domingo, 14 de abril de 2013

O Diabo Veste Prada e Sex and the City: As Artimanhas da Ideologia

Miranda Priestly (Meryl Streep) em O Diabo Veste Prada

No post passado, vimos que muitas vezes afirmamos ideias que cremos como verdadeiras, mas que no fundo não têm embasamento, pois são fruto do que se entende por ideologia. Hoje veremos a maneira curiosa como esse fenômeno se manifesta em dois filmes que obtiveram muito sucesso, apesar de apresentarem um conflito temático: nadam no que eles próprios criticam.
Em O Diabo Veste Prada (2006) acompanhamos a travessia profissional por que passa a talentosa jornalista Andy Sachs, recém-chegada a Nova Iorque. Seu grande desafio é sobreviver como simples assistente da editora-chefe da conceituada revista Runaway, Miranda Priestly. É uma tarefa árdua. Para começar, a jovem submerge num mundo completamente alheio ao seu. De formação refinadamente intelectual, destoa naquele universo da moda, das grifes, da ostentação, que é muitas vezes considerado superficial, vazio, banal. Mas vemos que há nele todo um mecanismo extremamente sério envolvendo investimento pesado em pesquisa e muito, muito dinheiro. Dentro desse contexto, a cena em que se discute a tonalidade de dois cintos – praticamente iguais – é antológica.
Entretanto, aqueles que têm uma capacidade de raciocínio mais evoluída ficam com um incômodo: seriamente, alguém pode ser avaliado por sua aparência? E o mais bizarro é que vemos a protagonista mergulhar nesse estranho cosmos, numa descida ao inferno que aparenta ser uma elevação, pois, conforme ela vai se vestindo mais de acordo com os padrões da alta costura, mais crédito vai ganhando na Runaway. No final, sai amadurecida, percebendo que o mais importante é a qualidade das relações humanas, que a duras penas ela consegue preservar. Ainda assim, parece que o grande público não consegue captar essa mensagem. Ficam até com a dúvida: será que Andy fez a coisa certa? Alguns, os mais críticos, veem certo realismo nas lições que são apresentadas do mundo do trabalho: sentimentos não contam; não espere elogios por seus esforços; vida pessoal e sucesso são incompatíveis. Daí saltam mais algumas cenas antológicas em que se veem pedidos destituídos de sentido (originais do último Harry Potter, voo em meio a uma tempestade que fechou aeroportos). Esbarra-se então num ingrediente valioso da sátira menipeia: o absurdo que funciona mais como crítica ao que é considerado normal.

Fotograma de Sex and the City.

Outro filme que vai pelo mesmo caminho é Sex and the City (2008). Nele, Carrie e suas amigas levam para a telona os temas da consagrada série televisiva, sempre ligados à badaladíssima Nova Iorque. Continuamos testemunhando o fetiche pela ostentação de consumo e do status de VIP. Um mundo em que imóveis são caríssimos, em que a mudança de um prefixo de celular é motivo para crise de identidade, em que um casamento precisa ser ensaiado como se fosse uma megaprodução cinematográfica, em que um vestido de noiva precisa ser reportagem de revista, em que um closet para sapatos é maior do que muitos imóveis que conhecemos. Um exemplo máximo é a idolatria por uma bolsa Louis Vuitton, item obrigatório para a aceitação social. É por isso que uma das personagens descobre um esquema fantástico: aluga um exemplar desse artefato. Rousseau encontraria nesse exemplo um argumento para sua tese de que o mundo civilizado é desnecessariamente complicado...
Mas há aqui um ingrediente novo: a protagonista está para se casar com o riquíssimo (não podia deixar de ser...) Mr. Big. A crise começa quando ele, de última hora, percebe o jogo maluco em que está entrando – casamento não é um espetáculo para os outros, mas uma consagração e um compromisso entre duas almas que se identificam. Mas quem enxerga isso nesse universo consumista? Abandonada, Carrie entra em uma crise medonha, mas conta com o apoio de suas amigas. Mais uma vez o tema da importância das relações humanas, que são as que realmente valem. Bela é a cena de encerramento, em que todas elas, refeitas, passeiam pela noite da grande cidade, passando ao largo da fila de mais um badalado clube VIP. Entretanto, será que o grande público captou a mensagem? Basta lembrar que o pôster da continuação desse filme, de 2010, apresenta as mesmas personagens no glamour de Abu Dhabi.
Enfim, com esses dois exemplos, entre tantos que podem ser citados, notam-se as astúcias da ideologia, que, tão segura de si, consegue veicular ideais que poderiam (mas não conseguem) comprometê-la. É como se o grande público já estivesse entorpecido. Como diria Zé Ramalho: “vida de gado, povo marcado e povo feliz”.

