quarta-feira, 10 de outubro de 2012

"Isto não é um cachimbo" - pequenas reflexões sobre a arte

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Entre 1928 e 1929, o belga René Magritte (1898-1967) produziu uma série de pinturas intitulada A Traição das Imagens (La Trahison des Images). A mais famosa delas é a que está reproduzida acima, Isto não é um Cachimbo (Ceci n’est pas une Pipe), que surpreendentemente causou muita polêmica desde então, principalmente em razão de seu aparente nonsense: vê-se um cachimbo e afirma-se que não se trata de tal.
Na verdade, essa obra se presta a uma excelente reflexão sobre o papel da arte. Inicialmente, deve-se lembrar que o nome do trabalho do belga não é um contrassenso, já que, óbvio, ninguém fumaria o quadro. Então, algo extremamente lógico – mas pouco lembrado – vem à tona: o que temos diante de nós é apenas uma imagem que representa um cachimbo e não o próprio utensílio para fumar. Em suma, não temos o objeto, mas uma imagem dele.
Essa pintura tem parentesco com um famoso poema de Fernando Pessoa, “Autopsicografia”, do qual destacamos a primeira estrofe:

O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.

O grande mestre da heteronímia nos informa que um poeta, ao construir seu texto, na verdade não coloca suas emoções no papel, mas apenas finge, ou seja, cria uma outra realidade, feita de palavras. Torna-se, portanto, indiferente para a apreciação de sua peça o que a inspirou ou se de fato se baseia em elementos que fazem parte da biografia do artista.
Tanto Pessoa quanto Magritte nos mostram, então, que a arte precisa ser entendida não como a realidade em que estamos, mas como uma representação desta, como um universo paralelo. E funcionando assim, acaba tendo seus próprios mecanismos, que não necessariamente são iguais aos do ambiente em que vivemos. Portanto, é errado exigirmos de um trabalho estético uma conformidade com o nosso universo imediato.
Feitas essas reflexões preliminares, algumas considerações podem ser feitas.  Quando no post anterior se mencionou que o estupro praticado por Pedro Bala fazia parte da crise em que a personagem se encontrava, já deve ter ficado claro que tal ação deve ser entendida dentro da lógica de construção de Capitães da Areia. O livro não deve ser condenado por apresentar esse valor antiético deplorável, mas por não saber manipular adequadamente os elementos que fazem parte de sua narrativa. Da mesma forma, quando em Til, de José de Alencar, Jão Fera salta no lombo de vários queixadas para resgatar Berta, ou quando esta consegue dominar uma cobra apenas com a força do olhar, não se deve atirar pedras contra o romance, pois esses fatos são extremamente coerentes com a lógica de construção do texto, mesmo não tendo relação plausível nenhuma com o nosso mundo.
Em suma, devemos analisar uma obra pelo que está nela e saber que se trata de uma representação apenas. Ceci n’est pas une pipe. Não ter isso em mente é cair na zona de erro primário em que também se encontram aqueles que querem bater em atores só porque estes interpretam o papel de vilão de uma novela.

13 comentários:

  1. Por alguma razão as velhinhas adoram bater em atores de novela

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  2. Acho sensacional seus posts!! Parabéns ''fessor''.. Eu queria ter 1% de sua percepção e dominio no assunto, é incrível!! Sobre esse, me lembrei(mesmo sendo um assunto paralelo)de uma publicação na folha.. onde um artista pegou um cão vira-lata, amarrou-o numa corda e o colocou em uma parede de uma galeria de arte.. alegando ser uma obra de vanguarda..(http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2004200823.htm)
    Tanto sua publicação, quanto a matéria no jornal.. automaticamente nos leva a pensar sobre os verdadeiros significados de arte.. A ''hipercomplexidade'' que ela carrega. Abraço!

