domingo, 22 de abril de 2012

Surplus: há saída para a sociedade de consumo?

O documentário sueco acima, Surplus (2003), pode parecer à primeira vista bastante desatualizado, tanto que apresenta figuras que já não estão mais no auge: Bush, Berlusconi, Blair, Fidel (quem justamente fala em off na abertura). Além disso, a cena inicial já perdeu o impacto de notícia – a reunião do G8 (ainda existe G8?) em 2001 na Itália, que gerou uma série de protestos que culminaram no homicídio cometido pela “polizia assassina”, algo inadmissível em um organismo de segurança do Primeiro Mundo. Entretanto, esse ar démodé é só aparência. Basta lembrar que o poder de fato não se encontra mais nas mãos de governantes. Esses são apenas fantoches das grandes corporações, que são transnacionais, tanto que transferem facilmente seus recursos de um canto a outro do planeta, protegendo-os das crises que pipocam aqui e ali. E basta também perceber que a linguagem em que o filme é apresentado compensa a possível deficiência temporal. Graças a uma edição no estilo dos videoclipes, com batidas próximas do pop ou do techno, com a repetição minimalista (rewrite) de imagens e sons que soam a Beryl Korot e Steve Reich em Three Tales e a sucessão de cenas que recorda a trilogia Qatsi de Godfrey Regio, sua comunicação com o público é imediata, ainda mais se se trata do jovem, de hábitos ainda não completamente cristalizados e, portanto, mais passível de ser doutrinado.
Sim, a grande preocupação dessa película é doutrinar, mas não no sentido pejorativo de incutir na cabeça de alguém um ponto de vista sectário, que não admite opiniões divergentes. Tanto que são apresentados pontos de vista de setores até mesmo contraditórios. Vemos depoimentos do filósofo anarquista John Zerzan, do ativista Kalle Lasn, dos ex-presidentes George Bush e Fidel Castro, do ex-primeiros ministros Silvio Berlusconi e Tony Blair, do bilionário Bill Gates, do presidente-executivo da Microsoft Steve Ballmer. A intenção é mostrar como se comporta nossa sociedade, prisioneira do desejo de consumo. Surplus mostra com eficácia que vivemos uma obsessão por possuir principalmente o de que não precisamos. E essa gana nos está destruindo. Perdemos boa parte de nossas vidas trabalhando incessantemente para... consumir. E produzimos lixo, poluímos, criamos bolsões de miséria e de exploração humana em nome dessa lascívia.
De fato, o grande deus de nossa civilização está se tornando o consumo, que nos tem atirado para uma autofagia desenfreada. Tanto que uma das grandes preocupações dos EUA logo após o 11 de Setembro foi não parar de gastar, já que as pessoas haviam caído num desânimo que não queriam mais sair de casa para comprar. E na crise de 2008, o remédio que os Estados Unidos utilizaram foi justamente o incentivo às vendas. Estava-se usando a própria causa como cura do mal em que se encontravam.
