domingo, 17 de novembro de 2013

O menino do esgoto: literatura a uma hora dessas?

Diego Nigro - 24.out.2013/JC Imagem/Folhapress
No começo deste mês, alguns jornais publicaram a foto (vista acima) de Paulo Henrique, 9 anos, mergulhando no esgoto do canal do Arruda, em Recife. O que levou esse menino a fazer algo tão nojento quanto inacreditável? Os 200 reais mensais que sua mãe recebe como faxineira são insuficientes para o sustento da família, por isso o garoto tem de entrar naquela água imunda e fétida para catar latinha para reciclagem. Obtém no máximo 10 reais por dia. Trata-se, sem dúvida, de um fato chocante, mas que passou quase despercebido do grande público, afogado em acontecimentos não menos importantes como o uso de beagles para pesquisa cosmética, a ostentação vazia e ingênua do rei do camarote, a rebeldia mimada e delinquente de Justin Bieber, o assassinato cruel e inexplicável do pequeno Joaquim e as primeiras prisões ainda que tardias dos participantes do escândalo do mensalão.
A mãe de Paulo Henrique confirma ter preocupação com essa atividade do filho, pois teme que ele pegue alguma doença. Na verdade, o contágio já se efetivou e está há muito disseminado, mas não só no garoto. Ele é só a pontinha do iceberg que flutua nesse esgoto. O resto engloba todos os fatos listados acima, que curiosa e paradoxalmente, submersos, ajudaram a ocultar o drama social dessa família. O pequeno é a parte mais visível de um problema, tornado invisível. É mais um entre tantos incômodos que fazemos de conta que não existem. Enquanto as prefeituras não “higienizam” essa realidade, nosso olhar seletivo preocupa-se em fazer de conta que ela não está aí.
Às vezes, certos malucos quebram esse esquema de apatia, conformismo, comodismo, egoísmo e cegueira. Alguns deles são os literatos. Em 1973, por exemplo, época do milagre econômico que gerou muito do que o Brasil é hoje, José Paulo Paes publicava Meia Palavra, no qual se encontra o poema “Seu Metaléxico”:

          desenvolvimentir
          utopiada
          consumidoidos
          patriotários
          suicidadãos

Páginas e páginas de filosofia, sociologia e história foram gastas para analisar o Brasil. De maneira igualmente competente, mas bem mais concisa, Paes dá sua explicação por meio da fragmentação e recombinação de palavras, produzindo efeitos bastante chamativos. Ao misturar, por exemplo, “economia” e “miopia”, transmite a ideia de que as políticas econômicas não enxergam o verdadeiro problema da nação. Basta lembrar que com a crise de 2008, provocada de certa forma pelo excesso de consumo nos EUA, a tática usada tanto lá quanto aqui foi justamente criar linhas de crédito. É como jogar gasolina para apagar incêndio. Não se repensou todo o nosso sistema de valores, o que nos levaria a concluir que não precisamos de tanto – podemos ser mais felizes com bem menos. Para que ter sempre o carro do ano? Para que ter sempre a mais nova versão de smartphone? Para que ter sempre a última roupa da moda? Por que esse consumo insano e desenfreado tornando-nos “consumidoidos”? Estamos nos matando para sempre ter, esquecendo o mais vital, que é viver. Somos “suicidadãos”.
Haveria um ideal nobre sustentando esse nosso comportamento: nosso consumo faz a economia girar, gerando mais riqueza para o país. Trata-se, na verdade, de uma “utopiada”, uma utopia que não pode ser levada a sério. Quem tem coragem de falar para Paulo Henrique sobre essa pujança econômica do Brasil, a 6ª do mundo? Só um “patriotário” teria essa disposição. Ou o garoto do esgoto é um dano colateral? Um caso perdido? Então a política desenvolvimentista brasileira é uma mentira (“desenvolvimentir”), pois não produz igualdade social. Ou esta seria mais uma utopiada?
Dessa forma, entende-se que a literatura, por meio do uso estético da linguagem capaz de afetar nosso aparelho emotivo, muitas vezes serve para acender uma luz em meio à escuridão alienante, funcionando como instrumento de resistência ao descalabro em que se encontra a sociedade. Não é essa a sua principal função, mas, quando bem realizada, faz-nos ter esperança na espécie humana. Mesmo quando a mensagem é pessimista, é sinal de que nem tudo está perdido.
  
Resumos, análises e comparações.
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4 comentários:

  1. Bubu,
    Lau-Lau,
    Muito bom o texto, enquanto milhares discutem e compartilham sobre o dito rei dos camarotes exuberando gastos e luxos, muitos Paulo Hinrique´s sofrem a maldita miséria no Brasil.
    Até quando vamos ver essa desgraça? será que um dia isso vai mudar?
    assim como vc tenho esperança que por meio da literatura e outros caminhos podemos mudar essa situaçao lamentável.
    bjabraços

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    1. Fico feliz em você garantir que não estou sozinho... E obrigado por visitar O Magriço Cibernético!

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  2. Esse trecho: "Mesmo quando a mensagem é pessimista, é sinal de que nem tudo está perdido." me fez lembrar de um verso: "Onde estiver, seja lá como for, tenha fé!Porque até no lixão nasce flor." do Racionais mc's. Ótimo texto Lau, parabéns! =)

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    1. Não conheço essa música dos Racionais. Sabe o nome dela?
      E obrigado pela visita e pelo elogio!

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