domingo, 3 de março de 2013

Amor I Love You - O Risco das Citações



Reiteradas vezes foi dito nO Magriço Cibernético que um texto é constituído não apenas pelo amontoado de palavras e frases, mas pela ligação que elas estabelecem entre si. No entanto, é também importante, para uma adequada compreensão da mensagem a ser transmitida, prestar atenção ao contexto em que o material analisado está inserido, do contrário, efeitos curiosos (algumas vezes nada positivos) serão obtidos. A canção “Amor I Love You” (2000), de Marisa Monte e Carlinhos Brown, é um bom exemplo disso.
A composição começa com um pedido de algo que parece antiquado: a confissão do amor (“Deixa eu dizer que te amo / Deixa eu pensar em você”). Quantas vezes esse tipo de demonstração não foi alvo de no mínimo um risinho condescendente? É como se a pessoa dominada por tal sentimento perdesse um pouco do respeito e seriedade (Ora, direis, conversar com paredes? Certo perdeste o senso – para parodiar Bilac), talvez por investir no que não tem muito futuro, por entregar-se (nas palavras de Camões) àquele “engano da alma ledo e cego / que a Fortuna não deixa durar muito”. A culpa desse descrédito é o desgaste que essa emoção sofreu, tantas vezes apresentada em músicas, romances, filmes, novelas? Esse esgarçamento é tão nítido que pode ser notado, por exemplo, na maneira como Marisa Monte canta o refrão: em vez “ai lâviu” (ou algo próximo disso), como o faz quem quer se assemelhar aos falantes nativos, é “ai loviú”, tão abrasileirado e popularizado. E não é à toa que essa frase é enunciada duas dúzias de vezes. Ademais, tal deterioração se soma ao backing vocal, principalmente no refrão, que assume um tempero próximo do brega.

Marisa Monte e Carlinhos Brown

Todavia, o importante para esse post é notar um ponto interessante dessa composição. Há nela a citação de um trecho de O Primo Basílio (1878), do romancista realista português Eça de Queirós. Ei-lo:

"... tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saía delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações!"

O sujeito de “tinha suspirado” é Luísa, protagonista do livro. Trata-se do momento em que ela recebe a primeira carta de amor de seu primo, Basílio. Eça mostra maestria na manipulação da linguagem, construindo trechos de extrema beleza, como aquele em que se faz menção ao “corpo ressequido que se estira num banho tépido”, saborosa imagem do amor fazendo-nos entrar “numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo condizia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações”. É gostoso ler e reler esses trechos, que parecem reforçar a importância do apaixonado confessar seu estado de espírito, que torna sua existência dourada. Assim, a ligação entre canção e citação é encantadora.

Eça de Queirós, escritor famoso por sua ironia agressiva.

Ou não. Quando se lembra que essa carta foi escrita por um aventureiro, que engana a prima porque quer apenas um relacionamento sem compromisso, pois, segundo ele, fazer sexo com ela é mais higiênico do que com uma prostituta, a imagem iluminada da canção rui. E se descobre algo muito importante – todo texto depende de seu contexto. Retirá-lo de seu ambiente é cometer o crime de distorção. Assim, o trecho de Eça de Queirós, fora do seu hábitat, revela elementos falsamente positivos. Não há deslumbramento, mas ironia.   
Caberia então perguntar se Carlinhos Brown e Marisa Monte tinham noção de que a citação contradiz a canção? Ou eles fizeram um interessante exercício dadaísta de manipulação de ready-made segundo o qual o objeto, deslocado de sua origem, ganha nova significação? Ou os compositores falharam ao fazerem uma associação ineficiente de elementos díspares? Enfim, ironia, poeticidade ou inépcia? Mas há um agravante: qualquer que seja a resposta, o grande público não percebeu nada, tal o sucesso que por muito tempo essa música obteve.
  

5 comentários:

  1. Incrıvel lau
    Nem eu ao menos sabia dessa citacao do eca , seven ser porque eu era menor....
    Parabens otimo texto
    Sacha

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  2. Ótimo!
    Bateu aquela saudade das tuas aulas! :)

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  3. Ótimo texto Laudumbledore rsrsrs...
    Saudades das suas aulas!

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  4. Então, o texto foi usado pelos autores da música para expressar que não importa a verdade do sentimento mas sim o amor pelo sentimento de estar amando, o foco não é o outro, o foco é estar amando o sentimento de amar. Neste contexto "amor i love you" está pra cazuza com sua "mentiras sinceras me interessam" ...Marisa e Carlinhos apenas usaram um trecho incrivelmente perfeito da literatura brasileira para dizer que o sentimento de estar apaixonado se sobrepõe à real possibilidade desse amor! Amor, I love you!

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  5. Tata Chiariotti, só uma ressalva, o romance de Eça de Queirós, o primo Basilio, é realista português e não brasileiro.

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