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domingo, 7 de abril de 2013

Feliciano e a maldição de Cam: a ideologia como distorção da realidade

A Maldição de Cam, quadro do russo Ivan Ksenophontov (séc. XIX) 

Nos últimos dias virou moda satanizar o deputado Marco Feliciano por causa de suas posturas que atentam contra os Direitos Humanos, o que tornaria incoerente sua nomeação para a presidência de uma comissão que cuida justamente dessa questão. O problema é que muitos dos que o atacam, em nome do respeito à alteridade, acabam assumindo a mesma tática do inimigo, buscando vencer uma disputa no grito, na provocação, na ofensa. E toda essa campanha, como sabiamente vaticinou Silas Malafaia, só acabará trazendo mais votos para a causa teocrática que os dois parecem defender, já que os vociferantes esquecem que, se os dois religiosos não os representam no Congresso, acabam sendo a voz de uma imensa parcela silenciosa da população. Em toda essa balbúrdia, a mais amaldiçoada é a verdade, que acabou perdendo espaço. Basta lembrar que o artigo de Hélio Schwartsman (“A Maldição de Cam”) publicado à página A2 da Folha de S. Paulo de 02 de abril de 2013 expôs argumentos lógicos suficientes para pôr por terra o pensamento dos dois pastores, mas não provocou repercussão, muito menos encerrou a discussão. Pior: com certeza, um homem tão cheio de razão e lógica não seria eleito, ou pelo menos não teria o mesmo número de apoiadores, escandalosos ou calados, do que os já citados donos de uma visão obscurantista do mundo.
Entretanto, há que se tirar algo de proveitoso de toda essa confusão. Deve-se usar o que veio à tona para notar um ponto importante na leitura e interpretação de textos (e, por extensão, do mundo): a ideologia, entendida aqui como conjunto de ideias que servem para mascarar a realidade e sustentar ou justificar um sistema social. Para percebê-la, basta tentar entender de onde vem uma das teses apregoadas por Feliciano, a de que os negros são amaldiçoados por Deus. Alega-se que está em Gênesis 9, 20-27. Mas o que se encontra lá é que Noé, bêbado, acabou ficando nu e seu filho Cam, em vez de fazer com que seu pai ficasse em trajes decentes, saiu alardeando para os outros irmãos (Sem e Jafé) a situação vexatória. Seu progenitor, enraivecido, amaldiçoou o imprudente e todos os seus descendentes, condenando-os a serem escravos da descendência de Sem e Jafé. Enfim, quem tornou o futuro indigno de toda uma população foi Noé e não Deus. Além disso, só se diz que um povo, o de Canaã, filho de Cam, é que merece ser escravo dos outros dois. Não se fala que um é o negro e que os outros dois são arianos (estes nem existiam naquela região!). Mas o triste é que o laconismo típico da Bíblia suscitou inúmeras interpretações sobre a causa do mal de Cam. Zoofilia? Incesto? Homossexualismo?
Entretanto, o importante é discutir que esse pequeno trecho das escrituras sagradas acabou servindo como justificativa para uma instituição muito lucrativa: a escravidão do negro. O primeiro grupo a se utilizar dessa desculpa foi a Igreja Católica. E não há como negar que ela em algum momento apoiou essa atrocidade. Basta recordar que Padre Antônio Vieira (1608-1697), por exemplo, dizia que o cativeiro a que o negro deveria passar servia para a salvação de sua alma. Outra agremiação que soube se utilizar desse subterfúgio foram os proprietários rurais estadunidenses, que assim conseguiam apaziguar sua consciência religiosa. E parece que vem daí boa parte da fonte que inspirou Feliciano e seu séquito. Mas o exame atento de todo esse processo de pensamento faz-nos perceber que é da natureza da ideologia dar uma aparência de natural ao que na verdade é criação do homem, o que, logo, muitas vezes não corresponde à verdade.
A ideologia, portanto, atrapalha a análise de texto (e consequentemente a compreensão de mundo), tornando-nos vítimas da falta de visão. Entretanto, toda essa cegueira é eliminada não pela ignorância a esse esquema ludibrioso, mas justamente pela observação atenta a ele. Vê-lo é colocar-se em posição privilegiada, é enxergar que aquilo que é apresentado como causa do que está aí, na verdade é justamente consequência.  É, pois, uma maneira de esconder a realidade. Semelhante ao esforço pseudocientífico dos norte-americanos de justificar o regime de cativeiro pelo fato de que os africanos seriam de uma condição racial inferior. Sabe-se que o conceito de raça foi forjado apenas para manter o regime servil. Em outras palavras, é outra ideologia.
O curioso é notar que essas ideias vieram à tona nos Estados Unidos no momento em que essa nação sofria uma enorme pressão interna e externa contra a escravidão. Trata-se, então, de um gesto desesperado de dar sobrevida ao que já está caduco e moribundo. O mesmo ocorre atualmente nos ataques homofóbicos na avenida Paulista. São gestos de quem já está perdendo terreno. Em resumo, são atos de quem já perdeu a razão. Nesse contexto, Feliciano, ao mostrar uma leitura muito pobre da Bíblia, ao manipular tão incompetentemente seu material de trabalho, acaba se tornando um inocente útil ao dar vazão a uma interpretação sombria das relações sociais. Ou mesmo um inocente inútil, pois é porta-voz de um conjunto de ideias que estão sendo atropeladas no século XXI.
Fica então a dúvida: como vencer as armadilhas da ideologia? Como impedir que, além de Cam, a verdade seja execrada? O primeiro passo é ter consciência crítica. É não sair reproduzindo o que se ouve ou se lê por aí. É não aceitar passivamente verdades tidas como absolutas. É questionar, duvidar de maneira construtiva, verificar fontes. É, enfim, assumir uma postura ativa e mais racional diante do mundo. O que está difícil.