Essa loucura está nos encaminhando para um “colapso econômico global” e os sinais dele há muito já estão sendo dados. Mas parece que não estão sendo captados. Daí talvez a violência (sim, não deixa de ser violência) das ações inspiradas por Zerzan. Chegamos ao ponto de consumir para satisfação sexual. Aquisição de corpos sexuais? Tudo sob medida? Corpo número 2, corpo número 5... Como não percebemos o absurdo em que estamos mergulhados? Comprar um parceiro para o coito?
Os contrassensos apresentados pelo documentário servem, portanto, para que se questionem alguns mitos do mundo moderno, como as ideias de que temos o trunfo do poder de escolha ou de que a tecnologia veio para nos libertar. Poder de escolha? É mesmo escolha? É mesmo poder? A tecnologia vai nos libertar? Ou vai nos escravizar? O pior é que não notamos que, para se ter mais tecnologia, precisamos trabalhar mais. E é justamente essa tecnologia que nos torna mais prisioneiros do trabalho. Precisamos trabalhar mais para trabalhar mais? É isso?
Como não percebemos esse descalabro todo? Talvez a resposta fique mais nítida quando o filme chega à sua metade, no momento em que se mostra Cuba, que não “promove o consumismo” (palavras de Fidel), que garante que todos tenham as necessidades básicas. Em outras palavras, essa ilha seria um paraíso onde não há a miséria que vemos em países capitalistas/consumistas como Brasíl, Índia e até mesmo Estados Unidos. Mas fica uma sensação de que algo não está funcionando adequadamente. Basta notar a empolgação da jovem cubana que esteve na Europa. A maneira caricaturesca com a qual descreveu o nosso mundo foi muito singela: ver televisão, comer, engordar e querer sempre mais, mais. Essa ingenuidade revelou aspectos muito sérios. Primeiro, que os ideais do país em que ela mora não a satisfazem. Segundo, que estamos presos a uma espiral infinita de consumo e insatisfação. O que está acontecendo de errado?
Quando então vemos a cena do discurso de Fidel, com cubanos marchando, salta à vista a metáfora de que todos estão pensando de maneira igual. A mesma lavagem cerebral que as propagandas consumistas fazem. E a aproximação da cena de Castro com a de Steve Ballmer (“I love this company!”) mostra que nós, consumistas ou socialistas, somos cordeirinhos que necessitam orientação. Não temos liberdade.
A visão desses dois lados, comportando-se da mesma maneira, lobotomizados, faz perceber que a questão é mais profunda. E Surplus entendeu, pois mostra Svante, jovem do leste europeu que ficou milionário com investimento em internet. Agora ele tem tudo o que os consumistas mais almejam: muito, mas muito dinheiro para realizar o que aquela jovem cubana mais desejava, assim como todos nós - comprar. Mas vemos que a existência do pobre rico europeu é tediosa. É uma constatação ao mesmo tempo impressionante e simples, pois revela que o consumismo existe para suprir o vazio de nossas vidas. Uma realidade simples. E que faz lembrar o final de “Confidência do Itabirano”, de Drummond: “Mas como dói!”.
Assim, o dom desse documentário está em, apresentando vários pontos de vista, incentivar a liberdade de pensamento para que consigamos desenvolver uma capacidade crítica e fugir da lobotomia, seja a consumista, seja a socialista, para que escapemos do vazio de nossas existências. Se é que somos capazes de tal.

