domingo, 10 de junho de 2012

A magia da interpretação de textos: o dito que não é dito

A compreensão de um texto exige a mobilização de várias competências, entre elas a capacidade de perceber o que não está sendo dito explicitamente. Nesta semana O Magriço Cibernético se deparou com dois exemplos desse fenômeno.  O primeiro deles é a canção “Non ho l’hetà” (Ainda não tenho idade), apresentada em 1964 pela italiana Gigliola Cinquetti, vencedora do Festival Eurovisão daquele ano. O que pode ser analisado de uma peça tão inocente, em que uma menina de 17 anos declara não estar na idade para as aventuras amorosas, nem mesmo para andar sozinha com o seu amado, e por isso requer que seu querido espere o tempo adequado?
Em primeiro lugar, deve-se lembrar que a necessidade de pedir pela preservação do ideal romântico é sinal de que se estava vivendo uma época em que tal já não era mais respeitado por todos. Se o fosse, estaria no campo dos valores óbvios e consuetudinários, portanto, não haveria a necessidade da solicitação. Assim, a música é um indício de uma pureza que já revelava decadência. Basta lembrar que ela foi apresentada em um período bastante conturbado: na década anterior, o filme Juventude Transviada (1955) apresentava James Dean como ícone da rebeldia com causa. Abria-se caminho para que os jovens questionassem o sistema de valores, o que iria desembocar no 1968, o famoso ano que ainda não acabou.
No meio de toda essa agitação social, de toda essa convulsão estava a meiga canção da italiana. Ela revela um esforço de alienação que no fundo põe em foco, para quem é mais sagaz, justamente o que se está tentando esconder. Aliás, toda forma de fuga nada mais é do que um conflito mal resolvido com o presente: o árcade, apaixonado pelo campo, não se sentia bem no novo ambiente urbano que via à sua frente; o romântico, perdido nos sonhos e idealizações, era um inadaptado ao mundo de derrocada dos ideais da Revolução Francesa; o simbolista, sonâmbulo hipnotizado pelas forças do inconsciente, recusava-se a aceitar o mundo cientificista do final do século XIX. A premiação dada em 1964 pode, então, revelar o desejo de setores preocupados com as mudanças que estavam fervilhando.
Curiosamente, no mesmo ano em que surgia na Europa “Non ho l’hetà”, nos Estados Unidos Pete Seeger apresentava o seu “What did you learn in school today”:
Nessa música, vemos uma sequência de ensinamentos que foram passados a uma criança na escola. Até esse ponto, nada de chamativo. Mas o interessante é que há uma ironia fora do comum, pois não se estabelece no nível do discurso entre adulto e infante, mas em um plano mais sofisticado, entre o texto e o seu receptor. Tal só pode ser captada por quem tem conhecimento do mundo em que estamos inseridos, que não corresponde ao que foi transmitido ao menino da composição. Washington nunca mentiu? Soldados raramente morrem? A Justiça não tem fim? Então se descobre que se está diante de um processo de doutrinação, mais cruel porque é feito de maneira afável, gentil – a criança é chamada amorosamente de “dear little boy of mine”. Em suma, o caráter terrível dessa lavagem cerebral é que ela se faz corrompendo a mais inocente das criaturas para que o sistema errado e injusto se perpetue.
Assim, por esses dois exemplos percebe-se que a compreensão de um texto vai além da mera decodificação dos elementos que o constituem. Trata-se de um processo muito sofisticado que requer até que se enxergue o que não está sendo exposto ou mesmo o que não se quer que se seja exposto. Como obter essa habilidade? Prática de leitura. Nunca é demais repetir essa receita.

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