domingo, 31 de março de 2013

Texto literário: o feliz casamento entre forma e conteúdo


No post de 05 de agosto de 2012, utilizou-se a canção “Construção”, de Chico Buarque, para se falar da especificidade do texto literário. Viu-se que, como toda manifestação artística, sua forma expressa também conteúdo. Assim, por exemplo, no trecho “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”, a repetição do som /tra/ sugere justamente o ruído provocado por algo interrompendo o fluxo. Vejamos mais alguns exemplos em que ocorre esse feliz casamento.
Acima temos “O Papa é Pop”, de 1990, dos Engenheiros do Hawaii. Sua mensagem é bastante significativa: “qualquer coisa que se mova é um alvo”. Há aqui uma referência ao carismático papa João Paulo II, que foi vítima de um atentado em 1981. O fato de ser popular (pop) possibilitou que o religioso sofresse um ataque. Criticam-se então os efeitos nocivos da mídia que, na sua sanha, acaba incessantemente destruindo seu objeto de trabalho. E essa ideia está justamente no refrão da composição, com a repetição exaustiva do /p/ (“o papa é pop [...] o pop não poupa ninguém”). Sugere-se aqui uma infantilização da sociedade, já que se remete à fase em que a criança, encantada com sons, passa ludicamente a brincar com eles. Sugere-se também, pela reiteração dos fonemas em um quase trava-língua, o desgaste e até o esvaziamento que os meios de comunicação provocam nos acontecimentos, de tanto martelá-los. E o mais incrível, e irônico, é que à época em que essa música fez sucesso, era justamente esse o trecho mais cantado e repetido, muitas vezes sem se entender o seu significado. Quem nasceu para criticar o sistema acabou sendo vítima dele.
Um outro exemplo da união entre forma e conteúdo é “Diamonds”, de Rihanna:


