domingo, 14 de outubro de 2012

2001: Uma Odisseia no Espaço - o filão nobre da ficção-científica



Um gênero que merece respeito é a ficção científica. Sua essência não é a utilização da Ciência em sua narrativa, mas as especulações, considerações, hipóteses em cima do que esta área do conhecimento proporcionaria. Assim, o bom leitor notará nesse campo o valor de Philip K. Dick (1928-1982), por exemplo, autor de mais do que mera aventura juvenil. Seu Do Androids Dream of Electric Ship? (1968), que inspirou o filme Blade Runner (1982), possibilita uma discussão sobre a vida e sua longevidade, sem mencionar os fatos ligados a memória, exploração, escravidão. Ou então o We Can Remember it for You Wholesale, conto de 1966 que deu origem em 1990 à película Total Recall (O Vingador do Futuro) e que apresenta elucubrações que se dão no campo da identidade: até que ponto ela é autêntica, até que ponto é fabricada? Em ambas subjaz uma questão crucial – o que nossa mente sabe que é real, de fato o é? “What is real?”, perguntava Morpheus a Neo, em Matrix (1999), outro belo exemplar do setor, dessa vez dos irmãos Wachowski.
Mas o grande mestre desse gênero é Arthur C. Clarke (1917-2008). Mais do que ter inspirado uma excelente película, é praticamente co-autor de uma maravilha que ajudou a tirar esse gênero cinematográfico do limbo dos filmes B: 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Na verdade, o romance e o filme foram produzidos no mesmo ano, a partir das discussões entre esse autor e o cineasta Stanley Kubrick. Este, com sua genialidade, conseguiu tornar o filme um clássico, pois seus temas profundos continuam atuais, dando à obra um tom filosófico e até místico.
Não se trata de um filme fácil. Além de sua extensão (147 minutos), ele tem poucos diálogos. Aliás, não há uma fala sequer nos seus 25 minutos iniciais, assim como nos 23 finais. Isso já foi suficiente para afastá-lo do grande público. Uma parte imediatamente já o qualifica como monótono – opinião dos que consomem cinema eletrizante de ação. Ou como nonsense – juízo dos que consomem popcorn movies, buscando apenas diversão, sem a necessidade de utilizar o cérebro. A minoria, que consegue ver sentido nele, cultua-o, considerando pobres descerebrados quem não conseguiu entendê-lo. E assim, abre-se a celeuma. Mas quem falou que o bom tem de ser popular? Mas quem falou que o bom tem de ser difícil? Deve-se dar liberdade à arte – ela não tem obrigação de ser digerível ou intragável. Ela simplesmente é o que é.
 E o que é, então, arte? Sem a pretensão de esgotar o assunto em um espaço tão curto como o de um post, o que é impossível, pode-se entender, grosso modo, que arte é uma forma que se faz conteúdo. Ou um conteúdo que se mostra na forma. E isso 2001: Uma Odisseia no Espaço cumpre. Para tanto, basta observar o momento inicial do filme, “The Dawn of Man” (“A Alvorada do Homem”). Nele vemos nossos ancestrais primatas (na verdade, Kubrick não usou o homem primitivo porque queria evitar problemas com censura, já que este andava nu) em comportamento ao mesmo tempo gregário e briguento, neste último caso principalmente por questão de posse. Nossa essência já estava lá.
É noite. A escuridão tem também um sentido metafórico, pois numa cena anterior um dos integrantes do grupo foi morto por um felino e em outra perderam o acesso a uma poça d’água, conquistada por um bando que gritava mais alto, demonstrando ter mais força. Viver, como dizia Guimarães Rosa, é muito perigoso. Daí as trevas em que se encontram.


Ao amanhecer (e novamente ocorre também um sentido metafórico), o grande mistério do filme aparece: um monólito preto. Curiosamente, tem a mesma proporção daquele que milhões de anos depois vai ser encontrado na Lua: 1x4x9. E o mais intrigante é que cada número é o quadrado dos três primeiros números inteiros. Representação de Deus em sua perfeição? Do Divino? Do Mistério Universal? Mas instigante é a reação que provoca na pequena tribo. Não incute a capacidade evolutiva daqueles macacos – desperta-a. Em outras palavras, o dom já estava dentro deles, só precisava ser estimulado. E tal está ligado à curiosidade e experimentação, que é o que os primatas liberam quando vencem o medo. Isso é que nos fez desenvolver nossas capacidades. Há quem diga que o fato de nos erguemos liberou os membros posteriores para a exploração e consequente intervenção na natureza. Mas antes disso era necessária a curiosidade, que o insólito objeto despertou.
Mas cinema é mais do que ação. É som e imagem. Depois que a descoberta se deu, tendo como trilha sonora o Requiem (1963-5) do húngaro György Ligeti (1923-2006), que em muito contribui para o clima de mistério e assombro, em 4min26 surge, sobre o monólito, o símbolo do zoroastrismo: o sol alinhado à lua crescente. É uma representação do que essa antiga religião pregava – a luta do bem, da luz, contra o mal, a escuridão. Deve-se lembrar que a música que virá logo depois, que abriu o filme e que o perpassa em vários momentos, é Also Sprach Zarathustra (Assim Falou Zoroastro), que Richard Strauss (1864-1949) compôs em 1896, inspirado no tratado filosófico homônimo de Friedrich Nietzsche (1844-1900), publicado entre 1883 e 1885. Segundo esse livro, Deus estaria morto. Então o monólito era prova disso? O Evolucionismo assassinou a ideia de Deus? Mas nessa publicação também se afirma que o homem é uma ponte entre o primitivo e o divino. Parece que esse sentido é mais condizente com o que Strauss compôs, com os metais anunciando a chegada de algo grandioso, o que é reforçado com a percussão. E é justamente o tema da obra de Kubrick e Clarke. Saiu-se das trevas para se entrar na luz.


