O Iluminado (1980), filme de Stanley Kubrick baseado no romance homônimo de Stephen King publicado em 1977, faz parte do que a crítica especializada chama de tríade do terror. Seus companheiros são O Bebê de Rosemary (1968) e O Exorcista (1973). O grande valor dessa obra está na apresentação de um crescendo de suspense, o mesmo ingrediente que foi resgatado de forma eficiente em Atividade Paranormal (2007). O que não quer dizer que este filme é comparável àquele. A diferença é gigantesca: aquele é superior por ser mais denso psicologicamente. Para o público de hoje, porém, acomodado a um frenético terror descerebrado escatológico ou pornográfico, concentrado em mutilações que dão uma estranha vazão a um sadomasoquismo, a obra de Kubrick pode parecer chocha no seu aspecto clean e muitas vezes monótono. Mas para os mais crescidos, essa película se mostra produção de primeira linha, pois lida com questões valiosas para a compreensão do comportamento humano. Analisemo-las mais detidamente.
O argumento de O Iluminado apresenta-nos uma família composta por um pai, Jack Torrance, escritor em crise de criatividade, uma mãe, Wendy, figura sufocada pelo perfeccionismo de sua progenitora, e um garoto, Danny, que tem o dom de comunicar-se com entidades transcendentes, daí o título da obra. Esse grupo, bastante amoroso e unido, isola-se durante o inverno no Hotel Overlook. É nessa espécie de ostracismo voluntário que testemunharemos o processo de radical decadência psicológica.
Na verdade, o filme lida de forma competente com os ingredientes essenciais do gênero a que pertence. A começar, deve-se lembrar que o terror está ligado à necessidade que Platão apontou como essencial a todos nós: a catarse, ou seja, o alívio e a purgação que se sente ao se passar, graças à arte, por experiências ruins, assustadoras. É por isso que os protagonistas são uma família amorosa, pois assim nos identificamos com ela e sentimos a mesma angústia a que são submetidos. E nesse ponto está o que se pode entender como utilidade da arte – bem melhor experimentarmos por meio da ficção acontecimentos escabrosos do que encará-los na vida real.
Entretanto, o aspecto catártico é insuficiente para explicar a especificidade do terror, principalmente o da espécie que é vista em O Iluminado. É necessário ter mente também o conceito que Freud atribui a essa classe. De acordo com o psicanalista, tal categoria de literatura – e cinema não deixa de ser uma manifestação literária – lida com o que ele chamou de “das Unheimlich”, termo que não encontra tradução eficaz em português. Trata-se de um fenômeno que está surpreendentemente num campo entre estranho, sinistro, próximo, doméstico, comum e ao mesmo tempo oculto. É o interdito, ou seja, aquilo que temos noção que existe, mas não queremos assumir, e por isso jogamos para debaixo do tapete. Ainda assim, o nosso inconsciente, senhor dos subterrâneos de nossa psique, consegue avisar de maneira simbólica, para driblar a censura racional do consciente, que esses fatos estão vivos.
Mas que conteúdo escondido esse filme quer revelar? Para se chegar a uma resposta possível, é importante observar algumas de suas simbologias.
O primeiro signo que pode ser apontado é o labirinto. Ele está presente no planejamento paisagístico do Hotel Overlook, já que existe esse tipo de construção, feita de vegetação, e que fará parte de um momento crucial da trama. Esse elemento é encontrado também na decoração do edifício. Basta notar os corredores em que Danny passeia e, mais importante, o desenho dos tapetes e carpetes, que segue um padrão que não deixa de ser também uma manifestação desse emaranhado arquitetônico. E há uma cena, na qual Jack mostra sua insânia, em que a fotografia cria um efeito surpreendente, colocando a cabeça do ator à frente de um quadro, fazendo-a ocupar a posição central dentro de um labirinto. Fica a ideia de que a mente está enredada em uma armadilha, o que de fato é o tema do filme. Tanto que essa mesma prisão está representada nos fatos que se repetem no suceder do tempo, criando uma circularidade inescapável.
