domingo, 13 de abril de 2014

Publicidade acusada de racismo: problemas na articulação interna e externa do texto

Muitas vezes já se falou nO Magriço Cibernético que todo texto é composto pela articulação de ideias, que se dá tanto interna quanto externamente. Ignorar essas condições é abrir caminho para erros de interpretação. Trata-se de uma questão simples, mas teimosamente ignorada, o que acaba, de maneira paradoxal, tornando-a complexa. Um exemplo dessa problemática é a publicidade do vereador soteropolitano Marcell Moraes (PV), vista na imagem acima.
Na peça em questão, que tem a intenção de fazer prestação de contas ao eleitor, menciona-se a aprovação de um projeto, de autoria do edil, contra maus tratos aos animais. Há ainda a mensagem de que eles são como nós, seres humanos, e, subentende-se, por isso merecem respeito e bem-estar. Tudo dentro do politicamente correto. Entretanto, a celeuma foi levantada pelo fato de se utilizar uma comparação: um homem negro e um cachorro escuro, ambos fazendo os mesmos gestos – língua de fora e olhar animado e fixo para frente. Comparação simpática e de boas intenções: o cão é elevado ao nível do homem, a afetividade da cena (amamos bichos de estimação) dá valor positivo à campanha, e acaba também se transferindo para a figura humana da foto. Esses eram os elementos que deveriam entrar em ação na articulação do texto e produção de sentido.
Entretanto, o outdoor colocou em cena um elemento marcado socialmente por questões polêmicas: o negro. Houve quem entendesse que a propaganda era discriminatória, pois rebaixava o afrodescendente a um cachorro, ainda mais escuro. Começaram então a fazer uma ligação de ideias que não estava autorizada no texto. Em outras palavras: praticou-se erro de leitura. Bastaria manter em mente que se trata de uma peça de valores positivos e que, portanto, não faria sentido mostrar ideais socialmente corretos por meio de um preconceito. Além disso, a frase da campanha é “Animais são como você”, o que não indica necessariamente rebaixamento, como poderia indicar a oração “Você é como animal”. Poderia.
Todavia, para atender à sanha daqueles que buscam elementos externos para a interpretação de textos, e desabonar as críticas levantadas contra o vereador, bastaria apresentar mais outros dois outdoors da mesma campanha:



A mesma mensagem, personagens diferentes... e nenhuma grita. Por que essa discriminação? Qual a diferença entre essas duas propagandas e a primeira, tão difamada? A única modificação é a presença de um homem negro. Então, para se evitar polêmica, bastaria não utilizar indivíduos desse grupo étnico? E se isso ocorresse, não se tornaria possível então a crítica de que essa grande porção de nossa população não estaria sendo representada?
O que parece estar acontecendo é que a nossa sociedade acordou contra injustiças sociais, o que a faz dar voz e ouvidos às críticas contra o preconceito de qualquer espécie. Esse é um fato bastante louvável e necessário, porque, apesar do muito que avançamos, parece que ainda é pouco, pois o racismo (entre outras formas de discriminação) ainda está presente no nosso meio (basta, a título de “degustação”, dar uma conferida na valiosa página Combate Racismo Ambiental: http://racismoambiental.net.br/tag/crime/), respingando por toda parte, conforme ficamos sabendo pelos noticiários: juízes e jogadores de futebol, estudantes universitários, porteiros, professores. Enfim, lutar contra essas aberrações morais é até obrigação de quem se considera cidadão. Entretanto, há que se ter critério para não se praticar extrapolações interpretativas.
Talvez esses erros de leitura sejam fruto do fator “gato escaldado”. Cansados que estamos de injustiças, despertamos uma reação virulenta contra aquilo que de longe pode parecer um ataque ao respeito ao próximo. E paradoxalmente corremos o risco de nos tornar tão monstruosos quanto aquilo contra o qual lutamos. Ou então tenha virado moda fazer a torto e direito um discurso crítico negativo para se passar uma imagem de maturidade e consciência político-social. Isso seria mais triste.



 Resumos, análises e comparações.
Para comprar o seu,

7 comentários:

  1. Amigo Magriço,

    chamo a atenção para a linguagem visual. O anúncio é mais do que texto. É imagem também. Um dos alvos da luta dos movimentos negros é justamente a questão da imagem. O segundo anúncio, onde não há negros poderia ser alvo de críticas justamente por isso: não apresentar o negro. Duvido muito que os criadores do anúncio em que aparece o menino negro tivessem a intenção de qualquer tipo de mensagem racista subliminar. Arriscaria até afirmar que sejam anti-racistas. Mas entendo que a questão é outra: a do racismo culturalmente instalado. Somos muitas vezes preconceituosos por formação, não por intenção. Muitas vezes, as críticas a anúncios publicitários são exageradas. Mas acabam por dar algum resultado: os criadores, alvos das críticas, passam a ser mais cautelosos. Palpiteiro por condição e opção, digo que os carinhas que fizeram essa campanha terão mais cuidados ao longo de suas carreiras. Jamais deixarão de pensar nesse contexto. Assim, as críticas cumpriram seu papel. Atribuir erro de leitura me parece exagero. Há muito mais sobre tudo o que se escreve e se lê.

