domingo, 17 de fevereiro de 2013

Os Miseráveis



Como já foi dito várias vezes nO Magriço Cibernético, um texto não se faz com o simples amontoado de elementos. É necessário que eles estejam interligados para que assim consigam fazer sentido. Portanto, a ausência dessa ligação ou mesmo a má qualidade dela compromete o funcionamento do conjunto. Esse último ponto é o defeito que prejudica o filme Os Miseráveis (2012).
É válido observar que a película de Tom Hooper é belamente grandiosa, como se nota já a partir da abertura – muito parecida, aliás, com a de O Príncipe do Egito (1998). O curioso é que essa sensação de déjà-vu também se manifesta por meio do elenco fenomenal: Hugh Jackman é o outsider de coração bom Jean Valjean que faz lembrar o Wolverine da saga X-Men; Helena Bonham Carter é a amoral desequilibrada Madame Thénardier que faz lembrar a Bellatrix Lestrange de Harry Potter; Russell Crowe é o obstinado Javert que faz lembrar o Maximus de Gladiador (2000); Sacha Baron Cohen é o fanfarrão Thénardier que faz lembrar o protagonista de Borat (2006). Esse efeito de memória cinéfila pode indicar a limitação da indústria cinematográfica, pois lida com atores marcados e que se tornam tipos ou mesmo clichês. Culpa do artista, que só sabe se destacar em determinado papel? Ou do público, que só aceita essa espécie de desempenho? E o filme acaba prejudicado, pois parte de sua grandeza é emprestada de elementos de outras narrativas que fazem parte do repertório do espectador?


Nesse ponto, merece destaque a surpreendente atuação de Anne Hathaway. Ao vê-la interpretando Fantine, imediatamente lembramos a delicadeza de Andy Sachs, assistente da megera Miranda de O Diabo Veste Prada (2006). Mas enxergamos também Seline e a determinação em lutar pela própria sobrevivência em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2012). Entretanto, a atriz supera todas essas marcas principalmente quando canta “I dreamed a dream”. Ela é tão boa que por si só vale o filme. Pode-se simplesmente ir embora da sala depois de terminada a ária. O problema é que uma obra não se faz apenas com uma boa cena, pois um texto não se faz apenas com um bom elemento.