Além disso, se se lembrar que o padrão
da decoração dos tapetes sugere o estilo navajo, e se se lembrar que o hotel
foi construído sobre um cemitério indígena, mais ingredientes entram para a
compreensão da película. É como se a riqueza do prédio se baseasse no
solapamento do elemento nativo americano. Então se começa a entender que esse
edifício é nada mais do que a representação dos Estados Unidos, que se erigiram
à custa do massacre do povo autóctone lá encontrado.
De fato, ter em mente que essa hospedagem é uma representação em microcosmo da nação norte-americana explica a quase infinita enumeração que o cozinheiro Dick Hallorann faz dos itens que compõem a despensa, como a sugerir a abastança daquele país. É o suficiente para que tenham uma vida tranquila, isolados do resto do mundo, o que não deixa de ser uma alegoria do padrão de vida estadunidense. Ademais, o fantasma do zelador Delbert Grady se refere com ênfase ao cozinheiro usando o termo “nigger”, bastante depreciativo e que está ligado às práticas racistas que tanto notabilizaram os EUA em seu passado nefasto.
De fato, ter em mente que essa hospedagem é uma representação em microcosmo da nação norte-americana explica a quase infinita enumeração que o cozinheiro Dick Hallorann faz dos itens que compõem a despensa, como a sugerir a abastança daquele país. É o suficiente para que tenham uma vida tranquila, isolados do resto do mundo, o que não deixa de ser uma alegoria do padrão de vida estadunidense. Ademais, o fantasma do zelador Delbert Grady se refere com ênfase ao cozinheiro usando o termo “nigger”, bastante depreciativo e que está ligado às práticas racistas que tanto notabilizaram os EUA em seu passado nefasto.
Então, a nação mais poderosa do planeta é dona de uma riqueza incomparável, mas que se mostra sangrenta – daí a expressividade de tirar o fôlego da cena apresentada no trailer acima – ao se basear na opressão e na alienação. É um aspecto que aquele povo não quer enxergar, mas que faz parte do DNA deles. É o interdito. E a função do gênero ao qual O Iluminado pertence é colocar à tona esses problemas, o que com bastante êxito. É por isso que vale a pena vê-lo.
Ahhh, Lau ! E as cine-aulas ? :(
ResponderExcluirAs cineaulas estão na mão do meu coordenador. Ele que sabe quando acontecerão...
ExcluirFatidicamente, de primeiríssima linha!
ResponderExcluirSem sombra de dúvida!
ExcluirEu tenho certeza absoluta que você lê mentes!
ResponderExcluirFoi justamente este o assunto discutido no domingo. Estava contando para um amigo sobre essa aula que você deu.
Lembro como se fosse ontem. Um filme incrível, assim como todos os filmes de Kubrick (ao menos todos que eu vi).
A respeito dessa característica cíclica me veio o filme "1408", de Mikael Håfström. Um filme que, análogo ao labirinto de "O iluminado", parece não ter fim.
Eu ainda vou ler o conto de Edgar A. Poe, "A máscara da morte escarlate", que você mencionou na cineaula. Depois volto pra te contar o que achei.
BeijãoO
PS: Post delicioso!!!
O mais incrível é que esse filme lida não com ação, mas com atmosfera. Ele prega um terrorismo em nosso espírito, não acha? Acho que a essência do terrorismo se mantém mais na expectativa do que pode acontecer, não interessa se vai ou não acontecer. Lembra do Danny na hesitação de se vai ou não abrir a porta?
ExcluirE obrigado pelo elogio!
Nossa Lau, realmente um poder sensacional de ler mentes hehe
ResponderExcluirTenho um trabalho pra faculdade que tenho que pegar o conceito do Freud, do estranhamente familiar, que Schelling colocava como “tudo que deveria ter permanecido secreto e oculto mas que veio à luz”, juntar ao conceito de Greimas em que ele fala sobre a "fratura do cotidiano" e analisar um filme de terror, provando o terror desse filme a partir desses dois conceitos. Na hora pensei no Iluminado. O Freud ainda aponta três circunstâncias que geram o desconforto do "estranhamente familiar": o medo da castração, a onipotência do pensamento e o duplo. Acho que dá pra relacionar com as atitudes do personagem Jack. Ele é um ex-alcoólatra que tenta retomar sua vida de escritor; por vezes se depara com a incapacidade de realização dessa atividade. O duplo também pode ser percebido; quando "os fantasmas" aparecem junto a ele sempre há a presença de um espelho que demonstra uma projeção disfarçada dele mesmo, garantindo que o ego não seja destruído. Enfim, vários conceitos podem ser percebidos. Ainda ontem tinha postado lá no facebook comentando o remake de 1997 que muita gente diz ser melhor. Pensei também numa relação com os contos de atmosfera de James Joyce, Tchékhov, Virgínia Woolf e Katherine Mansfield. Você acha que dá pra fazer essa relação, Lau??