       Em 5min11 a imagem do alinhamento volta, como uma lembrança no hominídeo. É o momento em que ele tem um insight, o famoso estalo mental, de delimitação complicada – até que ponto é algo que se dá apenas na mente, até que ponto é fruto de influência externa? Em 5min28, quando aparece a música de Strauss, o grande momento ocorre: a descoberta da ferramenta. É por meio dela que o homem evoluirá, ampliando suas potencialidades. O fato de agora estarmos utilizando a internet é prova disso: nossas capacidades de memória e interação foram elevadas exponencialmente.
Mas, pelo que se vê na cena, a vitória das luzes não foi completa, pois as trevas ainda estão presentes. O mesmo objeto que aumentou a possibilidade de alimentação trará também o assassinato em nome da posse, como mais tarde ocorrerá no próprio filme, em que a poça d’água será retomada graças ao assassinato do líder da tribo opositora.
E entre 6min51 e 6min58 a mais famosa transição da história do cinema é feita. Quatro milhões de anos de evolução são sintetizados no osso que é jogado ao ar e é substituído,  na tela, por uma espaçonave. Entra então o Danúbio Azul (1867), de Johann Strauss (1825-1899), a sugerir a precisão, como uma valsa, da movimentação das naves espaciais. É a maravilha do progresso científico. Mas isso é o resto do filme, que não cabe analisar aqui.  O que coube aO Magriço Cibernético foi mostrar como a ficção científica é capaz de traduzir questões importantes para o ser humano. E 2001: Uma Odisseia no Espaço é ideal para essas considerações.

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10 comentários:

  1. Como sempre suas análises são, simplesmente, brilhantes. É preciso aprender a educaar o olhar, a percepção para detalhes tão sutilmente expostos. Parabéns, Mestre.

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    1. Você é sempre muito simpático em suas críticas. Obrigado por elas e por visitar O Magriço Cibernético.

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  2. A ficção científica é um recurso interessante para expressar ideias absurdas sobre questões ainda sem resposta. Ao assistir a esse filme, torna-se muito sedutor imaginar que foi assim que tudo aconteceu.
    Gostei muito do post, Lau, quase morri de orgulho de ter você como professor! Quero ser assim quando crescer.

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    1. Obrigado pelo elogio exagerado, minha linda!
      E, de fato, a ficção científica dá toda essa possibilidade de lidar com o até agora impossível.

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  3. Gosto quando você escreve bastante, detalhando os fatos que
    "É por meio dela que o homem evoluirá, ampliando suas potencialidades. O fato de agora estarmos utilizando a internet é prova disso: nossas capacidades de memória e interação foram elevadas exponencialmente."
    Na verdade quando temos uma informação de fácil acesso acabamos esquecendo dela rapidamente, como por exemplo - uma calculadora, que ao digitarmos os números e a operação desejada recebemos a resposta pronta e sem esforços. Isto nos aliena ao invés de nos evoluir, ao ponto de não precisarmos mais saber quanto é 2x9 ou 50+50, pois já temos tudo pronto.

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    1. Esse é o mal da tecnologia. Avançamos em um ponto e acabamos atrofiando habilidades básicas. A invenção de escrita, por um lado, fez com que diminuíssemos a capacidade de memória.

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  4. Se tiver tempo, escreva um pouco sobre a quarta parte do filme, confesso que não entendi o motivo pelo qual o astronauto se viu em diversas perspectivas...
    Paulo Matheus.

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    1. Desse jeito eu vou fazer um tratado sobre 2001. :)
      Mas vamos ver em que momento da dinâmica do blog eu vou poder encaixar a análise dessa parte. Mas tem a ver com o começo. Evoluções, evoluções, evoluções... Captou as pistas?

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    2. Digamos que ainda não está tudo muito claro. Talvez com o fato dele se ver em diversos momentos de sua vida, jantando e depois durmindo, kubrick tenha deixado a mensagem da análise, da evolução da sabedoria e do ser, tanto que depois temos o "grand finale" do "bebê"...estou no caminho certo?
      Paulo Matheus.

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