Entretanto, há outros ingredientes positivos em Os Miseráveis. Um deles é a coragem em se apresentar como musical, gênero cuja vitalidade restringe-se aos meados do século XX. Para se ter ideia do desgaste desse tipo de obra, basta lembrar que os produtores de Sweeney Todd – O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007) tiveram que lidar com processos judiciais por parte do público que se sentiu enganada porque assistiu ao filme sem saber que era um musical, pois nada disso aparecia no trailer. É claro que há realizações de sucesso como Moulin Rouge (2001), Chicago (2002) e Burlesque (2010), mas são exceções que acabam atendendo um nicho específico que consome naturalmente esse tipo de produto. O problema é que quando se confronta esses filmes competentes com o de Tom Hooper, nota-se que este não conseguiu fazer um musical, mas um filme cantado. O espectador sai da sala de projeção lembrando-se de qual música? Com certeza, de “I dreamed a dream”. Com um pouco mais de esforço, vai-se recordar do coro da abertura. E só. Qual é mesmo a canção que está concorrendo ao Oscar? Não obstante, o filme deve ser elogiado por não cair no erro de Evita (1996), que apresentou um Antonio Banderas esganiçado. Os atores de Os Miseráveis não são fenômenos vocálicos, mas não derrapam nesse quesito.
Há que se destacar também a competência de Os Miseráveis no campo visual. Sua fotografia é assombrosa, captando o titanismo da obra de Victor Hugo que lhe serviu de base. É por isso que constantemente nos defrontamos com tomadas nas alturas, condizentes com o estilo condoreiro do final do Romantismo. Além disso, existem nesse aspecto efeitos muito ricos, como na cena em que Valjean reza por Marius. Em determinado momento o protagonista fica à direita da tela, o que revelaria uma falha, pois nada é focado à esquerda. Mas um olhar atento capta nesse lado, desfocada, a imagem de um olho, o que remete à ideia daquele que tudo vê, ou seja, de Deus como o ausente sempre presente ao intervir em momentos precisos na vida das personagens.
No entanto, com todo esse material de primeira linha, onde está a falha de Os Miseráveis? Por que não é um filme que vai ficar na memória afetiva, como conseguiu Amadeus (1984), Clube da Luta (1999), Matrix (1999), Harry Potter (2001-10) ou até mesmo os açucarados Titanic (1997) e a saga Crepúsculo (2008-11)? Há quem possa levantar como causa o jeito antiquado da obra de Tom Hooper, não apenas por ser um musical, mas por apresentar valores tradicionais cristãos. Basta notar que todas as personagens positivas têm falhas em algum momento de seu passado e da qual infelizmente não conseguem se livrar. Não lembra a noção do pecado original? E não é à toa que o resgate-revolução está no seio da Igreja. Além disso, a paixão entre Cosette e Marius, filhos que nasceram puros em meio a tanta iniquidade, lembra o amor de Cristo que tirou o pecado do mundo.  No entanto, apesar de essa temática cheirar a arqueologia, ela não pode ser a responsável pelo fracasso de Os Miseráveis. Basta lembrar que as trilogias de Harry Potter e O Senhor dos Anéis (2001-3) lidam com ideais igualmente antigos e não são frustrantes.
Na verdade, o problema de Os Miseráveis está na forma em que dispôs os elementos da obra que lhe deu origem. Em 1862, ano da primeira publicação do texto de Victor Hugo, era normal que um romance tivesse uma estrutura caudalosa, com tramas cada vez mais complicadas, cheia de perseguições, sumiços, revelações, identidades trocadas. E para tudo isso se manifestar, nada mais natural do que o calhamaço de páginas e páginas que até hoje são acompanhadas avidamente por leitores sedentos. E é aí que está o problema do filme – como passar a enorme quantidade de conteúdo bom do livro em um filme de 156 minutos? O resultado foi a impressão de que se estava assistindo àqueles compactos de telenovela, em que há muito conteúdo em tão pouco tempo, o que não permite ao espectador envolver-se com a história. Quem curte, é porque está revendo, ou seja, está se deliciando com o que já visto, assim como quem cultua o filme de Tom Hooper pode estar na verdade fazendo uma ponte com o livro do romântico francês.
Há quem discorde lembrando que filmes como os de Missão Impossível ou os de 007 também apresentam vários acontecimentos com várias personagens em vários lugares, numa trama cada vez mais globalizada e isso não impede que sejam narrativamente mais eficientes. Mas a questão é que, por mais labiríntica que seja a história dos agentes secretos, elas prendem o público por terem unicidade, estarem ligadas a um mistério, a um fato. Já em Os Miseráveis temos várias histórias: a de Valjean, a de Fantine, a de Cosette, a de Marius, a de Javert, a da barricada. Cada uma delas daria um excelente filme. Ou funcionaria muito bem quando misturada às outras em uma estrutura novelesca de um romance. Assim, o filme de Hooper acabou sendo uma sucessão amontoada de grandes cenas.
Então seria impossível transpor a obra de Victor Hugo ao cinema? Com certeza não. Talvez a solução seja fatiar o que se acha essencial, como Peter Kosminksy fez em O Morro dos Ventos Uivantes (1992), baseado no romance homônimo que Emily Brontë publicou em 1847. Ou então transformar em trilogia, caminho muito bem enveredado por Star Wars, O Senhor dos Anéis e Crepúsculo. Ainda assim, é um bom filme que vale a pena ver.