Abrass
Meu amigo, seu projeto de trabalho está muito bom! Caramba, devo dizer - está ótimo! E adorei a ideia do duplo e dos espelhos. Eu tinha estudado muito essa questão do fantasmagórico e do fantástico na literatura. Era a minha paixão. E eu sempre via que havia o duplo, o espelho, tanto no terror, quanto na ficção científica, quanto no policial, gêneros que saíram do gótico. Mas nunca tinha conseguido entender o porquê disso. Fico feliz por você ter-me dado uma luz. E estou muito curioso - quero ver seu trabalho!
ExcluirAh, pode deixar que eu mando sim. To tentando terminar, as teorias do Freud cabem muito bem na análise desse filme, e não só as dele. O Iluminado é um filme que dá base pra se escrever páginas e mais páginas, é difícil saber a hora de parar hehe. Falta revisar algumas partes, dar um último trato e pronto. Vou querer uma opinião sobre o texto hein hehe, é sempre bacana ter opinião de alguém que manja bastante na área.
ResponderExcluirAbrass
Já estou ansioso!
ExcluirOi Lau. Terminei o texto sobre O Iluminado. Tá lá no blog, dá uma olhada e me fala o que achou.
ExcluirAbrass
http://inconsistenciasmemoraveis.blogspot.com.br/2012/09/estranhamento-e-terror-em-o-iluminado.html
Eu vi. Adorei muito o seu texto.
ExcluirEu sou fã do Stephen King desde criança, li vários livros dele e O Iluminado sempre foi meu favorito. Ele sempre teve sorte nas adaptações dos seus livros para o cinema e dessa vez não foi diferente. Quando li esse livro me lembro que parava constantemente para secar as minhas mãos que suavam e molhavam as páginas do livro. O filme manteve a mesma tensão que existe do livro, que vai aumentando pouco a pouco até chegar ao ápice, quando a "febre da montanha" acaba se apoderando do Jack e ele persegue a família, insano. Nessa parte, no livro, me lembro inclusive que meu coração batia tão acelerado que eu até conseguia ouvir. Depois de ler algumas coisas aqui acabei sacando o possível motivo de algumas diferenças entre o filme e o livro. No final do último, Jack encurrala o filho e quando vai matá-lo, em um surto de consciência, consegue dominar por alguns instantes a loucura e ordena que o filho fuja para, em seguida, explodir o hotel, pondo fim ao ciclo de bizarrices que marca a história do Overlook. O fim mostra que o mal que atormenta Jack é a loucura gerada pelo isolamento e que, a muito custo, pode ser controlada. Já no fim do filme, ele deseja até o último segundo de vida assassinar a família, ou seja, existe muito mais que loucura, é, de fato, uma armadilha mental da qual ele, frustrado profissionalmente e "ex-alcoolatra", não consegue sair (inclusive morre dentro do labirinto. Assim, vê como última saída integrar o grupo de hóspedes permanentes do hotel Overlook, como mostra a foto no fim do filme.
ResponderExcluirGostei muito de sua análise. Você mostra ser uma pessoa de outro nível. Mas, vamos falar sério: desde criança você lê Stephen King? Ao mesmo tempo em que me espanto com isso, eu também não me surpreendo. Pode?
ExcluirAh! Outra coisa? Stephen King não gostou da versão de Kubrick para O Iluminado, sabia?
Quando criança, com mais ou menos 8 anos, eu gostava de outros filmes, outras músicas e outros livros. Por isso eu era diferente dos coleguinhas e cresci assim =)
ExcluirO Stephen King escreve muito bem sobre um tema que me interessa muito: o sobrenatural (tem um escritor brasileiro que também escreve bem sobre o assunto, André Vianco).
