domingo, 14 de abril de 2013

O Diabo Veste Prada e Sex and the City: As Artimanhas da Ideologia

Miranda Priestly (Meryl Streep) em O Diabo Veste Prada

No post passado, vimos que muitas vezes afirmamos ideias que cremos como verdadeiras, mas que no fundo não têm embasamento, pois são fruto do que se entende por ideologia. Hoje veremos a maneira curiosa como esse fenômeno se manifesta em dois filmes que obtiveram muito sucesso, apesar de apresentarem um conflito temático: nadam no que eles próprios criticam.
Em O Diabo Veste Prada (2006) acompanhamos a travessia profissional por que passa a talentosa jornalista Andy Sachs, recém-chegada a Nova Iorque. Seu grande desafio é sobreviver como simples assistente da editora-chefe da conceituada revista Runaway, Miranda Priestly. É uma tarefa árdua. Para começar, a jovem submerge num mundo completamente alheio ao seu. De formação refinadamente intelectual, destoa naquele universo da moda, das grifes, da ostentação, que é muitas vezes considerado superficial, vazio, banal. Mas vemos que há nele todo um mecanismo extremamente sério envolvendo investimento pesado em pesquisa e muito, muito dinheiro. Dentro desse contexto, a cena em que se discute a tonalidade de dois cintos – praticamente iguais – é antológica.
Entretanto, aqueles que têm uma capacidade de raciocínio mais evoluída ficam com um incômodo: seriamente, alguém pode ser avaliado por sua aparência? E o mais bizarro é que vemos a protagonista mergulhar nesse estranho cosmos, numa descida ao inferno que aparenta ser uma elevação, pois, conforme ela vai se vestindo mais de acordo com os padrões da alta costura, mais crédito vai ganhando na Runaway. No final, sai amadurecida, percebendo que o mais importante é a qualidade das relações humanas, que a duras penas ela consegue preservar. Ainda assim, parece que o grande público não consegue captar essa mensagem. Ficam até com a dúvida: será que Andy fez a coisa certa? Alguns, os mais críticos, veem certo realismo nas lições que são apresentadas do mundo do trabalho: sentimentos não contam; não espere elogios por seus esforços; vida pessoal e sucesso são incompatíveis. Daí saltam mais algumas cenas antológicas em que se veem pedidos destituídos de sentido (originais do último Harry Potter, voo em meio a uma tempestade que fechou aeroportos). Esbarra-se então num ingrediente valioso da sátira menipeia: o absurdo que funciona mais como crítica ao que é considerado normal.

Fotograma de Sex and the City.

Outro filme que vai pelo mesmo caminho é Sex and the City (2008). Nele, Carrie e suas amigas levam para a telona os temas da consagrada série televisiva, sempre ligados à badaladíssima Nova Iorque. Continuamos testemunhando o fetiche pela ostentação de consumo e do status de VIP. Um mundo em que imóveis são caríssimos, em que a mudança de um prefixo de celular é motivo para crise de identidade, em que um casamento precisa ser ensaiado como se fosse uma megaprodução cinematográfica, em que um vestido de noiva precisa ser reportagem de revista, em que um closet para sapatos é maior do que muitos imóveis que conhecemos. Um exemplo máximo é a idolatria por uma bolsa Louis Vuitton, item obrigatório para a aceitação social. É por isso que uma das personagens descobre um esquema fantástico: aluga um exemplar desse artefato. Rousseau encontraria nesse exemplo um argumento para sua tese de que o mundo civilizado é desnecessariamente complicado...
Mas há aqui um ingrediente novo: a protagonista está para se casar com o riquíssimo (não podia deixar de ser...) Mr. Big. A crise começa quando ele, de última hora, percebe o jogo maluco em que está entrando – casamento não é um espetáculo para os outros, mas uma consagração e um compromisso entre duas almas que se identificam. Mas quem enxerga isso nesse universo consumista? Abandonada, Carrie entra em uma crise medonha, mas conta com o apoio de suas amigas. Mais uma vez o tema da importância das relações humanas, que são as que realmente valem. Bela é a cena de encerramento, em que todas elas, refeitas, passeiam pela noite da grande cidade, passando ao largo da fila de mais um badalado clube VIP. Entretanto, será que o grande público captou a mensagem? Basta lembrar que o pôster da continuação desse filme, de 2010, apresenta as mesmas personagens no glamour de Abu Dhabi.
Enfim, com esses dois exemplos, entre tantos que podem ser citados, notam-se as astúcias da ideologia, que, tão segura de si, consegue veicular ideais que poderiam (mas não conseguem) comprometê-la. É como se o grande público já estivesse entorpecido. Como diria Zé Ramalho: “vida de gado, povo marcado e povo feliz”.

FUVEST-UNICAMP 2014
Resumos, análises e comparações
Para comprar, clique aqui.

5 comentários:

  1. Infelizmente creio que a proposta não seja captada pela maior parte do público; como vc mesmo disse, no filme O Diabo Veste Prada, a lição tirada pela maioria das pessoas é que sucesso no trabalho e vida social não são incompatíveis. Belo post, Lau, saudade das suas aulas =)

    ResponderExcluir
  2. Belo texto Lau, a sociedade atual esta totalmente de olhos fechados, seja para a mídia ou a dramatização...Temos como exemplo(porém de outro estilo de filme) o Capitão Nascimento que me corrija se estiver errado a comparação mais se tornou um anti - herói brasileiro, a população o consagrou como herói, porém ele toma na maioria das vezes comportamentos fascistas (pelo menos no primeiro filme), ele acaba se tornando um mal necessário aos olhos das pessoas =)

    ResponderExcluir
  3. Acho que foi o Joãozinho 30 que disse que "Pobre não gosta de pobre, pobre gosta de luxo. Quem gosta de pobre é intelectual"(me corrija se eu estiver errado quanto à fonte).
    Só que eu acho que essas mensagens construtivas são pouco percebidas porque a indústria cinematográfica também faz pouca questão de explorá-las nestes filmes.

    Normalmente no final o filme tenta mostrar que apesar de todo o dinheiro, glamour e possibilidades que algumas beldades desfrutam, no fundo elas são parecidas com a dona de casa de camisola de saco de arroz, quiçá até mais infelizes que os telespectadores de vida simples. É forçar uma identidade com o público.

    Gosto de ver esses filmes quando eu estou muito cansado para ver algo melhor ou ler um livro porque não vou precisar refletir muito, não vou cansar. Às vezes tenho paciência, às vezes não.

    O texto está maravilhoso. Acho que foi a melhor coisa que li nesta semana.

    Abraços.

    ResponderExcluir