domingo, 2 de setembro de 2012

Memórias de um Sargento de Milícias: o Brasil de ontem e de hoje


Debret, Largo do Paço (Rio de Janeiro)

Publicado inicialmente na forma de folhetim em A Pacotilha entre 1852 e 1853, Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida foi um romance praticamente esquecido em sua época, pois se afastava dos padrões românticos, principalmente por não apresentar um dos valores mais caros para essa escola literária: a idealização. Basta lembrar que o protagonista em boa parte da história é, nas palavras do narrador, um “vadio-tipo”. Ou então recordar que seu pai, Leonardo Pataca, descobre que está sendo traído, bate na esposa e logo depois é abandonado. Ou ainda ter em mente que a paixão do protagonista, Luisinha, é feia e sonsa.
Entretanto, se a inquestionável ausência de idealização autoriza que se diga que Memórias de um Sargento de Milícias pratica uma inversão do Romantismo, isso não quer dizer que se trata de uma obra que antecipa o Realismo ou que se mostra uma transição entre essas duas escolas. Para negar essa imputação, é suficiente lembrar que não há no romance de Manuel Antônio de Almeida o cientificismo, o Determinismo e o pessimismo típicos do estilo literário que consagrou Machado de Assis, Eça de Queirós, Raul Pompéia. Há, ao contrário, um bom humor ao relatar os fatos e até mesmo uma história de amor com final feliz, elementos comuns ao Romantismo.
Na verdade, há, sim, certo realismo, típico da literatura que vem sendo produzida desde a Idade Média e que se preocupava em falar das classes baixas sem a necessidade de maquiar a realidade, assumindo muitas vezes um tom escrachado. É uma produção que se aproxima do romance picaresco, do qual Lazarilho de Tormes, do século XVI, é o mais cabal exemplo. Ainda assim (Como as rotulações são falhas e problemáticas!), é errado imaginar que o herói de Memórias de um Sargento de Milícias seja um pícaro, pois lhe falta a fome que o empurra ao nomadismo e à malignidade. Ele estaria, portanto, mais próximo do que se convencionou chamar de neopicaresco, dotado da malandragem também vista em seus descendentes: Macunaíma e João Grilo.
É interessante, portanto, notar que o livro de Manuel Antônio de Almeida apresenta um protagonista que assume um famoso caráter presumidamente brasileiro. Talvez por isso essa obra seja amada pelos sociólogos e, portanto, tenha presença marcante em tantos vestibulares. Em suma, ela lida com nossa identidade cultural (curiosamente a mesma que Debret encontrou quando esteve por aqui no início do século XIX). É por causa desse aspecto que encontramos na narrativa vários exemplos de atitudes típicas de nosso povo, como a flexibilização da ética (a Comadre levanta, com a melhor das intenções, falso testemunho contra o golpista José Manuel para que seu afilhado possa se casar com o grande amor de sua vida), os apadrinhamentos (Leonardo Pataca conseguiu o emprego de meirinho graças à proteção de alguém), a cordialidade (Leonardinho permite a fuga de Teotônio só porque simpatizou com o foragido), a capacidade de se virar em situações adversas (o nosso famoso jeitinho que faz com que o protagonista nunca passe necessidade).
Os poucos elementos arrolados aqui já são suficientes para tornar valorosa a leitura desse romance, que enfoca de maneira leve e jocosa nossos primórdios, a época em que D. João VI esteve no Brasil e que serviu não só para tirar nosso país da condição de mera colônia e elevá-lo à de sede de um império, mas também para moldar boa parte de nosso caráter.  O país cresceu, tornou-se potência econômica, até empresta dinheiro ao FMI, será sede da Copa e das Olimpíadas, mas ainda carrega os velhos problemas, os velhos estigmas, como bem mostra, conscientemente ou não, Manuel Antônio de Almeida.



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