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    1. Em primeiro lugar, muito obrigado pelo elogio.
      Achei interessante o artigo que você me passou. Mas não se esqueça que a arte muitas vezes não precisa ser hipercomplexa. Faz-se muito bem boa arte com extrema simplicidade! Esse é o lado bom da coisa, não?

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    2. Exatamente!!! A simplicidade acaba valorizando muito com pouco.. muito bom!

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  3. "Pedro Bala fazia parte da crise em que a personagem se encontrava, já deve ter ficado claro que tal ação deve ser entendida dentro da lógica de construção de Capitães da Areia. O livro não deve ser condenado por apresentar esse valor antiético deplorável, mas por não saber manipular adequadamente os elementos que fazem parte de sua narrativa."
    Isso é de um relativismo enorme e deplorável dos nossos valores morais, na verdade Jorge Amado faz com que o leitor sinta pena o tempo todo de Pedro Bala,como vítima da própria sociedade. Quando analisamos o contexto, Pedro Bala não passa de um bandido, furta, estupra etc..
    É evidente que há um proselitismo ideológico enorme, patente nos autores de esquerda, é o que vemos também em São Bernardo, aqui no Brasil criou-se a ideia de que o bandido é apenas vítima da sua realidade social, nunca ele mesmo é o culpado pelos seus atos, é a sociedade que é má...
    E o pior é que quem deveria alertar o aluno a respeito dessas características, simplesmente acata o que o autor meticulosamente planejou.
    Vamos ver além das coisas, professor.

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  4. Caro, em primeiro lugar o texto fez questão de que se trata de um valor antiético deplorável - a violência sexual praticada por Pedro Bala. Em segundo lugar, o texto deixa claro que deve haver sim um relativismo - uma obra de arte (boa ou má) tem que ser avaliada em relação ao código que ela institui dentro dela. A arte pode imitar a vida, mas ela não é a vida. Em terceiro, Jorge Amado não faz com que sempre se sinta pena de Pedro Bala. Muitas vezes ele quer (querer nem sempre é poder) que o leitor sinta admiração também e, portanto, o use como modelo. Dentro da literatura panfletária (esta sim deplorável) que surgiu nos anos de 1930, o livro é eficiente. Quarto, quando você diz "Quando analisamos o contexto", você acabou relativizando também a obra. Mas não a fez dentro da leitura que deve ser feita - respeitando o código que foi montado. Quinto, esse proselitismo precisa ser enxergado e é isso que questões de vestibular têm cobrado, como no último exame da UNICAMP. Fez parte da nossa história literária, bem ou mal. Sexto, em São Bernardo, livro infinitamente superior a Capitães da Areia, Paulo Honório deve ser enxergado não apenas como um crápula que é vítima de um sistema (tantos dentro do livro também foram vítimas), mas como alguém que acabou refletindo as características do seu meio. Sétimo, parece que você não leu com atenção este post. Aconselho a relê-lo, assim como os referentes a Capitães da Areia. Em nenhum momento se expôs o aluno ou o leitor aos riscos de uma ideologia do mal. Apenas se ensinou como ler um texto literário. É preciso ler além das coisas, sem deixar de falar das coisas. O que você está inadvertidamente fazendo é extrapolar leituras, um erro também já comentando neste blog.

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  5. Professor, capitaes da areia pelo que eu saiba é um livro que possui uma tematica social, entao o ato de pedro bala, mesmo que deploravel e antiético, deve ser considerado, pois jorge amado quer justamente transmitir a realidade dessas crianças na bahia. O abuso foi só uma passagem de muitas outras.

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  6. Parabéns mestre.
    Abordar assuntos com tamanha destreza e conhecimento é coisa para poucos!
    Inserido no mesmo texto literatura e arte com excelente comentário.
    Até mais.

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  7. Parabéns mestre.
    Abordar assuntos com tamanha destreza e conhecimento é coisa para poucos!
    Inserido no mesmo texto literatura e arte com excelente comentário.
    Até mais.

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