9 comentários:

  1. Sobre a "sensação de déjà vu", acredito que mesmo atores excelentes e com capacidade de dar vida a personagens diversos estão fadados a serem mais reconhecidos por determinado papel. Dessa forma, quando o roteiro foi escrito e a personagem Madame Thénardier criada, a atriz mais indicada para o papel não poderia ser outra, devido a sua competência para interpretar personagens como essa. Já a escolha de Russel Crowe para viver Javert não dá essa sensação de déjà vu tão forte, pois o ator participou de outros filmes de grande sucesso, como Uma Mente Brilhante, em que o protagonista, John Nash, nada se parece com Maximus.

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    1. Laudemir. Assiste a esse filme 3 vezes.rs

      Ótima Crítica a sua. Só cabe lembrar que a adaptação do filme está ligada ao musical dos anos 80. Então, essa deficiência de adaptação é um fato já consumado. Talvez a adaptação do musical seria mais coerente porque mais de 60 milhôes de pessoas no mundo já viram esse musical e rever na telinha seria somente uma prazeirosa recordação daquelas que amam esse tipo construção. Não acho que o Hugh Jackman relembra Wolverine. Para mim ele foi uma excelente supresa. Em minha mente ficaram vários trechos na memória, mas nada se compara ao epílogo. A transição da morte do personagem e como foi retratado foi de uma beleza incrível para mim. Em minha vida, achei a cena mais linda do cinema. Me emocionei muito nela nas três vezes.

      Obrigado pela crítica

      André Salgado (Olhos expressivos..rs)

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    2. Fiquei com um pé atrás com relação a essa cena do final. Ela tem um pé no catolicismo ao apresentar a revolução, a solução para os problemas como algo que está no seio da Igreja. Mas é um problema do Victor Hugo, um recalcado passadista que sonha com um retorno ao mundo pré-capitalista. Tanto que Valjean sobrevive com um dinheiro que é fruto dos candelabros que ganhara do padre e que arrasta para onde vá. Creio que isso é uma noção pré-capitalista de riqueza. Entretanto, o filme é plasticamente sublime, com sua movimentação fabulosa dos coros e massas. Não me sai da mente a cena em que Fantine desce aos infernos na zona de prostituição.

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  2. uma das maiores falhas do filme talvez seja a de não conseguir fazer com que o publico se ligue emocionalmente aos personagens, ele não te da motivos para se preocupar com o romance de cosette e marius ja que de certa forma mal os conhecemos.um fato q me impressionou foi o de que senti uma ligaçao com o personagem javert que parece ser o mais bem trabalhado e no que se pode notar a maior miséria interior.
    talvez o cenários muito teatrais atrapalhe um pouco a imersão.

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    1. Eu não sei s e o cenário teatral atrapalha o filme. O que eu sei é que ele pincela os dramas sem dar tempo para que os acompanhemos e no fim os sintamos. O único acontecimento eficiente a meu ver só ocorre com Fantine.

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  3. Eu fiquei um pouco decepcionada com o jeito que a história da Fantine foi contada no cinema, quando li o livro a cada página que eu virava eram mais lágrimas que caiam, já no cinema a emoção só me invadiu na cena da morte da personagem. Não estou desmerecendo a Anne Hathaway, muito pelo contrário, me surpreendi com a atuação dela, porém não foi dada a devida atenção a sua vida miserável e aos sacrifícios que ela fazia para conseguir dinheiro para a filha. Com certeza faltou um pouco de aprofundação psicossocial em, na minha opinião a melhor personagem da história, Fantine.
    E Lau, quando tiver tempo você poderia fazer um post sobre o livro "Guerra e Paz"?

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    1. Gabriela, acho que essa falta de aprofundamento se deva à forma que escolher, que é um filme. Lá a história durou ao todo 156 minutos. Quantos minutos você gastou para ler Os Miseráveis. Mas isso não inocenta completamente o filme. De fato, tentar falar de tudo em tão pouco espaço é muito arriscado.
      Quanto ao Guerra e Paz, eu ainda não sei se esse romance, monstruoso, na verdade tenha algum espaço aqui nO Magriço Cibernético. Não sei ainda mesmo...

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