quarta-feira, 23 de outubro de 2013

ENEM: algumas orientações


No próximo final de semana ocorre mais uma edição do ENEM, prova que, apesar dos tropeços dos últimos tempos, conseguiu ganhar importância no universo dos vestibulandos.  Infelizmente, de um valioso termômetro do nível de ensino do País, transformou-se em um gigantesco vestibular, além de ferramenta de marketing de inúmeras utilidades. Entretanto, é mais útil discutir o que o examinando precisa ter em mente neste domingo na prova de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias.
O ENEM é uma prova que avalia competências e habilidades (o que não significa que não tenha vez por um outra um lado conteudista). Assim, o que o candidato precisa demonstrar é sua capacidade de leitura e interpretação de diferentes tipos de texto, a matéria-prima da prova. Dessa forma, é importante reconhecer e entender diferentes modalidades textuais e captar como elas funcionam socialmente.  Assim, deve-se entender, por exemplo, que um cartaz apresenta concisão e ligação entre imagem e código verbal em nome da comunicação imediata, ou que um editorial apresenta elementos argumentativos, que uma propaganda tem preocupação em fixar a mensagem na mente no leitor.
Além disso, o candidato deve saber relacionar diversas espécies de texto, verbais ou imagéticos, buscando não apenas semelhanças, mas também diferenças. Ou então reconhecer neles quais são os objetivos do seu autor e a que público se dirige. Num romance de José de Alencar, por exemplo, a descrição idealizada pode servir para revelar que o escritor ou queria sofisticar o seu leitor, ou tinha em mente que quem degustava sua obra era preocupado com ostentação de luxo. Por fim, deve-se também detectar que estratégias um texto possui para influenciar o seu receptor. Basta lembrar que é comum propagandas de cerveja sempre apresentarem gente feliz degustando o produto, dando a entender que se trataria de um vital elixir da bem-aventurança.
No fundo, o que o candidato vai ter de captar são os mecanismos de funcionamento de um texto, perceber que palavras servem para conectar ou retomar ideias, quais termos têm o dom de resumir ou simbolizar pensamentos ou conjunto de valores. Assim, é de vital importância saber detectar a função da linguagem predominante - quando em Memórias Póstumas de Brás Cubas o narrador confessa no primeiro capítulo que por um bom tempo hesitou se começava sua biografia pelo nascimento ou pela morte, ele fez com que a narrativa discorresse sobre ela mesma, o que configura a função metalinguística. Ou então notar como a linguagem pode se usada     para fazer com que o leitor preste atenção à sua construção, configurando a função poética, muito bem vista, por exemplo, no largo emprego de proparoxítonas em "Balada do Mangue", de Vinicius de Moraes, servindo para representar a situação anormal e canhestra de a feminilidade ser usada para prostituição. Além disso, o aluno pode ser instigado a reconhecer a capacidade que os textos têm de preservar nossa identidade e nosso patrimônio cultural. É o que se vê, por exemplo, no poema "Não Sei Dançar", de Manuel Bandeira, ou no romance Amar, Verbo Intransitivo, de Mário Andrade, em que se apresenta o corso: em ambos descreve-se como se festejava o Carnaval em tempos passados, no salão ou no corso.


Quadro de Portinari retratando a zona de prostituição do Mangue no Rio de Janeiro.

Ainda nesse escopo, quem vai prestar ENEM precisa levar em consideração que a língua é um instrumento social e, portanto, suscetível a variações ligadas ao contexto em que é utilizada. Logo, não existe um padrão único, mas vários, que são os níveis de linguagem, todos legítimos, cabendo apenas observar em que situações são adequados. Deve-se então aceitar que a publicidade, entre tantos outros gêneros, utiliza linguagem coloquial para garantir maior alcance à sua mensagem. O que não significa que o padrão culto perdeu sua utilidade: há momentos em que ele é vital, como na documentação científica ou na redação de regulamentos.
Com relação ao corpo, não se deve esquecer que ele é capaz de carregar e transmitir significados, promovendo a criação de identidade, a integração social e a satisfação de necessidades cotidianas. Quando se dança, por exemplo, pode haver uma preocupação em seduzir, divertir, assim como quando se pratica esporte pode estar-se buscando conhecer pessoas ou mesmo competir e garantir a primazia dentro de um grupo social.
O ENEM cobra também a análise da arte em suas múltiplas manifestações, todas  legítimas, não importando se é um quadro de Cézanne, um concerto de Bach, um grafite nos muros de São Paulo ou o funk erotizado e marginal dos morros do Rio de Janeiro ou de ostentação da periferia de São Paulo. Seguindo essa linha, é vital entender que o conceito de beleza, essencial para a manifestação artística, não é universal, pois é um fenômeno cultural e, portanto, relativo: tanto é bela uma top model como Gisele Bündchen quanto uma miss plus size ou mesmo uma mulher de pescoço de girafa da Tailândia.


Mulher com pescoço de girafa da Tailândia.