Nessa composição, é celebrada a felicidade de se encontrar o amor. Tal feito parece fazer o eu-lírico alçar-se a um nível superior, chamado de êxtase. Esta última palavra até faz lembrar o ecstasy, a famosa pílula do amor. Talvez por isso a referência ao consumo de droga no controverso clipe da música em questão. Ou a citação a “diamonds in the sky”, imagem alucinógena que parece remontar ao psicodélico “Lucy in the Sky with Diamonds” (1967), dos Beatles. O amor é, portanto, visto como uma droga, pois nos coloca em um plano elevado. Mas o que interessa analisar nesse momento é que esse içamento é sugerido pelo ditongo oral aberto /ai/, intensamente usado na composição: “shine”, “bright”, “like”, “diamond", “find”, “light”, “I”, “sky”, “alive”, “right”, “sight”, “life”, “inside”, “eyes”, “tonight”, “rise”, “moonshine”, “die”. Trata-se de uma curiosa sinestesia, já que o brilho do diamante, fenômeno visual, representa um fenômeno psicológico, a iluminação provocada pelo amor, e é representado por um ditongo, fenômeno auditivo.
Outro exemplo muito válido é “Chuva, Suor e Cerveja” (1977), de Caetano Veloso:


O andamento dessa composição é o do frevo, ritmo característico do carnaval pernambucano. Bastante coerente com a história que é narrada. Começa-se com um apelo para que o receptor da mensagem não se perca em meio ao bulício. Trata-se de uma mensagem ambígua, pois também pode parecer um apelo amoroso: “não se perca de mim”, “não desapareça”, “não saia do meu lado”. Mas o importante é notar como a repetição de fricativas sugere justamente o som dos pés se arrastando no chão molhado, fato mencionado no texto: “E vamos embora ladeira abaixo / acho que a chuva ajuda a gente a se ver / venha, veja, deixa, beija / seja o que Deus quiser”. E o mais notável é que nesse clima dionisíaco de carnaval, em que é tão fácil perder a cabeça (a razão, elemento oposto ao universo de Dionísio), o embolamento dos verbos em “venha, veja, deixa, beija” sugere o que ocorre nas duas últimas estrofes, com o clímax na fusão entre chuva, suor (da dança) e cerveja, uma oposição bem humorada do mote “sangue, suor e lágrimas”, criado por Churchill para responder como iria vencer a Alemanha de Hitler:

A gente se embala
se embora, se embola
Só para na porta da igreja

A gente se olha
Se beija, se molha
De chuva, suor e cerveja

Portanto, os três exemplos apresentados neste post servem para mostrar a especificidade do texto literário. Seu sentido não está apenas na ligação das ideias que o compõem, mas também na maneira como é construído. Enfim, e nunca é demais repetir, no feliz casamento entre forma e conteúdo.
 


