quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A tradição na modernidade



Miró, Interior Holandês I (1928).

O mundo contemporâneo está marcado por uma ideia de valorização da modernidade, entendida, dentro de um pensamento viciado em “evolucionismo histórico”, como uma ruptura com o passado e um esquecimento dele. Ser moderno é buscar incessantemente, a qualquer custo, o novo. O antigo vira algo desprestigiado. Todo o universo de conhecimento que seria nossa herança é rotulado como velho, antiquado, ultrapassado.
Na verdade, essa fome pela novidade tem-se mostrado nociva. O problema não está no novo em si. Não se está defendendo uma postura retrógrada, reacionária, conservadora, que veja mudanças como prejudiciais. O fato grave é que a desvalorização do passado impede o amadurecimento de nossa sociedade. É importante o aproveitamento de nossa herança cultural. Trata-se de um conjunto de experiências que precisa ser absorvido e digerido para que se possibilite o desenvolvimento de nosso fator humano.
Mergulhado em tal impossibilidade, o homem e o mundo (que nada mais é do que projeção daquele) tornam-se vazios, sem sentido, sem identidade. Não se reflete, não se analisa, não se estuda o que vivemos e o que fazemos, pois isso é analisar o passado e o que importa é o agora. Herança, tradição, experiência são palavras que recebem toda uma carga semântica pejorativa.
O problema é que esse esvaziamento amputa o que nos faz humanos. Temos uma identidade, uma cultura, uma ética, coisas que nos são transmitidas e que serão transferidas. Mas se o que vale é o agora, que despreza o passado, de onde virá nossa identidade, personalidade, cultura, ética, já que tudo isso é memória? Como produzi-las, se tudo isso vem do passado?
A consequência drástica é um esvaziamento total. O mundo contemporâneo tem uma ética, uma cultura, uma identidade defeituosas. Em suma, uma humanidade defeituosa. Esse vazio torna-nos alienados. O “eu”, as relações subjetivas e afetivas se enfraquecem. Sobrevive-se uma valorização, um culto do objeto em si, a reificação. Tudo agora é objeto, é mercadoria. Até mesmo a cultura. Aliás, questiona-se se há de fato cultura ou se essa nada mais é do que somente mercadoria.
Nesse contexto, recorrer a uma velha simbologia medieval não é exagero. Nós nos assemelhamos ao dragão que guarda em sua caverna uma donzela com a qual ele não poderá fazer nada. Acumulamos sem utilidade alguma, pois o que “colecionamos”, sem passado, sem ser digerido e, portanto, sem futuro, já que não será transmitido, não nos torna humanos, não nos acrescenta nada. E, assim com o dragão, caminhamos para uma postura destrutiva – podemos destruir nossa donzela, quem irá resgatá-la e, no fogo escabroso de nossa alienação, até nós mesmos.
Essas não são observações que giram sobre um abstrato vago, impalpável. Elas se referem a comportamentos presentes em nosso cotidiano até mesmo escolar. Existem aqueles que pregam que o ensino de arte, principalmente literatura, deva se ocupar apenas com textos contemporâneos, ou pelo menos modernistas. Especial atenção deveria ser dada às manifestações mais recentes – cinema em lugar de romances, música pop em lugar de música erudita ou mesmo música popular brasileira. Por que colocar em sala de aula Auto da Barca do Inferno e Memórias Póstumas de Brás Cubas e não Harry Potter e Crepúsculo?
O quadro apresentado acima consegue paradoxalmente dar pistas sobre a importância da tradição. Trata-se de uma obra do Modernismo, Interior Holandês I (1928), de Miró (1893-1983). À primeira vista, parece um conjunto caótico de formas geométricas de traço simplificado, qualidade esta que se aplica também às suas cores, que se mostram básicas, dispensando o jogo de nuance e de luz e sombra. Enfim, um universo abstrato que elimina o sentido, já que tudo é aleatório.
Entretanto, um olhar mais atencioso conseguiria divisar elementos conhecidos no universo dessa pintura. Saltaria à vista, por exemplo, após o esforço de adaptação a essa nova forma de arte, um cachorro no canto inferior esquerdo do quadro. Captada essa personagem, nosso olhar começaria a perceber que a figura acima desse animal é algo próximo ao que entendemos como ser humano e que este estaria tocando um instrumento musical, provavelmente de corda. Estabelecidos esses parâmetros palpáveis, um mundo reconhecível estaria se materializando. No canto superior esquerdo se divisaria uma janela, aberta para o exterior, o que nos faria entender que essa obra retrata um interior – daí o seu título, que agora faz sentido.
Ainda assim, alcançado esse estágio de compreensão, Interior Holandês I estaria amputado de muito de sua personalidade. De fato, da maneira como foi analisado até aqui, o quadro se resume a um exercício pictórico, assim como boa parte da arte do Modernismo passaria a ser mero exibicionismo ilógico (algumas vezes o é mesmo). É o problema que os alunos têm, por exemplo, quando leem Sentimento do Mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade, ou Macunaíma (1928), de Mário de Andrade: entendem sem dificuldade as frases, mas não conseguem captar o seu sentido. O problema, muitas vezes, está no já mencionado vício de se desprezar a tradição.
A solução? O conhecimento da tradição artística. Quando ela é respeitada, e isso se manifesta não pelo simples fato de copiá-la ou venerá-la, mas eficazmente pelo fato de conhecê-la criticamente, boa parte das obras do Modernismo passa a ganhar riqueza de significado. No presente caso, basta ter em mente O Tocador de Alaúde (1661), de Hendrik Martenszoon Sorgh (1610?-1670) para que nossa leitura acabe se encorpando.


