domingo, 5 de fevereiro de 2012

O Despertar da Consciência - Luísa, Canadá; Vítor, Rio


William Hunt, O Despertar da Consciência (1853).


Um quadro de William Hunt, de 1853, parece tornar-se bastante atual e oportuno: O Despertar da Consciência. Ele retrata a situação de uma manteúda, ou seja, mulher sustentada por um homem com quem não é casada. Isso pode ser visto na pintura por muitos detalhes: a jovem tem vários anéis, mas nenhum na mão que indica matrimônio; a cartola sobre a mesa, à esquerda, aponta que ele é visitante naquela casa que patrocina; ela está com uma saia rendada que na verdade é roupa íntima – uma combinação – junto de um homem de roupa social.
Entretanto, o mais importante nessa obra não está na apresentação do seu momento presente. De fato, a situação da moça é de conforto (note a decoração caprichosa da casa), prazer (observe a roupa íntima e o ambiente privado) e alegria (basta ver o piano). Mas tudo isso ela adquire por ser objeto sexual do cavalheiro – essa conotação sensual está na intensa utilização de vermelho na composição. É uma condição cômoda, mas precária, o que indicam o desfiado do tapete no canto inferior direito, a luva largada no chão – um alerta sobre a condição descartável da jovem – e o gato brincando com o passarinho à esquerda, abaixo da mesa – uma repetição da cena central.
A grande mensagem do quadro está na luz, que se percebe no rosto da moça e que vem de fora, como se comprova no espelho atrás dela. É o mesmo brilho que recai sobre o desfiado do tapete. O recado: a pobre mulher precisa sair dessa situação periclitante. E o primeiro passo já foi dado, como se percebe na expressão enlevada da amante, bem diferente da do homem, completa e mesquinhamente alheio ao momento especial. Até a postura da adúltera é importante de ser notada – ela está se elevando, se libertando. E seu parceiro não é capaz de detê-la: o braço direito dele está esticado, mas não prende. Como o gato, que estende a pata direita, mas não detém sua presa. A manteúda está saindo da caverna atraída pela luz. Conscientizou-se.
Há poucas semanas um meme tomou conta das redes sociais: “menos Luísa, que está no Canadá”. A razão desse sucesso está no caráter despropositado da frase em meio a uma propaganda de empreendimento imobiliário paraibano. A começar, por que um colunista social e sua família em uma peça publicitária? Que sociedade os responsáveis pelo comercial imaginaram que seria o alvo do texto? Que público seria tão suscetível a um argumento tão pífio? O fato de se estar nas colunas sociais é sinônimo de credibilidade? Além disso, por que simplesmente não se disse “menos Luísa, que está viajando”? A frase que foi ao ar revelou um esnobismo (espero que involuntário) provinciano, o mesmo que se encontra em setores da famigerada elite paulista. Enfim, a notoriedade da frase se deveu ao seu caráter ridículo, termo aqui usado no seu sentido primordial: qualidade do que provoca riso.
Enquanto o sucesso se manteve no campo jocoso, parecia inofensivo. Tudo começou a degringolar quando a Luísa em pessoa foi entrevistada pelo Jornal Hoje, da Rede Globo. Entretanto, só Carlos Nascimento, do Jornal do SBT, é que conseguiu enxergar o descalabro. Todavia, sua crítica, pedindo mais seriedade ao brasileiro, chegou a ser considerada mau humor. Mas ele foi a Cassandra de nossas mídias. Seu vaticínio se concretizou, expondo a nossa precariedade cultural. Circularam informações de que, graças à celebridade, a garota começou a receber R$ 15.000,00 por evento em que aparecia. Talvez não seja verdade. Mas o pior foi ela ser tema de questão de um concurso público de Jaboticabal. É importante selecionar candidatos com domínio de conhecimentos gerais (política, geografia, arte, história, economia), pois tais ajudam em muito na eficiência de um trabalhador. Entretanto, o que o conhecimento do meme “menos Luísa, que está no Canadá” revelaria de competência profissional?
Em 02 de fevereiro, Vítor Suarez Cunha foi espancado no Rio de Janeiro porque defendeu um mendigo que estava sendo surrado por seis jovens, pelo menos três deles da classe média. O rapaz teve afundamento de crânio, de um dos ossos da face e vários dentes quebrados, o que o obrigou a se submeter a cirurgia plástica. Agravante: um dos espancadores disse que não queria que o seu pai, que costumava fazer caminhadas, se visse obrigado a passar por cima do mendigo. A solução simples? Espancar o “obstáculo”. Parece haver aqui a mesma lógica, estranha, dos jovens de Brasília que queimaram um índio porque o confundiram com um morador de rua; ou dos jovens do Rio de Janeiro que espancaram uma doméstica porque acharam que ela fosse uma prostituta.
Mendigos e prostitutas podem ser violentados simplesmente por serem mendigos e prostitutas?
O triste nisso tudo é que Vítor Cunha, que saiu em defesa de um ideal nobre e justo, colocando até sua integridade física em risco, não virou meme. O que se falou dele nas redes sociais? Será que ele esteve nos TT do Twitter?
Comparando-se Vítor com Luísa, que lógica pode ser inferida? Note-se essa relação: o Canadá, país com fama de civilizado, acabou associado a Luísa, protagonista de um fenômeno que revelou nosso comportamento provinciano; o Rio, cidade com fama de barbárie, acabou associado a Vítor, exemplo de integridade e cidadania. Entretanto, qual dos exemplos fez sucesso?
Voltemos então a O Despertar da Consciência. Os dois episódios, aparentemente tão díspares, encaixam-se na mensagem passada pelo quadro. Sem dúvida, é mais fácil, cômodo e aparentemente prazeroso entregar-se a um comportamento sedutor e igualmente vazio. Tanto que é o que faz sucesso nas redes sociais. Aparentemente, não há nada de nocivo nisso. É uma situação cômoda, mas precária. Precária porque o fato de esse tipo de acontecimento ganhar mais espaço do que exemplos dignos de ética e cidadania revela que nossos valores humanos estão degradados. Há que se ter um esforço em se levantar, libertar-se, ainda que solitariamente. Sair da caverna graças à atração pela luz. Conscientizar-se.



10 comentários:

  1. Gostei muito do texto, foi uma ótima leitura. Parabéns!

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  2. É ótimo receber um elogio de alguém que, assim como Luísa, esteve no Canadá.

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  3. Parece que ficar na caverna, inconsciente, ainda é mais confortável,seguro. Fico indignada com fatos iguais aos citados, mas não consigo sair da caverna e enfrentar a luz da consciência,da responsabilidade. E percebo no dia a dia que o que sinto é constante entre as pessoas proximas. O que aconteceu com Vitor,e outros,fica como as sombras fantasmagó ricas do medo que paraliza dentro da caverna...

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  4. Muito bem observado, Deht. Suas palavras ficam fazendo eco em minha mente. É constante essa posição de conforto. Lembro-me de uma crônica, acho que de Cecília Meireles, em que se dizia "A gente não devia, mas se acostuma..."

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  5. Poxa, obrigado, meu caro. Continue lendo, toda quarta e todo sábado.

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