domingo, 24 de março de 2013

A importância do viés para a análise de textos


Sabemos que um texto é feito dos elementos que o constituem e que, interligados, estabelecem o seu sentido. Mas algumas vezes precisamos também ter noção de quem o produz para dominarmos seu conteúdo. Em outras palavras, precisamos entender o seu viés, ou seja, a tendência que o seu autor lhe dá. É o que vemos na imagem acima, que circulou nas redes sociais há poucos dias.
À esquerda, vemos a capa de uma edição de Veja, revista que é acusada de direitista, conservadora e até defensora de posturas antiecológicas, em nome de um neoliberalismo disfarçado de desenvolvimentismo. Esse perfil, se real, faria com entendêssemos como bastante lógica a imagem que apresenta ao seu leitor. Vemos um Hugo Chávez com uma expressão carrancuda, ameaçadora, diabólica. Seu olhar erguido e desligado parece o de alguém que trama algo maquiavélico. Reforça esse quadro o rosto ter um lado claro e outro oculto, dando a entender que o que se mostra não é tudo, havendo algo escuso. Tudo isso é coerente com o título: “Herança sombria”. Nada mais natural para um órgão defensor de interesses conservadores. Segundo tal, o chavismo seria visto como atualização do caudilhismo, do populismo, do lado mais nefasto do socialismo, dono de autocracia, autoritarismo, atraso e posturas antidemocráticas.
À direita, vemos a capa de uma edição de Carta Capital. É válido lembrar que essa publicação constantemente é apontada como esquerdista ou partidária das políticas do PT. É por isso que é também acusada de ter suas páginas recheadas de propagandas do Governo Federal. Tal caráter tornaria coerente a imagem que aqui exibe, a começar pela expressão altiva de Chávez. Seu rosto já não é mais maligno, mas bem disposto (talvez bem humorado) e até nobre, olhando para o céu como aqueles santos que miram o lugar a que estão destinados. Além disso, o processo de edição a que foi submetida a imagem, que curiosamente recebeu as cores da bandeira da Venezuela, aproxima-a da pop art, principalmente a de Andy Warhol (1928-1987). O ex-presidente, portanto, está alçado a ícone popular. E a manchete, “A Morte de um líder”, neutro, se não diz nada de positivo, pelo menos não diz nada de negativo.
Não interessa saber qual das revistas está com a verdade. Mais importante é notar que o confronto entre as duas capas, que circularam na mesma época e abordaram o mesmo assunto, ensina duas coisas. A primeira é que a completa objetividade, principalmente a jornalística, é um mito. A segunda é uma inferência da primeira: todo texto é marcado pelo ponto de vista, pelo universo de valores de quem o produz, enfim, pelo viés. Assim, poderia ser acrescentado ao título “Você é o que consome” a mensagem “Você é o que produz”.
Ter consciência dessa natureza ajuda a entender, por exemplo, a crítica que D. Ermelinda, personagem de Til (1872), faz a pessoas como Jão Fera, que não mostram gratidão aos favores que receberam dos ricos. Basta lembrar que esse texto foi escrito por José de Alencar, um conservador que não enxergava que estava configurado aí um sistema que humilhava os homens livres pobres. Saber dessa característica dos textos ajuda também a entender por que os trombadinhas de Capitães da Areia (1937) são tratados como heróis. É só ter em mente que o autor desse texto, Jorge Amado, era, na época, membro do Partido Comunista, agremiação política que possuía membros que defendiam que toda propriedade seria um roubo – então, apropriar-se dos bens dos ricos não seria um crime. Mas o exemplo mais interessante é o de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). Para compreender a volubilidade de seu narrador, precisamos levar em consideração que se trata de um membro da elite brasileira, classe acostumada a praticar desmandos. Entretanto, o mais interessante é saber que o protagonista assume posturas radicalmente opostas às de Machado de Assis, autor do romance. Por aí já se consegue notar a qualidade desse escritor, que se mostra um excelente manipulador do foco narrativo: não foi necessário fazer crítica aberta aos grandes proprietários – bastou apenas dar-lhes voz.
Enfim, todos esses exemplos são provas suficientes da importância de se observar o viés de um texto para que se tenha a sua perfeita compreensão.