Agora, que ele não gostou do filme eu não sabia... acabei de pesquisar e fiquei sabendo que a 2º versão, de 1997, é dirigida pelo Stephen King e bem mais fiel ao livro (pelo que vi em cenas do filme). Será que ele não gostou das mudanças do Kubrick? Vale ressaltar que a versão de 1980 é a visão do diretor, não do escritor.
Kubrick eliminou muita coisa do livro - os marimbondos, o relógio, a festa, o baile da morte vermelha, a velha milionária com o jovem interesseiro. Mas fez os cortes de forma consciente, preocupando-se com o clima. E nisso ele foi perfeito. Lembro-me de uma frase de um crítico - Kubrick consegue assustar apenas com um letreiro dizendo "Quarta-feira".
ExcluirAlém disso, a atuação de Jack Nicholson é outro grande motivo que fez Stephen King não gostar da versão de Kubrick. Ironicamente, ele era bom demais para o filme. Segundo King, Nicholson delata já desde a primeira cena que não se trata de alguém psicologicamente equilibrado. E, sendo ele um dos maiores atores da história do cinema, foi capaz de roubar a cena de quem, no livro, é o verdadeiro personagem principal: o próprio hotel. A maneira como ele enlouquece (ou é enlouquecido?) é brilhante. Chego a pensar que nenhum outro ator conseguiria ser tão assustador quanto ele. Eu diria mais: Nicholson consegue assustar apenas soletrando de um letreiro a palavra "Quarta-feira".
ExcluirConcordo com vc, Edson. A atuação do Jack Nicholson é fenomenal!
ExcluirAdorei o filme o Iluminado,como vocês todos disseram é rico em conteúdo,psicologia,psicanálise...quando assisti ao filme percebi características naturalistas como o determinismo(MEIO do terror,da opressão )que revelou a dupla personalidade de Jack e a todos que lá viveram,percebo também a psicologia machadiana,como no capítulo ''Delírio'',de ''Memórias Póstumas de Brás Cubas''..pscicanálise pura essse filme,fantástico,não tinha percebido a relação do próprio Hotel Overlook com os EUA,que torna o filme universal,pois esse meio que vemos persiste até os dias de hoje,o mar de sangue do vídeo pode ser comparado ao mar de sangue que a política intervencionista americana gerou no oriente médio principalmente,e esse mar é camuflado pela própria sociedade de consumo.....outra coisa que quando ouço a vinheta da parte inicial do filme,lembro nas cenas em que o Jão Fera(''Til) esperava na floresta para assassinar Luis Galvão...obrigado pelo post laustarg
ResponderExcluirCaro André, creio que quando você aponta um caráter universal a O Iluminado, por mostrar elementos que vemos até hoje, você quer dizer na verdade que ele tem um caráter atemporal, não é isso? Fora esse problema, suas considerações são muito boas, ainda mais porque você procurar estabelecer ligações com o repertório cultural que você está montando, o que é um processo valioso! Continue acessando O Magriço Cibernético e contribuindo com suas ideias.
ExcluirAll work and no play makes Jack a dull boy
ResponderExcluirAll work and no play makes Jack a dull boy
All work and no play makes Jack a dull boy
All work and no play makes Jack a dull boy
All work and no play makes Jack a dull boy...
Você sabe que essa frase muda, dependendo do país em que o filme foi lançado?
ExcluirOi, professor. Parabéns pelo teu dia!
ExcluirEu não sabia, não! Quer dizer, muda o original em inglês, e não a dublagem?
Eu vi na Wikipedia que na verdade é de um livro de provérbios muito antigo (1650) do autor inglês James Howell. Em 1825 a novelista irlandesa Maria Edgeworth adicionou:
All work and no play makes Jack a dull boy,
All play and no work makes Jack a mere toy
(Só não vale preencher as 30 linhas da redação com isso...)
Professor, não achei muito pertinente a psicanálise freudiana!
ResponderExcluiraBRAÇOS
Por que você não achou pertinente?
Excluir#beijos para as moças e abraços para os colegas.
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