personagens. Ao meu ver, não existe muita dificuldade de se entender isso. É muito mais racional supor que Bolaños utilizou todos esses comportamentos como maneira do público se sentir próximo dos personagens do que supor que ele inventou um mistério oculto que somente alguns conseguiriam desvendar. E o mais importante é que apesar de todas as confusões e brigas envolvendo os personagens, sempre existe um final feliz onde os personagens reconhecem suas falhas e de alguma maneira se perdoam e se reconciliam. Essa é a mensagem central do seriado.

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