domingo, 10 de março de 2013

A propósito do tsunami no Japão - lições de análise de textos

Em vários momentos foi dito aqui nO Magriço Cibernético, e mais vezes terá de ser dito (pois se trata de um conceito importantíssimo), que o sentido de um texto é garantido pela ligação entre os elementos que o compõem. É também vital lembrar que o seu significado também é garantido pelo contexto em que está inserido, como foi visto no post de 08 de março de 2012. Nota-se, portanto, que uma leitura e uma redação eficientes só são possíveis graças à atenção que se dá a elementos intra e extratextuais. Assim, evitam-se problemas como os demonstrados nos posts de 01 de março de 2012, 21 e 24 de outubro de 2012. É também essencial observar a forma em que a mensagem se apresenta, do contrário também ocorrerão erros de interpretação, como identificado no post de 30 de setembro de 2012, em que se viu que a repetição de ações em Chaves não é forma de representação do inferno, mas algo comum a um seriado humorístico. Tudo isso deveria ter sido levado em conta para evitar o escândalo que se levantou contra a charge acima, de João Montanaro, publicada na Folha de S. Paulo em 12 de março de 2011.
Em 11 de março daquele ano o Japão foi vítima de um tsunami, catástrofe que provocou comoção mundial. No dia seguinte, o jovem chargista, então com 14 anos, apresentou no maior jornal do país sua visão sobre essa grande tragédia. A grita foi intensa, pois muitos leitores viram como falta de respeito o humor que estaria sendo feito em cima da imensa dor dos outros. A febre do politicamente correto tinha feito mais uma vítima.
Na verdade, a preocupação com o respeito alheio, que inspirou o fenômeno PC, é bastante louvável, pois tem como intenção evitar manifestações negativas muitas vezes baseadas em mero preconceito. Entretanto, ela parece estar sendo acometida do que deveria combater, que é o próprio preconceito, que se alimenta de ignorância. Em primeiro lugar, onde está o humor na charge em questão? E quem falou que charge necessariamente tem de ter conteúdo humorístico? Nota-se, portanto, o que já foi abordado no post de 11 de março de 2012: vivemos tempos sombrios, em que as trevas estão dando voz e poder a quem não tem razão. Portanto, aclaremos a situação.
O termo charge vem do francês e significa “carga”. Possui a ideia de algo que recebeu uma carga, um peso. Em outras palavras, é um desenho carregado, ou seja, em que se manifesta um exagero. De fato, muitas vezes a hipérbole pode produzir um efeito engraçado, o que se tornou bastante comum no tipo de publicação em análise. Entretanto, basta estudar a poesia para perceber que a sobrecarga linguística também pode expressar uma comoção fortíssima, o que é coerente com a presente obra de Montanaro.
Quando se tem noção de todos esses elementos, torna-se espantoso como um adolescente tenha dado um olé cultural em muito adulto que lhe atirou pedra. E para piorar esse contraste, basta lembrar que a fonte de inspiração desse jovem, já indicada no título de sua obra, foi uma xilogravura japonesa do século XIX, de autoria de Katsushika Hokusai (1760?-1849), japresentada a seguir:


O confronto entre essas duas ilustrações possibilita perceber uma valorização da força do povo japonês, capaz de enfrentar inúmeros obstáculos da Natureza e vencê-los. Basta lembrar que um arquipélago tão pequeno, pobre em recursos minerais, é uma das maiores economias do planeta. Ou notar que dois anos depois da tragédia do tsunami, que trouxe até temerosas consequências nucleares, essa nação está praticamente pujante e refeita. Ou ainda – e talvez principalmente – a consciência da pequenez do homem diante das condições em que vive, como dizia Camões em Os Lusíadas (1572):

No mar tanta tormenta e tanto dano
Tantas vezes a morte apercebida;
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade aborrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida
Que não se arme e indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Enfim, muita coisa pode ser inferida, menos uma preocupação em tirar graça do padecimento alheio. Quem foi capaz de enxergar isso, ignorou regras básicas de interpretação de texto, como as arroladas no primeiro parágrafo deste post.

