domingo, 11 de maio de 2014

Viagens na Minha Terra: afinal, do que fala esse livro?

Ilustração de Carlos e Joaninha por Paulo Ferreira para a edição de 1946
da Liv. Tavares Martins de Viagens na Minha Terra

Viagens na Minha Terra começou a ser publicado em 1843 na forma de folhetim, ou seja, seriadamente na Revista Universal Lisbonense, mas teve sua edição suspensa, o que já é um sinal de que desde o início era uma obra cercada de dificuldade de aceitação entre o grande público. Em 1846 aparece na forma de livro, tornando-se uma obra ímpar no contexto português, mas filiada a uma tradição que reúne Laurence Sterne na Inglaterra, Xavier de Maistre da França e Machado de Assis no Brasil. Entretanto, apesar de ser um dos monumentos da literatura em nossa língua, seu contato é muito penoso para os vestibulandos, o que o faz ser companheiro de A Cidade e as Serras, de Eça de Queirós, na lista das obras com maior índice de desistência de leitura.
A tarefa árdua dos estudantes na apreciação de Viagens na Minha Terra se deve ao caráter intensamente digressivo da obra. Tem-se a impressão que ela fala de tudo, vai para todas as direções, sem se chegar a lugar algum. O jovem valoroso que finalmente consegue chegar até a metade do livro tem um vislumbre de que há três histórias principais (a da viagem de Garrett até Santarém, a do amor entre Carlos e Joaninha e a da Guerra Civil Portuguesa), mas todas elas desconexas, ainda mais quando são somadas a todas aquelas considerações sobre monumentos portugueses, a diferença entre o homem do campo e o homem do litoral, escritores como Dante, Byron, Camões, figuras políticas como Marquês de Pombal, econômicas como o barão de Rothschild, literárias como Dom Quixote e Sancho Pança...
Nesse ponto, toca-se numa ponta da meada (imagem muito comum e igualmente importante para a compreensão da lógica do romance) que, se puxada, desembaraça toda essa complicação: a oposição entre Dom Quixote e Sancho Pança. Trata-se de duas personagens do romance Dom Quixote (1605) do espanhol Miguel de Cervantes, considerada uma das obras fundamentais da literatura mundial. O que elas representam para Garrett é explicado por uma longa digressão (mais uma...). O protagonista que dá nome ao romance hispânico é um homem que, de tanto haver lido novelas de cavalaria, enlouqueceu a ponto de imaginar que era um cavaleiro andante a continuar as aventuras que havia visto nos livros. Alienado nesse mundo de fantasia, destaca-se em uma cena famosíssima, aquela em que luta contra moinhos de vento, pois imagina que eram gigantes. Na lógica de Viagens na Minha Terra ele passa a representar o idealismo, valor muito caro à literatura romântica. Mas essa personagem tem como companheiro o escudeiro Sancho Pança, mais preocupado com questões práticas ligadas à sobrevivência imediata. Representa o materialismo, ou, na lógica do romance de Garrett, o pragmatismo, o utilitarismo, tão caro aos burgueses que se alimentaram e se aproveitaram do Romantismo.


Nesse sentido, o grande tema de Viagens na Minha Terra é o conflito entre idealismo e pragmatismo. Trata-se de uma questão bastante dolorosa não só para a pessoa Garrett, mas também para sua materialização na figura do narrador, assim como para Carlos, Portugal, a sociedade em que estão mergulhados e até o próprio Romantismo. Deve-se lembrar que esse movimento, fruto das expectativas com relação aos ideais da Revolução Francesa, pena uma profunda decepção ao descobrir que essa mudança social serviu apenas para que a burguesia subisse ao poder, sem sanar antigos problemas. Pior: abriu caminho para mais um tirano como tantos outros – Napoleão. Decepção semelhante é vivenciada por Garrett, que participara da Guerra Civil Portuguesa em nome da modernidade representada pelo liberalismo, que de fato vencera. No entanto, a sociedade que ele via à sua frente era a do materialismo, do pragmatismo burguês, mais preocupado com o lucro do que com grandes ideais. É por isso que o autor vive reclamando do abandono em que se encontram grandes monumentos ligados à História e aos Ideais lusitanos. O autor e Portugal lutaram por isso? É nesse sentido que se deve também encaixar a tragédia de Carlos, que em muito se assemelha à do autor. Também lutara por seus ideais, mas acaba descobrindo ser filho de tudo o que há de mais reacionário em seu país. Seu destino é também o pragmatismo: torna-se barão, ou seja, um homem voltado para a especulação financeira, carreira na qual obtém tanto sucesso que pode até se tornar deputado, o que significa que influenciará (negativamente) os rumos de sua pátria.
O drama de Viagens na Minha Terra mostra-se singularmente bastante atual, pois vivemos uma época em que nobres questões éticas soam como vazias. Recentemente vimos o presidente Bush comandar uma invasão ao Iraque sob o pretexto de que lá havia armas de destruição em massa, fato não comprovado. Ainda assim, fora reeleito. Quando a economia do país que comanda economia degringolou, não conseguiu fazer eleito o seu candidato. Aqui no Brasil, políticos veem-se cercados de escândalos de corrupção e incompetência, mas enquanto a economia está bem, são eleitos e reeleitos. Quando as questões pragmáticas, quando a ração do “povo marcado e povo feliz” fica comprometida, os índices de popularidade caem a níveis preocupantes. Como dizia o Velho do Restelo, em Os Lusíadas, “mísera sorte, estranha condição” a humana.



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