A FUVEST 2017 incluiu Claro Enigma, de Carlos Drummond de Andrade, em sua lista de livros
de literatura. É uma escolha que de certa forma surpreende, pois a obra
apresenta elementos que não costumam fazer parte do repertório cultural ou
mesmo da experiência de vida do público recém-egresso do ensino médio. Tal
dissociação entre livro e leitor pode gerar dificuldades na compreensão dos
textos que compõem o livro.
Estamos acostumados a ver nos vestibulares
textos de Drummond com a iconoclastia um tanto narcisista e juvenil de Alguma Poesia (1930), em que se destaca
o já mitológico “No Meio do Caminho”. É inegável a importância da coragem do
poeta de fazer parte de um grupo que buscou renovar as nossas letras. Ainda
assim, a feição poética que ultimamente vinha sendo bastante destacada nos
vestibulares era a de Sentimento do Mundo
(1940) e A Rosa do Povo (1945),
em que o autor inclinara-se para a esquerda.
De fato, é bastante compreensível a
guinada que a literatura mundial dera em direção ao socialismo. A humanidade
estava sentindo-se massacrada pela crise de 1929, que gerou consequências pela
década seguinte. Era também preocupante o Entre Guerras, que indicava um
conflito mal resolvido e que por fim acabaria por culminar na Segunda Guerra
Mundial. Além disso, mostrara-se agravante a ascensão de regimes totalitaristas
como o nazismo e o fascismo. Tornara-se plausível, portanto, em um quadro tão
conturbado, a escolha feita por alguns intelectuais, e neles se inclui
Drummond, pelas doutrinas políticas de linha marxista.
No entanto, Claro Enigma é de época posterior ao contexto difícil dos anos de 1940.
Publicado em 1951, encontrava um quadro de redemocratização e reconstrução. A
guerra já havia acabado. Os tão temidos totalitarismos tinham sido derrotados.
Ainda assim, o que se percebe na obra é um clima de desencanto, por sinal
explicável. O mundo via-se sufocado pelo clima da Guerra Fria e a ameaça de uma
extinção apocalíptica nuclear tornava-se cada vez mais iminente. A derrota sofrida
pelo fascismo e nazismo não trouxera justiça social – o capitalismo continuava opressivo.
E, talvez o mais frustrante para Drummond, seu namoro com o socialismo acabara.
O poeta decepcionara-se ao ver que essa doutrina estava tomando um caminho
errado ao se mostrar como mais uma forma de totalitarismo. O escritor, que
ainda se declarava contra desigualdades, agora via como ingênua a ideia de que
a mudança de um sistema econômico seria a chave para transformar o mundo em um
paraíso que ignoraria a complexidade do ser humano.
Torna-se claro – não para todos – que
Drummond havia amadurecido. Cansara-se do lado público, político, mas não desprezara
as preocupações sociais. Passara a elevar-se para questões existenciais, o que
alguns na época – os que padeciam da miopia da patrulha da obsessão ideológica
– interpretaram como alienação. Seu espírito combativo fora substituído por uma
postura resignada, de aceitação das limitações inerentes à condição humana. É o
que se vê no vídeo acima, em que Marília Pêra declama “Amar”, um dos poemas que
integram Claro Enigma.
Note-se o uso, já a partir do título, do
infinitivo. Essa forma retira do verbo marcas temporais, do “tempo presente”,
“da vida presente”, “dos homens presentes”, como pregava o mesmo poeta em sua
fase combativa em “Mãos Dadas”, de Sentimento
do Mundo. Agora, a discussão está posta para além das limitações de época.
Assume-se, portanto, o enfoque universal, o que é reforçado por expressões
vagas como “criatura” e “criaturas”: “Que pode uma criatura senão, / entre
criaturas amar?”. Ou então “ser amoroso”: “Que pode, pergunto, o ser amoroso, /
sozinho, em rotação universal, senão / rodar também, e amar?”.
É valioso observar nesse patamar como o
emprego no sétimo verso da primeira pessoa do singular (“Que pode, pergunto, o
ser amoroso”) não provoca comprometimento da referida universalidade. Trata-se,
na verdade, de uma das características mais marcantes do eu poemático
drummondiano: sua capacidade de conter o eu de todos nós.
Nesse ponto, ocorre o ponto preocupante
anunciado no primeiro parágrafo desta postagem. O eu poético drummondiano serve
de porta-voz de todos nós. Mas quem seria esse “todos nós”? “Amar” é um poema
tocante, conforme atesta a cara confissão de Marília Pêra: seus olhos se turvam
a ponto de atrapalhar a leitura. O conhecimento amoroso que causou as lágrimas da
atriz não costuma pertencer ao mundo do vestibulando adolescente. Na verdade,
não está universo confessional ao qual está afeiçoado. Faz parte do campo
reflexivo da senectude, ao qual Drummond e Pêra aproximam-se.
Nesse sentido, a interrogação “Que pode
(...)?” na verdade é retórica, funcionando como uma afirmação categórica, que indica
um eu resignado que compreende as características inevitáveis do amor. Essa
construção frasal equivaleria a “Não resta nada a não ser...”: “Não resta nada
a uma criatura a não ser amar”, “Não resta nada ao ser amoroso, sozinho, em
rotação universal, senão amar”.
Adota-se,
portanto, uma visão que se avizinha da negatividade, ou da falta de colorido da
existência. Torna-se coerente, portanto, o aparecimento de expressões em “Amar”
como “deserto”, “inóspito”, “áspero”, “vaso sem flor”, “peito inerte”, “ave de
rapina”, “coisas pérfidas ou nulas”, “ingratidão”, “concha vazia”, “procura
medrosa”, “amar a (...) falta (...) de amor”, “secura”, entre outras.
Esse pessimismo, ao contrário do que o
senso comum interpretaria, não equivale a desistência da vida. Basta notar a declaração
“este o nosso destino” para se recusar a hipótese de que o poeta se tenha
tornado inerte. Na verdade, percebe-se aqui uma postura assumida em Claro Enigma: a aceitação do caráter
negativo irrevogável e inerente ao ser humano. Atitude de poeta amadurecido que
não deve ser confundida com passividade, indolência ou alienação. É a compreensão
de que, por mais sombria que a perspectiva existencial possa parecer, ela nos
pertence e é nosso papel continuar na luta.
Eu me emociono com o poema. Será que estou velho aos 30?
ResponderExcluirAlguns são privilegiados: amadurecem rápido.
ExcluirLembro-me de um conto de Machado de Assis, "A Cartomante". Nele, o narrador nos informa que há pessoas que ganham sabedoria com a experiência de vida e outras, privilegiadas, já nascem com ela. Acho que você pertence ao segundo grupo.
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