domingo, 3 de março de 2013

Amor I Love You - O Risco das Citações



Reiteradas vezes foi dito nO Magriço Cibernético que um texto é constituído não apenas pelo amontoado de palavras e frases, mas pela ligação que elas estabelecem entre si. No entanto, é também importante, para uma adequada compreensão da mensagem a ser transmitida, prestar atenção ao contexto em que o material analisado está inserido, do contrário, efeitos curiosos (algumas vezes nada positivos) serão obtidos. A canção “Amor I Love You” (2000), de Marisa Monte e Carlinhos Brown, é um bom exemplo disso.
A composição começa com um pedido de algo que parece antiquado: a confissão do amor (“Deixa eu dizer que te amo / Deixa eu pensar em você”). Quantas vezes esse tipo de demonstração não foi alvo de no mínimo um risinho condescendente? É como se a pessoa dominada por tal sentimento perdesse um pouco do respeito e seriedade (Ora, direis, conversar com paredes? Certo perdeste o senso – para parodiar Bilac), talvez por investir no que não tem muito futuro, por entregar-se (nas palavras de Camões) àquele “engano da alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito”. A culpa desse descrédito é o desgaste que essa emoção sofreu, tantas vezes apresentada em músicas, romances, filmes, novelas? Esse esgarçamento é tão nítido que pode ser notado, por exemplo, na maneira como Marisa Monte canta o refrão: em vez “ai lâviu” (ou algo próximo disso), como o faz quem quer se assemelhar aos falantes nativos, é “ai loviú”, tão abrasileirado e popularizado. E não é à toa que essa frase é enunciada duas dúzias de vezes. Ademais, tal deterioração se soma ao backing vocal, principalmente no refrão, que assume um tempero próximo do brega.

Marisa Monte e Carlinhos Brown

Todavia, o importante para esse post é notar um ponto interessante dessa composição. Há nela a citação de um trecho de O Primo Basílio (1878), do romancista realista português Eça de Queirós. Ei-lo:

"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"

O sujeito de “tinha suspirado” é Luísa, protagonista do livro. Trata-se do momento em que ela recebe a primeira carta de amor de seu primo, Basílio. Eça mostra maestria na manipulação da linguagem, construindo trechos de extrema beleza, como aquele em que se faz menção ao “corpo ressequido que se estira num banho tépido”, saborosa imagem do amor fazendo-nos entrar “numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações”. É gostoso ler e reler esses trechos, que parecem reforçar a importância do apaixonado confessar seu estado de espírito, que torna sua existência dourada. Assim, a ligação entre canção e citação é encantadora.

Eça de Queirós, escritor famoso por sua ironia agressiva.

Ou não. Quando se lembra que essa carta foi escrita por um aventureiro, que engana a prima porque quer apenas um relacionamento sem compromisso, pois, segundo ele, fazer sexo com ela é mais higiênico do que com uma prostituta, a imagem iluminada da canção rui. E se descobre algo muito importante – todo texto depende de seu contexto. Retirá-lo de seu ambiente é cometer o crime de distorção. Assim, o trecho de Eça de Queirós, fora do seu hábitat, revela elementos falsamente positivos. Não há deslumbramento, mas ironia.   
Caberia então perguntar se Carlinhos Brown e Marisa Monte tinham noção de que a citação contradiz a canção? Ou eles fizeram um interessante exercício dadaísta de manipulação de ready-made segundo o qual o objeto, deslocado de sua origem, ganha nova significação? Ou os compositores falharam ao fazerem uma associação ineficiente de elementos díspares? Enfim, ironia, poeticidade ou inépcia? Mas há um agravante: qualquer que seja a resposta, o grande público não percebeu nada, tal o sucesso que por muito tempo essa música obteve.
  

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Considerações básicas sobre texto



