domingo, 12 de fevereiro de 2012

Semana de Arte Moderna: 90 anos depois


Tarsila do Amaral, Abaporu (1928)

13 de fevereiro de 2012: 90 anos da Semana de Arte Moderna, o famoso marco inicial do Modernismo Brasileiro. Tão famoso que foi alçado à condição de mito, com todas as suas consequências. Uma delas é negativa – esse evento passou a ser muito comentado, mas pouco entendido em sua realidade.
Para entender esse grande acontecimento da literatura brasileira, um grande crime – pelo menos para aqueles que curtem curiosidades às vezes fúteis – terá de ser cometido. Assim, muito da aura magnífica dessa manifestação vai ter de ser dispensado. É importante, em primeiro lugar, deixar de lado as excentricidades ocorridas no Teatro Municipal de São Paulo. No fundo elas não ajudam a entender o que de importante foi semeado em nossa cultura até hoje. Além disso, os jovens modernistas (que tinham então por volta de 30 anos) podem, em busca de repercussão, ter orquestrado os ataques que sofreram durante a manifestação. Deve-se também lembrar que não houve um caráter programático ao que fizeram, pois tudo fora organizado meio que às pressas, o que talvez explique o ecletismo e até as contradições. É sabido, por exemplo, que a pianista Guiomar Novaes, uma das participantes, fez severas críticas às músicas apresentadas, principalmente as de Villa-Lobos. Ademais, o fato de esses artistas quererem agitar a acomodada e atrasada burguesia paulistana já denuncia que faziam parte do mesmo contexto que criticavam. A busca desesperada por modernidade era uma das faces do provincianismo.
Entretanto, nem tudo merece depreciação na Semana de 22. A maneira como buscaram atualização mostrou um grande avanço em nossa cultura. Não houve, como se propagou, preocupação em se voltar exclusivamente para a cultura brasileira. Mas ocorreu um salutar equilíbrio. Não mais éramos meros importadores passivos dos padrões europeus, como o Parnasianismo, escola literária até então em voga, intensamente fazia. O que aconteceu foi um balanceamento entre a importação dos valores estéticos europeus (as famosas vanguardas como Expressionismo, Futurismo, Cubismo) e uma preocupação em estudar seriamente a realidade brasileira.
Todo esse avanço iria se cristalizar em 1928 no Abaporu, de Tarsila do Amaral, que está no início deste post. Nele percebemos os traços “deformantes” vanguardistas. E temos também o olhar sobre a realidade brasileira. A começar, “abaporu” quer dizer canibal, o selvagem comedor de gente, um tipo que se consagrou nos primórdios da História do Brasil. Além disso, o cacto é outro elemento muito ligado à nossa identidade cultural, sem mencionar o sol, símbolo de nossa tropicalidade, que é reforçada pelo fato do astro-rei parecer mais uma rodela de laranja ou de abacaxi. Mas o mais interessante é que a realidade nacional não é mais vista de forma idealizada, como se dera no Romantismo. Agora há um olhar bastante crítico. Basta notar que o abaporu tem pés e mãos gigantescos, contrastando com a cabeça, que é diminuta. É uma maneira de representar o brasileiro como um povo de muita ação e pouca reflexão.
O curioso é que esse quadro surge na época em que todo o contexto que dera origem à Semana de Arte Moderna já estava por ser sepultado. As oligarquias que sustentaram esse evento, já em crise por causa das constantes baixas do preço do café, iriam ser solapadas pela República Nova, a grande revolução que instituiu um novo Brasil. Essa obra de Tarsila do Amaral, portanto, ficaria como espólio daquela agitação ocorrida no Teatro Municipal de São Paulo. Uma herança bastante lucrativa, pois se tornou moeda muito usada no pós-22. Em suma, o que se deve ter em mente é que muito mais importante do que a Semana foi a sua herança.
O legado de 22 foi a preocupação, ainda viva atualmente, em estudar seriamente a identidade brasileira. É o que se vê em Pau-Brasil (1924), livro em que Oswald de Andrade manifestava a preocupação em apresentar o que era típico da cultura brasileira para exportar para a Europa. É o que nota também em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade, monumento literário que narra a vida de um herói amoral, imoral, malandro, preguiçoso e lascivo, uma pretensa representação do caráter nacional. É o que se observa ainda no “Manifesto Antropófago” (1928), de Oswald de Andrade, talvez o mais importante elemento de todo esse grupo.
Para o grande iconoclasta paulista, a cultura brasileira não havia nascido com a Carta de Pero Vaz Caminha, de 1º de maio de 1500. Nosso surgimento como nação se dera 56 anos depois, quando da devoração do Bispo Sardinha pelos caetés. Na verdade, o que Oswald de Andrade propunha era uma alegoria muito válida. Quando o selvagem comeu o religioso europeu, ele nos ensinou, primeiro, que sempre há utilidade no elemento estrangeiro e que este, ao ser engolido, será incorporado – se nutritivo – ao organismo. Por fim, a deglutição do forasteiro não fez com que o antropófago deixasse de ser o que sempre foi. Em outras palavras, a cultura brasileira se caracteriza em aproveitar o que há de útil no estrangeiro, o que não necessariamente implica a perda de nossa identidade.
Esse dom nacional pode ser encontrado em vários exemplos. Encontramo-lo quando Tom Jobim, João Gilberto e Vinicius de Moraes incorporaram o cool jazz ao samba, criando a Bossa Nova, que fez muito crítico caturro torcer o nariz. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura. Vemo-lo na Tropicália, em que Caetano Veloso surge tocando guitarra elétrica – instrumento tipicamente estadunidense – em um festival de música popular brasileira, o que fora considerado um acinte para os tradicionalistas. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura. Enxergamo-lo quando o funk fora importado dos Estados Unidos e, digerido, se tornara tão brasileiro que passou a ser exportado. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura. Detectamo-lo no momento em que o sertanejo se misturara ao country, passando pouco depois a ser divulgado lá fora, como atesta o famigerado hit de Michel Teló. Hoje ninguém mais estranha esse elemento em nossa cultura.
 Assim, deve-se repetir, a grande importância da Semana de Arte Moderna foi o seu legado, que está na constante incorporação para constante reinvenção cultural. Parodiando o estudioso Alfredo Bosi (História Concisa da Literatura Brasileira), que disse que o Modernismo está sempre se modificando, deve-se dizer que o que esse movimento nos trouxe é o fato de a identidade brasileira também estar sempre se transformando. Isso talvez não seja novidade, mas a consciência dessa qualidade nos dá um lugar especial no contexto mundial.


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