Dentro do campo artístico, atenção especial deve ser dada à literatura. É importante perceber que esse tipo de produção está sempre inserido em seu momento e por isso revela características do seu contexto histórico, social e político. Assim, deve-se lembrar, por exemplo, que o Romantismo, surgido 14 anos após a independência do Brasil, acaba naturalmente expressando ideais nacionalistas. Ou que o Primeiro Tempo Modernista, surgido numa época em que a industrialização de São Paulo já estava se mostrando marcante, acabaria tendo tendências futuristas. Mas é importante notar dentro dos textos literários quais concepções de sua função ou do processo de construção eles apresentam: um romântico acreditaria que sua arte é essencialmente emoção e, se a obra conseguiu tocar o coração do leitor, já cumpriu sua função estética, sem que haja preocupação com a forma, o que é o oposto da visão parnasiana, que põe em primeiro plano o artesanato da palavra, ou do Realismo, que privilegia a crítica social. Além disso, é necessário lembrar que certos temas não se prendem a uma escola literária: a valorização da cultura popular, por exemplo, pode ser vista no Romantismo e no Modernismo, assim como o endeusamento da mulher está presente no Trovadorismo, no Classicismo, no Romantismo e no Modernismo de Vinicius de Moraes.
Por fim, o candidato precisa estar antenado às novas tecnologias, sabendo identificá-las, além de mostrar-se capaz de entender seu funcionamento e o impacto social que elas provocam na comunicação e na difusão de conhecimento. De fato, a internet tem servido para que ideias circulassem de maneira espantosa, não apenas nas redes sociais, em que pessoas trocam informações, opiniões e conhecimento, mas também por meio de comunicadores instantâneos (síncronos) ou por e-mail e fóruns (assíncronos). Basta lembrar como as manifestações de rua do semestre passado foram alimentadas pelo Twitter e Facebook. Ou então como o contato com arte e entretenimento ganhou novas dimensões, pois a qualquer hora é possível ver um programa de 2013 ou de 1969 pelo Youtube ou Netflix. Livros podem ser lidos em pdf, músicas ouvidas em mp3, o que faz a produção intelectual alcançar um nível antes imaginável, ao mesmo tempo em que questões como direitos autorais passam a ser repensadas.
Em suma, a proposta do ENEM, apesar dos tropeços que o arranharam, é muito bem intencionada: avaliar o aluno dotado de competência linguística, aquela que será, pois, um profissional e um cidadão eficiente. Resta então aO Magriço Cibernético desejar que seus leitores tenham um excelente desempenho neste final de semana. Boa prova a todos!

domingo, 20 de outubro de 2013

My Shoes: a delicada construção de um texto

Em vários momentos aqui nO Magriço Cibernético foi dito que um texto é mais do que um amontoado de palavras e frases. É necessário que esses elementos estabeleçam ligação entre si, formando um conjunto coeso e coerente. É esse requisito que garantirá o seu sentido. Em outras palavras, para poder captar o significado de um texto, é preciso prestar atenção às relações que seus ingredientes estabelecem entre si. Não se deve, portanto, olhar para um só ponto e a partir apenas dele supor que se obterá a chave para desvendar o conjunto em que está inserido. Fazer isso é mostrar-se inábil em leitura e interpretação.
O texto acima (e vídeo não deixa de ser um) é exemplo do que se está afirmando. Trata-se de um trabalho que Nima Raoofi fez para o seu curso no MAPS Film School e que acabou se tornando viral. Nele, percebemos o quão importante é a relação de elementos para a composição de sentido. Sua história é bastante simples e tem como tema a inveja, vista de maneira negativa. Apresenta, portanto, uma moral que ataca quem reclama das condições de vida em que se encontra, sem valorizar as dádivas que já possui. Valorize o que você tem, não se preocupe com os outros.
Entretanto, para a discussão que está sendo desenvolvida aqui, é interessante notar uma questão bastante delicada: qual o tom do texto de Nima Raoofi? Ele tem um final inesperado, que subverte as expectativas que vinham sendo montadas (apesar do fato de que algumas pistas já mostradas desde o início já serem capazes de tornar o desfecho previsível), o que aproximaria sua estrutura de um texto humorístico, como uma piada. Mas não seria estranho fazer graça a partir de um defeito físico? Ou estaríamos diante de um caso de humor negro?
 Nenhuma das possibilidades apresentadas acima sustentaria uma análise eficiente, justamente por ignorar o conjunto. Para tanto, basta observar, por exemplo, a música que toca por toda a peça, um piano bastante comovente, que se mostra coerente com a frágil beleza do tema da infância. Não é comovente a fantasiosa conversa que o menino pobre faz entre os seus dois tênis velhos e surrados? Tudo isso desautorizaria a ideia de que se está lidando com humor negro.
Na verdade, My Shoes integra o volumoso time dos textos que apresentam elementos do cômico, mas que não o são. Podem até ser entendidos como tragicômicos, mas nunca como peças de humor. Vemo-lo, por exemplo, em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, em que testemunhamos a sucessão de desgraças que compõe a vida de personagens como D. Felicidade, mulher de mais de quarenta anos e virgem – toda afeição para quem ela havia se dedicado nunca dera fruto. Ou mesmo Juliana, que gastara sua existência dedicando-se a patroas de boa vida e ilimitada ingratidão. Ou ainda em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assim, em que encontramos D. Plácida e sua vida que se resumia apenas a um acúmulo de misérias e decepções. E por que nenhum desses quatro exemplos pode ser entendido como texto humorístico? Justamente porque o contexto em que estão inseridos não o permite. Todavia, nada impede que esses mesmos elementos, colocados em outro conjunto, em outra combinação de signos, serviriam para produzir como resultado a comédia.
A lição que mais uma vez e sempre se tira de tudo o que foi abordado aqui é que a leitura eficiente tem como condição essencial a atenção a todos os elementos que compõem um texto, sem que um ingrediente, por mais interessante que seja, se sobressaia ao outros.


Resumos, análises e comparações
dos livros da
FUVEST-UNICAMP 2014