Conforme já discutido nO Magriço Cibernético (posts de 8 de fevereiro de 2012 e 26 de fevereiro de 2012), um texto é feito pela ligação dos elementos que o compõem. João Montanaro, cartunista de 16 anos que trabalha para a Folha de S. Paulo, mostrou pleno conhecimento dessa regra ao fazer a charge acima, publicada na página 02 do referido jornal em 12 de janeiro deste ano.
 A pequena (não no sentido de qualidade) obra de Montanaro coloca lado a lado um datilógrafo com feições senis, um disco de vinil (LP), um entregador de leite, uma carta e o político José Serra. Seu sentido se dá graças ao nosso costume de sempre buscar relações entre elementos, pois não admitimos com facilidade o caráter aleatório da vida. Assim, imediatamente vemos que o que há em comum entre os itens exibidos é o fato de estarem antiquados: com o advento dos computadores, máquinas de datilografia deixaram de ser usadas e até mesmo fabricadas; com a popularização do CD e principalmente do mp3, o bolachão praticamente sumiu do mercado; com a modernização da produção e distribuição do leite, a figura do leiteiro, que entregava esse produto em nossa porta, sumiu; com o surgimento de novas formas de comunicação, principalmente as eletrônicas (sms, chat, Skype,msn), a carta entrou em desuso. O humor está no elemento que fecha a enumeração, pois, como toda piada, encerra de forma inusitada a fluência de elementos. Acaba-se entendendo, então, que José Serra, após ser derrotado em duas eleições e ter atingido uma alta taxa de rejeição, é um político ultrapassado, que já não tem mais espaço no mundo atual.
Esse mesmo procedimento interpretativo pode ser usado na canção a seguir, “Nome aos Bois”, lançada em 1988 no álbum Jesus não tem dentes no país dos banguelas, dos Titãs:


A letra dessa composição é bastante interessante, pois não apresenta frases ou orações, apenas uma sequência de nomes de pessoas. Ei-la:

Garrastazu
Stalin
Erasmo Dias
Franco
Lindomar Castilho
Nixon
Delfim
Ronaldo Bôscoli
Baby Doc
Papa Doc
Mengele
Doca Street
Rockfeller
Afanásio
Dulcídio Wanderley Bosquila
Pinochet
Gil Gomes
Reverendo Moon
Jim Jones
General Custer
Flávio Cavalcante
Adolf Hitler
Borba Gato
Newton Cruz
Sérgio Dourado
Idi Amin
Plínio Correia de Oliveira
Plínio Salgado
Mussolini
Truman
Khomeini
Reagan
Chapman
Fleury

Mais uma vez surge a necessidade de estabelecer relações para buscar um sentido ao que nos é apresentado. Assim, quando vemos que alguns dos invocados são personalidades negativas, como os arquifamosos Hitler e Mussolini, Plínio Correia de Oliveira (fundador da TFP), Erasmo Dias (que invadiu a PUC-SP em 1972 para impedir a refundação da UNE), Plínio Salgado (líder da Ação Integralista Brasileira), Garrastazu (general que governou o Brasil no ápice da Ditadura Militar), os sanguinários General Custer, Idi Amin, Pinochet, Baby Doc, Papa Doc, os uxoricidas (assassinos da própria esposa) Lindomar Castilho e Doca Street, Chapman (homicida de John Lennon), Jim Jones (religioso que comandou um suicídio em massa em 1978), Flávio Cavalcante (que humilhava artistas que se apresentavam em seu programa, chegando a quebrar ao vivo os LP’s deles), automaticamente outros acabam ganhando conotação negativa, caindo para o eixo do mal, como Delfim [Neto] (político), Ronaldo Bôscoli (produtor musical), Gil Gomes (apresentador de programas policialescos), Afanásio (colega de trabalho de Gil Gomes e defensor da pena de morte), Reverendo Moon (fundador da Igreja da Unificação), Dulcídio Wanderley Bosquilha (ex-árbitro de futebol) e até Sérgio Dourado, que parece que teve como único crime iniciar nos anos de 1970 a febre de especulação imobiliária no Rio de Janeiro, ajudando a alterar radicalmente a paisagem urbana. Dessa forma,quando se soma a essa enumeração o fato de ela ter como título uma expressão usada quando queremos que certos nomes, que por algum motivo estavam omitidos, sejam enunciados claramente, podemos entender que a canção dos Titãs funciona como um exorcismo, ou seja, uma oração para esconjurar espíritos ruins. Não é à toa que no final o vocalista emite sons que lembram alguém passando mal, ou por estar expulsando entidades pesadas ou por estar vomitando, o que no fim dá no mesmo.
 Assim, com esses dois exemplos fica reforçada a importante ideia de que o que dá vida a um texto é a ligação que se estabelece entre seus elementos constitutivos. Falaremos mais sobre isso nos próximos posts