quarta-feira, 1 de maio de 2013

"Meninos e Meninas": O Português Errado


Há um trecho interessante (entre tantos) de “Meninos e Meninas”, do álbum As Quatro Estações (1989), do Legião Urbana: “Eu canto em português errado (...) / Troco as pessoas / Troco os pronomes”. De fato, nessa composição o interlocutor é tratado pela segunda pessoa (“Te fiz comida, velei teu sono / Fui teu amigo, te levei comigo / E me diz (...)”, “Me deixa ver como viver é bom”, “Acho que te amava, agora acho que te odeio” ) e também pela terceira (“Você me deixou sentindo tanto frio”, “Você não quis tentar me ajudar”), o que constitui cruzamento de pessoas. Entretanto, não se trata do que é comumente rotulado de “português errado”.
A língua é um ato humano e como tal está sujeita a variações, todas legítimas. Na verdade, o que se diz português correto, o bom português, o mais apegado às normas gramaticais, é apenas uma entra tantas variedades. A mais prestigiada, é verdade, já que associada à classe alta. Curiosamente, nem esse estrato social sabe usá-la perfeitamente. Constantemente vemos pessoas bem conceituadas cultural e economicamente falarem “a gente” ao invés de “nós”, “vou fazer” ao invés de “farei”, “o livro que gosto” ao invés de “o livro de que gosto” ou até mesmo esquecendo de vez em quando o “s” que marca o plural.  
O mais importante, entretanto, não é se preocupar em corrigir desvios da norma culta, mas ter em mente que a linguagem, como uma manifestação humana (nunca é demais repetir), é uma atividade social e, portanto, apresenta formas de adequação. Assim, em uma entrevista de emprego, por exemplo, é apropriado manter-se o mais próximo do padrão gramatical, evitando marcas de coloquialidade. O que não quer dizer que esse padrão é sempre válido. Basta lembrar uma antiga propaganda que o Ministério da Saúde espalhou em outdoors pelos idos dos anos de 1990: “Se você não se cuidar, a AIDS vai te pegar”. Qualquer “correção” faria a mensagem fracassar, pois não seria tão eficiente na sua comunicação direta com o grande público. Compare e pasme: “Se tu não te cuidares, a AIDS pegar-te-á”; “Se você não se cuidar, a AIDS pegá-lo-á”.
Enfim, se existe um bom português, esse será aquele em que a competência da comunicação se manifesta, atentando-se, portanto, à adequação de contexto. Assim, uma pessoal que usa linguagem formal em conversa de boteco soaria pedante, da mesma maneira que o uso de gírias e coloquialismos soaria desrespeitoso diante de autoridades.


Literatura da FUVEST-UNICAMP 2014
Resumos, análises e comparações
Para comprar, clique aqui.

4 comentários:

  1. Se voce for levar em conta os lugares onde é necessario utilizar a norma culta, com certeza voce sera obrigado a usa-la. Se for num grupo de amigos e tentar usar da norma padrao será vexado.
    Como a musica é um movimento que preza alcançar todas as camadas populares, ela em si nao deve ter muitos modismos , senao nao fará o papel que a ela foi imposto.
    A lingua padrao é bonita, mas devemos ficar atentos onde devemos emprega-la

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Concordo com suas observações. O mais importante a observar é a questão da adequação!

      Excluir
  2. Entre os 11 tipos de gramática que eu tenho estudado (muito!), acredito que a gramática internalizada é a mais justa e abrangente. Não se trata de certo e errado, mas, sim, de adequado e inadequado. Por exemplo, dizer "então o velho bateu as botas?" no enterro do pai do amigo é inadequado, pois a mensagem pode ser mal interpretada, pode sugerir gozação (caso a intenção não seja justamente essa, claro). A mesma frase, dita pelo Datena enquanto dá a notícia da morte de um assassino, traficante, estuprador, é adequada, já que o morto não desperta qualquer respeito em nenhum dos telespectadores.
    A norma culta deve ser utilizada quando a situação exige. A norma culta tenta impedir que a língua mude; mas uma língua que não muda é uma língua morta. A gramática tradicional despreza todas as variedades diferentes da padrão, e oferece uma visão parcial e preconceituosa da língua, pois, como vc disse, se baseia em fatores ligados às classes sociais de prestígio.
    Surgiu para ajudar os falantes a entenderem a língua que falam, mas acaba dizendo a todos que eles não conhecem seu próprio idioma.
    #ChupaPasquale
    #AquiÉBechara

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Que orgulho que me dá ler os seus textos! Pensar que você já foi minha aluna!

      Excluir