4 comentários:

  1. Acredito que nao existe motivo nenhum pela nossa existencia, quem da um sentido a ela somos nós e basea-la em simplesmente consumir é problematico, mas a sociedade quer nos ensinar o contrario oque cria pessoas vazias, depressivas, viciadas em drogas.
    E o mais preocupante, as crianças sao as mais frageis e sem nenhum tipo de atençao sao bombardeadas pelas propagandas, criando pequenos consumistas que logo serao adultos problematicos.

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  2. Gaia, você apontou aspectos interessantes. Primeiro: concordo com você quanto ao sentido de nossa existência. Aprendi lendo Joseph Campbell que o mais mágico é encantar-se com o fato de estarmos vivos em um mundo espetacular. Esse talvez seja o sentido da vida. E que me faz lembrar o espetáculo que é o filme A Árvore da Vida.
    Segundo: as crianças são as maiores vítimas. Lembro-me de uma cena que me incomodou bastante em Surplus: na abertura da bolsa de Nova Iorque há uma criança pegando no martelo do pregão. Coitada! Já tão novinha e, sem noção, em meio à loucura capitalista.

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  3. Excelente texto, Lau.
    Tempos atrás escrevi um artigo que transcrevo abaixo para fomentar a discussão:

    A sociedade contemporânea e o consumo

    O que consumimos? Para esta pergunta simples, vem à mente uma resposta simples: bens materiais e serviços. Contudo, mesmo sem uma reflexão profunda, é possível concluir que isso não é tudo. Consumimos também tempo, espaço e, principalmente, representações. A representação da perfeição, da beleza, da força, da atuação sobre as possibilidades. Por exemplo: quando um indivíduo compra um carro, além do bem material, ele adquire o domínio sobre a distância e, dependendo do modelo do veículo, status, virilidade etc.
    É fato que na sociedade contemporânea, a felicidade está intrinsicamente ligada ao consumo. Segundo Baudrillard, consumo e felicidade associam-se, principalmente, quando a indústria cultural mostra em suas produções (novelas, propagandas, filmes) personagens realizados porque adquiriram bens materiais. Todavia, quem compra objetos crendo que obterá felicidade e não a encontra, cai em um vazio que só um novo consumo pode preencher.
    Sob este viés, então, as relações mais subjetivas do indivíduo com outros e consigo mesmo são coisificadas. Tudo passa a ser mercadoria. Exemplo elucidativo: uma empresa suíça promete “imortalizar” o ente querido que partiu dessa para uma melhor, cremando o corpo e o transformando em pingente. Clara banalização da morte.
    O filósofo francês Gilles Deleuze classifica a sociedade contemporânea como a sociedade do controle. Afirma que as instituições sociais modernas produzem indivíduos muito mais flexíveis que antes. E com isso cria um paradoxo: o indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas, pois sente a necessidade de aceitação em determinado grupo social (que por apropriação vira nicho mercadológico) e, ao mesmo tempo, a necessidade de diferenciação dentro do próprio grupo. Todavia, a flexibilidade da sociedade de controle é apenas aparente. Mesmo fora do seu local de trabalho, o indivíduo continua a ser intensamente governado pela lógica disciplinar. Há uma vigilância contínua, concretizada, por exemplo, pelas câmeras espalhadas por toda a parte. É possível, por assim dizer, trabalhar sem um horário fixo, mas a necessidade de alcançar a melhor performance impõe um stress constante. Tomamos banho pensando num projeto; ouvimos rádio à noite montando uma apresentação para o dia seguinte. Assim, perpetua-se uma escravidão silenciosa. Herbert Marcuse, pensador da Escola de Frankfurt, sintetizou nossa falta de liberdade: “no capitalismo, não há tempo livre, apenas tempo liberado.”
    A fronteira entre o suplício e o prazer, entre o são e o doentio dilui-se: de um lado um anúncio convida (covardemente) aos deleites de um delicioso chocolate. Do outro, inúmeras revistas estampam corpos perfeitos em suas capas e revelam “receitas” para alcançar tal perfeição.
    Guy Debord descreve a sociedade contemporânea como a sociedade do espetáculo, que substitui o cogito cartesiano “Penso, logo existo!” por “Sou visto, logo existo!”. A mídia, obviamente, é o centro de suas críticas. Mesmo quando se veste de criticidade, é preciso analisá-la com ressalvas, pois, na maioria das vezes, no fundo, ou ela é descritiva ou sensacionalista. E, além disso, é nos meios de comunicação que se propaga o que deve ser consumido. Cientificiza-se o discurso midiático, como nos casos dos cremes de beleza que são testados nos melhores laboratórios, pelos melhores cientistas. Perde-se a credibilidade no vazio discursivo, como se observa na capa de uma revista de circulação nacional: “Chegue com todo gás aos cem anos!”. Cabe a questão: estamos preparados para viver cem anos? Difícil, pois na sociedade contemporânea, a vida do sujeito resume-se à vida “ativa”. E para ser “ativo”, este sujeito precisa trabalhar oito horas por dia (às vezes mais) em um local que muitas vezes não gosta. Como consequência, ele acaba subutilizando sua capacidade crítica, reflexiva e estética e, sem perceber, abre mão da sua humanidade. Vale tamanho sacrifício em prol do consumo?

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    1. Seu texto é muuuuito bom! Interessante! Você usa todas essas ideias nas suas aulas? Deve ser realmente apaixonante!

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