domingo, 3 de novembro de 2013

Lily Allen, Pink e Machado de Assis: as astúcias do viés


No post de 24 de março de 2013 falou-se de como é importante prestar atenção ao viés segundo o qual um texto é produzido. Ter consciência do ponto de vista do enunciador faz com que se entenda o filtro que ele utiliza na expressão de suas ideias e, assim, perceber suas limitações ou manipulações interpretativas. Em outros termos, captar bem mais do que ele está declarando. No entanto, é também interessante detectar quando o autor trabalha esse elemento para fazer com que a voz enunciadora acabe afirmando mais do que aquilo que está literalmente em suas palavras. É o que acontece na canção “The Fear” (2008), da britânica Lily Allen. Nela, melodia, voz e letra assumem coerentemente um ar cândido, quase infantil, por meio do qual o eu-lírico confessa suas preocupações fúteis: ser uma bela celebridade endinheirada. É válido ler essa composição:

I want to be rich and I want lots of money
I don't care about clever I don't care about funny
I want loads of clothes and fuckloads of diamonds
I heard people die while they are trying to find them

I'll take my clothes off and it will be shameless
'Cause everyone knows that’s how you get famous
I'll look at the sun and I'll look in the mirror
I'm on the right track yeah I'm on to a winner

I don't know what's right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When do you think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by The Fear

Lifes about film stars and less about mothers
It's all about fast cars and passing each other
But it doesn’t matter cause I'm packing plastic
and that's what makes my life so fucking fantastic

And I am a weapon of massive consumption
and it’s not my fault it’s how I'm programmed to
function
I'll look at the sun and I'll look in the mirror
I'm on the right track yeah I'm on to a winner

I don't know what´s right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When we think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by The Fear

Forget about guns and forget ammunition
'Cause I'm killing them all on my own little mission
Now I'm not a saint but I'm not a sinner
Now everything is cool as long as I'm getting thinner

I don't know what´s right and what´s real anymore
I don't know how I'm meant to feel anymore
When do you think it will all become clear
'Cause I'm being taken over by fear

A letra mostra a sinceridade de frases de um cinismo indecente: ” “everything is cool as long as I’m getting thinner” (“tudo está bem desde que eu me torne cada vez mais magra”). Entretanto, a força desse texto não está no seu aspecto literal, mas no que deixa mal escondido sob o tapete. Para tanto, basta observar trechos como “It’s not my fault, it’s how I’m programmed to function” (“Não é culpa minha, é como eu fui programada para funcionar”), “I am a weapon of massive consuption” (“Eu sou uma arma de destruição em massa”, em que “consuption” também está ambiguamente ligado a consumismo, tema subjacente da canção), “cause I’m killing them all on my own little mission” (“porque eu estou matando todos eles com minha própria pequena missão”, em que “little” ganha uma força surpreendente para o sentido do texto).

Lily Allen

Mas o momento em que o aspecto crítico se mostra mais escancarado é em “I want loads of clothes and fuckloads of diamonds / I heard people die while they are trying to find them” (“Eu quero um monte de roupas e uma porrada de diamantes / Eu ouvi dizer que pessoas morrem enquanto tentam consegui-los”). Nele, há uma aparente desconexão entre os versos. Aparente. Expõe-se aqui a relação entre a posse de diamantes, e todos os valores de ostentação de luxo a que essa ação está ligada, e as condições desumanas e sangrentas em que esse minério é extraído na África. Assim, está e não está no texto uma crítica ao consumismo. A autora não precisou fazer um ataque inflamado em terceira pessoa, um recurso mais comum, visto, por exemplo, na instigante canção “Stupid Girls” (2006), da norte-americana Pink:

  
Para se ter uma ideia da virulência do ataque dessa composição, é importante uma rápida leitura de sua letra:

Stupid girls, stupid girls, stupid girls
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Go to Fred Segal, you'll find them there
Laughing loud so all the little people stare
Looking for a daddy to pay for the champagne
(Drop a name)
What happened to the dreams of a girl president
She's dancing in the video next to 50 Cent
They travel in packs of two or three
With their itsy bitsy doggies and their teeny-weeny tees
Where, oh where, have the smart people gone?
Oh where, oh where could they be?
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
(Break it down now)
Disease's growing, it's epidemic
I'm scared that there ain't a cure
The world believes it and I'm going crazy
I cannot take any more
I'm so glad that I'll never fit in
That will never be me
Outcasts and girls with ambition
That's what I wanna see
Disasters all around
World despaired
Their only concern
Will they fuck up my hair
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl
(Do ya thing, do ya thing, do ya thing)
(I like this, like this, like this)
Pretty will you fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Pretty would u fuck me girl, silly as a lucky girl
Pull my head and suck it girl, stupid girl!
Maybe if I act like that, flippin' my blonde hair back
Push up my bra like that, stupid girl!
Maybe if I act like that, that guy will call me back
Porno paparazzi girl, I don't wanna be a stupid girl
Maybe if I act like that, flipping my blonde hair back
Push up my bra like that, I don't wanna be a stupid girl

A crítica de Pink é também ácida. Basta notar a corrosão que é feita não só no título e na abertura da composição, que ofende o alvo da crítica, mas também no trecho “What happened to the dreams of a girl president / She's dancing in the video next to 50 Cent” (“O que aconteceu com os sonhos de uma garota presidente? / Ela está dançando no vídeo junto a 50 Cents”). Condena-se a estúpida vacuidade a que o gênero feminino é condenado pela sociedade, qualidade ilusoriamente vista como positiva. Trata-se do desmascaramento da ideologia, assunto já comentado no post de 14 de abril de 2013. É certo que ocorre também o uso da primeira pessoa, como no texto de Allen, mas o importante aqui é notar a diferença entre alguém de fora atacar, ou seja, a crítica ser feita em terceira pessoa, recurso ao qual nós estamos acostumados, e a criatividade em se dar voz ao próprio setor a ser vilipendiado. Seu próprio discurso o condena. Assim, o viés acaba sendo manipulado para produzir efeitos retóricos surpreendentes. No caso mais rotineiro, pode-se até pensar que o discurso de Pink seria baseado na inveja, o que seria mais difícil de apontar no texto de Lily Allen.
  
Pink

Esse poderoso recurso é sabiamente explorado em clássicos como Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis. Neles, o Bruxo de Cosme Velho dá a voz a membros da elite brasileira que, por meio de seu discurso, acaba pondo a nu o vazio da existência de seus membros, entregues ao tédio, ao autoritarismo e a um comportamento caprichoso garantido por uma folgada condição econômica. Assim, Brás Cubas pode explorar a miséria de Dona Plácida ou brincar com as esperanças da nobre Eugênia. Pode ainda escrever de maneira digressiva, sem respeitar o ritmo ou à paciência do leitor. E no fim confessar que tudo isso é natural e até correto. O mesmo ocorre com Bentinho, que, apoiado em uma sociedade patriarcal, pode sufocar a energia de vida da brilhante Capitu, até fazê-la perecer moral e fisicamente no exílio, tudo em razão das vontades mimadas de um adulto que não largou a infância.
  
Machado de Assis

Enfim, os exemplos acima são bastante convincentes para que se entenda que o viés é um elemento importante para a construção e principalmente interpretação de um texto. Prestar atenção ao ponto de vista do enunciador ajuda a entender o universo consciente e até inconsciente do ato de enunciação, o que contribui saborosamente para a riqueza da leitura.
  

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