domingo, 20 de outubro de 2013

My Shoes: a delicada construção de um texto

Em vários momentos aqui nO Magriço Cibernético foi dito que um texto é mais do que um amontoado de palavras e frases. É necessário que esses elementos estabeleçam ligação entre si, formando um conjunto coeso e coerente. É esse requisito que garantirá o seu sentido. Em outras palavras, para poder captar o significado de um texto, é preciso prestar atenção às relações que seus ingredientes estabelecem entre si. Não se deve, portanto, olhar para um só ponto e a partir apenas dele supor que se obterá a chave para desvendar o conjunto em que está inserido. Fazer isso é mostrar-se inábil em leitura e interpretação.
O texto acima (e vídeo não deixa de ser um) é exemplo do que se está afirmando. Trata-se de um trabalho que Nima Raoofi fez para o seu curso no MAPS Film School e que acabou se tornando viral. Nele, percebemos o quão importante é a relação de elementos para a composição de sentido. Sua história é bastante simples e tem como tema a inveja, vista de maneira negativa. Apresenta, portanto, uma moral que ataca quem reclama das condições de vida em que se encontra, sem valorizar as dádivas que já possui. Valorize o que você tem, não se preocupe com os outros.
Entretanto, para a discussão que está sendo desenvolvida aqui, é interessante notar uma questão bastante delicada: qual o tom do texto de Nima Raoofi? Ele tem um final inesperado, que subverte as expectativas que vinham sendo montadas (apesar do fato de que algumas pistas já mostradas desde o início já serem capazes de tornar o desfecho previsível), o que aproximaria sua estrutura de um texto humorístico, como uma piada. Mas não seria estranho fazer graça a partir de um defeito físico? Ou estaríamos diante de um caso de humor negro?
 Nenhuma das possibilidades apresentadas acima sustentaria uma análise eficiente, justamente por ignorar o conjunto. Para tanto, basta observar, por exemplo, a música que toca por toda a peça, um piano bastante comovente, que se mostra coerente com a frágil beleza do tema da infância. Não é comovente a fantasiosa conversa que o menino pobre faz entre os seus dois tênis velhos e surrados? Tudo isso desautorizaria a ideia de que se está lidando com humor negro.
Na verdade, My Shoes integra o volumoso time dos textos que apresentam elementos do cômico, mas que não o são. Podem até ser entendidos como tragicômicos, mas nunca como peças de humor. Vemo-lo, por exemplo, em O Primo Basílio, de Eça de Queirós, em que testemunhamos a sucessão de desgraças que compõe a vida de personagens como D. Felicidade, mulher de mais de quarenta anos e virgem – toda afeição para quem ela havia se dedicado nunca dera fruto. Ou mesmo Juliana, que gastara sua existência dedicando-se a patroas de boa vida e ilimitada ingratidão. Ou ainda em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assim, em que encontramos D. Plácida e sua vida que se resumia apenas a um acúmulo de misérias e decepções. E por que nenhum desses quatro exemplos pode ser entendido como texto humorístico? Justamente porque o contexto em que estão inseridos não o permite. Todavia, nada impede que esses mesmos elementos, colocados em outro conjunto, em outra combinação de signos, serviriam para produzir como resultado a comédia.
A lição que mais uma vez e sempre se tira de tudo o que foi abordado aqui é que a leitura eficiente tem como condição essencial a atenção a todos os elementos que compõem um texto, sem que um ingrediente, por mais interessante que seja, se sobressaia ao outros.


Resumos, análises e comparações
dos livros da
FUVEST-UNICAMP 2014

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