domingo, 7 de abril de 2013

Feliciano e a maldição de Cam: a ideologia como distorção da realidade

A Maldição de Cam, quadro do russo Ivan Ksenophontov (séc. XIX) 

Nos últimos dias virou moda satanizar o deputado Marco Feliciano por causa de suas posturas que atentam contra os Direitos Humanos, o que tornaria incoerente sua nomeação para a presidência de uma comissão que cuida justamente dessa questão. O problema é que muitos dos que o atacam, em nome do respeito à alteridade, acabam assumindo a mesma tática do inimigo, buscando vencer uma disputa no grito, na provocação, na ofensa. E toda essa campanha, como sabiamente vaticinou Silas Malafaia, só acabará trazendo mais votos para a causa teocrática que os dois parecem defender, já que os vociferantes esquecem que, se os dois religiosos não os representam no Congresso, acabam sendo a voz de uma imensa parcela silenciosa da população. Em toda essa balbúrdia, a mais amaldiçoada é a verdade, que acabou perdendo espaço. Basta lembrar que o artigo de Hélio Schwartsman (“A Maldição de Cam”) publicado à página A2 da Folha de S. Paulo de 02 de abril de 2013 expôs argumentos lógicos suficientes para pôr por terra o pensamento dos dois pastores, mas não provocou repercussão, muito menos encerrou a discussão. Pior: com certeza, um homem tão cheio de razão e lógica não seria eleito, ou pelo menos não teria o mesmo número de apoiadores, escandalosos ou calados, do que os já citados donos de uma visão obscurantista do mundo.
Entretanto, há que se tirar algo de proveitoso de toda essa confusão. Deve-se usar o que veio à tona para notar um ponto importante na leitura e interpretação de textos (e, por extensão, do mundo): a ideologia, entendida aqui como conjunto de ideias que servem para mascarar a realidade e sustentar ou justificar um sistema social. Para percebê-la, basta tentar entender de onde vem uma das teses apregoadas por Feliciano, a de que os negros são amaldiçoados por Deus. Alega-se que está em Gênesis 9, 20-27. Mas o que se encontra lá é que Noé, bêbado, acabou ficando nu e seu filho Cam, em vez de fazer com que seu pai ficasse em trajes decentes, saiu alardeando para os outros irmãos (Sem e Jafé) a situação vexatória. Seu progenitor, enraivecido, amaldiçoou o imprudente e todos os seus descendentes, condenando-os a serem escravos da descendência de Sem e Jafé. Enfim, quem tornou o futuro indigno de toda uma população foi Noé e não Deus. Além disso, só se diz que um povo, o de Canaã, filho de Cam, é que merece ser escravo dos outros dois. Não se fala que um é o negro e que os outros dois são arianos (estes nem existiam naquela região!). Mas o triste é que o laconismo típico da Bíblia suscitou inúmeras interpretações sobre a causa do mal de Cam. Zoofilia? Incesto? Homossexualismo?
Entretanto, o importante é discutir que esse pequeno trecho das escrituras sagradas acabou servindo como justificativa para uma instituição muito lucrativa: a escravidão do negro. O primeiro grupo a se utilizar dessa desculpa foi a Igreja Católica. E não há como negar que ela em algum momento apoiou essa atrocidade. Basta recordar que Padre Antônio Vieira (1608-1697), por exemplo, dizia que o cativeiro a que o negro deveria passar servia para a salvação de sua alma. Outra agremiação que soube se utilizar desse subterfúgio foram os proprietários rurais estadunidenses, que assim conseguiam apaziguar sua consciência religiosa. E parece que vem daí boa parte da fonte que inspirou Feliciano e seu séquito. Mas o exame atento de todo esse processo de pensamento faz-nos perceber que é da natureza da ideologia dar uma aparência de natural ao que na verdade é criação do homem, o que, logo, muitas vezes não corresponde à verdade.
A ideologia, portanto, atrapalha a análise de texto (e consequentemente a compreensão de mundo), tornando-nos vítimas da falta de visão. Entretanto, toda essa cegueira é eliminada não pela ignorância a esse esquema ludibrioso, mas justamente pela observação atenta a ele. Vê-lo é colocar-se em posição privilegiada, é enxergar que aquilo que é apresentado como causa do que está aí, na verdade é justamente consequência.  É, pois, uma maneira de esconder a realidade. Semelhante ao esforço pseudocientífico dos norte-americanos de justificar o regime de cativeiro pelo fato de que os africanos seriam de uma condição racial inferior. Sabe-se que o conceito de raça foi forjado apenas para manter o regime servil. Em outras palavras, é outra ideologia.
O curioso é notar que essas ideias vieram à tona nos Estados Unidos no momento em que essa nação sofria uma enorme pressão interna e externa contra a escravidão. Trata-se, então, de um gesto desesperado de dar sobrevida ao que já está caduco e moribundo. O mesmo ocorre atualmente nos ataques homofóbicos na avenida Paulista. São gestos de quem já está perdendo terreno. Em resumo, são atos de quem já perdeu a razão. Nesse contexto, Feliciano, ao mostrar uma leitura muito pobre da Bíblia, ao manipular tão incompetentemente seu material de trabalho, acaba se tornando um inocente útil ao dar vazão a uma interpretação sombria das relações sociais. Ou mesmo um inocente inútil, pois é porta-voz de um conjunto de ideias que estão sendo atropeladas no século XXI.
Fica então a dúvida: como vencer as armadilhas da ideologia? Como impedir que, além de Cam, a verdade seja execrada? O primeiro passo é ter consciência crítica. É não sair reproduzindo o que se ouve ou se lê por aí. É não aceitar passivamente verdades tidas como absolutas. É questionar, duvidar de maneira construtiva, verificar fontes. É, enfim, assumir uma postura ativa e mais racional diante do mundo. O que está difícil.



2 comentários:

  1. Comentei outro dia com uma amiga que gostaria muito de saber o que alguns pastores dizem aos seus fiéis para hipnotizá-los e, dessa forma, fazer com que eles sigam tudo, TUDO, que o pastor falar. Infelizmente algumas pessoas, apenas porque pertencem à mesma igreja do Marco Feliciano, acreditam que devem concordar com tudo que ele diz; não pensam sobre o assunto, apenas apoiam.


    P.s. Você viu a declaração da Letícia Sabatella sobre o Marco Feliciano?
    "O Feliciano é uma benção de Deus. Ele é tão nazista, arcaico e egoísta que enfim estamos acordando para a homofobia e o preconceito. É um mal que vem pra bem. É tão absurdo e forte, como se quem não pensa como ele estivesse associado ao demônio, possuído. Aconteceram coisas que doeram na minha alma. E, para ser contra essa aberração, quem antes não queria chocar a bisavó está se assumindo. Graças a isso, a homofobia daqui a pouco vai acabar, como acabou a escravidão.”

    Não concordo com muitas coisas, por exemplo, com a última frase. A escravidão acabou, mas o preconceito contra o negro, não; da mesma forma que o preconceito contra o homossexual nunca vai acabar, infelizmente.
    No fim, eu acredito que o Marco Feliciano deveria fazer cursinho para aprender interpretação de texto; depois ler a Bíblia e entender o que está escrito, ao invés de lê-la à sua maneira e sair falando besteira por aí.

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    1. Você tem razão! Ele devia fazer curso de interpretação de texto. Mas o pior é que suas ideias têm eco, a prova é que foi eleito e com certeza seria reeleito. Não foi o ministro da magia que dizia que vivemos tempos sombrios?

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