A observação dessa obra barroca faz-nos ter melhor conhecimento do que se exibe na composição modernista. Entendemos que Miró simplificou o quadro de Sorgh, ou que pelo menos o reduziu à sua essência, como alguém que se recorda de um sonho intenso e que se vai desvanecendo após o despertar. De fato, a arte, para os modernistas, não precisa ser uma cópia fotográfica da realidade, mas uma recriação de sua essência. É por causa disso que vemos que alguns elementos do quadro holandês que tocaram a sensibilidade do pintor espanhol foram destacados na obra deste. Assim, o cachorro, que nos observa, ganha destaque na obra do modernista, assim como o desgrenhado esfiapado do cabelo do músico, a brancura da mesa, o volume da coluna junto à janela. A mensagem que se tira? O novo, por mais moderno que seja, só consegue ganhar plenitude de sentido se não se perde de vista a tradição.
Percebe-se então que o entendimento de obras contemporâneas só se faz de maneira digna se se respeitar (não se está defendo a veneração cega) a tradição que as trouxe até nós. Até mesmo Harry Potter ganha mais sentido se se tem em mente às referências que nele existem a elementos da cultura clássica e medieval. Até mesmo Crepúsculo encorpa-se com o entendimento de que é uma saga herdeira (ainda que aguadamente) da tradição do Romantismo. Renegar isso é atrofia intelectual.

6 comentários:

  1. Concordo... Por isso sempre procuro analisar o máximo possível de uma obra, seja ela uma pintura, filme, música, livro e até mesmo um conjunto deles. Creio que tudo é válido, e assim a arte "se renova".

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    1. Que bom! Você está no caminho certo. Mas cuidado com o "tudo é válido". Pense assim - "tudo é válido, desde que haja lógica".

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  2. Muito bem postado, Laudemir.

    Como bem diz uma frase cujo autor eu desconheço, se em alguma coisa vemos mais longe que os nossos antepassados, é porque somos anões em ombros de gigantes.

    Mas, realmente nos dias de hoje essa importância da tradição não é bem compreendida. Cada geração que surja quer se acha o supra-sumo da humanidade e quer recriar toda a civilização à sua própria imagem e semelhança.

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    1. Concordo com você, André. É um erro se achar o suprassumo. Ou, se é pra se achar, que pelo menos entenda que isso se deve a uma herança cultural. E quanto à frase que você citou, eu não lembro a autoria dela. Sei que ela aparece no livro O Nome da Rosa, do Umberto Eco, o que indica que ela já fazia parte da tradição medieval.

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