    Grande e respeitoso abraço.

    o palpiteiro

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo com suas afirmações, palpiteiro. A minha preocupação (e talvez isso seja ingenuidade minha) é que uma leitura seja feita sem o que chamei de "fator gato escaldado": a campanha, mesmo não sendo preconceituosa, tocou em feridas que, como você bem disse, mostram que há um preconceito instalado em nossa formação. O problema não está no texto iconográfico (imagem + palavra), mas nos valores que são atribuídos a ele. Sei que muitos textos, os literários, por exemplo, sobrevivem de valores que atribuímos a eles. Mas tudo tem que estar articulado, de maneira a cada parte somar um todo significativo. Do contrário, haverá extrapolação interpretativa. Na propaganda em questão, ou cada parte tinha uma valoração positiva (o que defendo), ou uma única parte comprometeu o conjunto (o que não defendo). Repito: a solução é não usar negro para evitar polêmica? Sonho com um mundo em que esse tipo de leitura não seja mais feito. Ou gostaria de ver esses criadores batendo o pé e argumentando, insistindo que não houve preconceito, ao invés de colocarem o rabo entre as pernas não por questões éticas, mas por preocupação com repercussão social ou econômica.
      Obrigado por participar da discussão!

      Excluir
  2. A interpretação racista com certeza vem de uma "mente racista". Por exemplo uma criança jamais interpretaria de tal forma. Alguns se encontram como alvos de racismo que nem existe.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Meu medo, LH, é que entre as coisas que perdemos quando crescemos é uma mente livre de preconceitos.

      Excluir
  3. Livre de preconceito?Eu nasci e o preconceito já existia,pois os meus ancestrais negros foram massacrados por 4 séculos.Assisto televisão,compro milhares de produtos de higiene e alimentícios e não me sinto representada por nenhum em seus rótulos é como se os produtos fossem destinados apenas para pessoas brancas.O meu filho tem 1 ano e 4 meses e usa fraldas descartáveis e sempre que ver um bebe branco na fralda diz:nenê.E quando eu mostrei um bebe negro em outra fralda ele estranhou,sendo que ele é negro. Todo dia ele e milhares de crianças negras são bombardeadas de propagadas onde bebes branquinhos são protagonistas.NÃO subestime a capacidade das crianças não interpretarem.Como diz Nelson Mandela ninguem nasce odiando outra pessoa pela cor da pele,ou por sua origem,ou ainda por sua religião.Para odiar as pessoas precisam aprender...Eu falo dessa aprendizagem silenciosa.A publicidade brasileira é racista vá ao supermercado e traga algum produto que tenha representação negra de forma POSITIVA.Sem ser associado há empregada,mulher gostosa ou babá.

    ResponderExcluir
  4. Você falou tanto sobre interpretação textual em defesa de um não racismo que foi "quase" uma aula. Só que essa retórica é a ferramenta de advogados e políticos no Brasil. Se fizesse uma leitura imagética/cromática/iconológica/semiótica veria que os cartazes que apresentam pessoas brancas tem um ar contemporâneo, em tons de verde e amarelo (acho que nem preciso mencionar a relação com as cores da bandeira não é?) bem de acordo com o atual ufanismo nacionalista. A menina é a "gatinha" loura, o rapaz é ultramodernoso com seu cabelo mais do que atual, já o negro, ao lado de um cão preto (chega a saltar aos olhos aqui a intenção de aproximação com o arquétipo do animal de mau agouro, coisa que na mitologia de inúmeras culturas o cão preto representa e está no inconsciente coletivo) está vestido com camisa de botão fechada até o pescoço, de tonalidade ocre, usando suspensórios e a cor de fundo é opaca (ou seja, TUDO ali remete ao passado, ao que não é moderno, ao melancólico e ao soturno). Sugiro que antes de fazer uma defesa meramente textual, pense que a publicidade fala por outras linguagens, principalmente a iconográfica, ativando outros sentidos além do explicitamente racional. Para concluir, é sabido que o vereador tem histórico de rusgas com o movimento negro e mais um detalhe que parece que convenientemente os defensores dele tem esquecido: lembre-se que o alvo da campanha são as casas de terreiro, ou seja as religiões de origem africana. That's all folks.

    ResponderExcluir