No post de 26 de agosto foi discutida a inadequação da defesa da pureza das plataformas estéticas. Viu-se como errado, por exemplo, avaliar negativamente um filme com base no romance que lhe deu origem, pois, dentro desse critério, a película sempre sairia em desvantagem, já que a produção escrita apresentaria muito mais informações. É um raciocínio improcedente, pois, a começar, há obras cinematográficas que são muito melhores do que as literárias que as inspiraram, como O Iluminado (1980) – parece que Stanley Kubrick cortou o que em Stephen King havia de frouxo e prolixo. Mas, acima disso, não se deve esquecer que se trata de linguagens diferentes, que possuem seus próprios mecanismos de funcionamento. Assim, cinema tem que ser avaliado como cinema e livro tem que ser avaliado como livro.
Contribuiu para nossa argumentação a adaptação que o grupo The Piano Guys (2011) fez para Prelúdio da Suíte para Violoncelo Número 1 (1717-1721) de Bach (1685-1750). A partir daquele vídeo, mostrou-se que essa transliteração era comum até no próprio Barroco, o que invalidaria o dogma instituído pelos puristas segundo o qual uma composição musical só poderia ser executada conforme os ditames da época em que foi criada, inclusive até com os instrumentos de então. Nada contra quem faz assim, mas isso não tornaria indigno quem realiza suas próprias releituras, como bem observaram os leitores dO Magriço Cibernético, principalmente Raphael Pieri, que lembrou que o Lacrymosa (2006), do Evanescence, utilizou o “Lacrimosa”, do Réquiem (1791) de Mozart (1756-1791), ou que Alejandro (2010), de Lady Gaga, usou as Czardas (1904) de Vittorio Monti (1868-1922). Em ambos os casos, o resultado foi válido, garantindo a dignidade tanto do ponto de partida quando do de chegada.
Mas o fato é que a discussão manteve-se presa à mesma plataforma, que é a música. Interessante seria radicalizar o assunto e ver como em linguagens diferentes essa transferência também se mostraria belamente possível. Para tanto, deve-se observar o vídeo acima, o balé que o Uwe Sholz criou para o “Kyrie”, da Grande Missa de Mozart. A começar, se nos apegássemos ao dogmatismo purista, sinfonia com coral nem poderiam existir, pois a exaltação a Deus deveria evitar esses arroubos estéticos. Não é à toa que o papa Gregório I (540?-604) arrancou essas festividades do culto católico, instituindo a monotonia do canto gregoriano. Esquece-se, entretanto, que o próprio Davi, tomado pela alegria de sentir-se querido por Deus, dançou com toda sua energia diante da arca divina. Coincidentemente, essa composição clássica é perfeita para o que se está discutindo, pois se aproxima do espírito do rei hebreu, já que não se sente nela o sentimento de sagrado, da desconexão do Onipotente com nossas experiências cotidianas. Ao contrário, capta-se a experiência do sublime, do ser humano que se abre para a experiência de elevação, que deveria ser o objetivo de todos nós.
Observe como a música nos primeiros 26 segundos prepara um calmo crescendo, como uma pausa de nossas tarefas comezinhas, para que por fim o coro entre, cantando “Kyrie eleison” (“Senhor, tende piedade de nós”, em grego), jogando-nos para a experiência divina que explode aos 43 segundos. Note que a própria movimentação do balé acaba por materializar o que acontece na música: primeiro nós temos todos os integrantes paralisados, então seus braços se movimentam e por fim, com o impacto que se instaura, os bailarinos começam a correr. E é interessante que o deslocamento deles ressalta o típico colorido da música de Mozart. Conseguimos, então, graças aos dançarinos, captar o coro dividido em quatro partes, duas femininas e duas masculinas, que têm vida própria, mas em harmonia.
Por volta de 2min05, após toda a empolgação que foi a entrada do sublime, música e balé voltam a se unir e se acalmar, pois em 2min40 um dos momentos mais belos surge: a soprano cantando “Christe eleison” (“Cristo, tende piedade de nós”, também em grego). Note como a utilização dos melismas, que são o prolongamento de uma vogal por várias notas musicais, é visualizada no fato de a bailarina fazer movimentos difíceis com o corpo enquanto está equilibrada em um só pé, dando a impressão de que tudo é feito com graça e simplicidade. Como o esforço vocal da cantora. Enquanto isso, os demais dançarinos estão ao fundo, de vez em quando se movimentando (como em 2min50, 3min17, 3min36m e 5min01), porque o coro também foi colocado em segundo plano, de vez em quando se manifestando.
Aproximadamente em 4min45 aparece um gesto que materializa um belo problema dessa missa, que, como se disse, não consegue transmitir a emoção do sagrado, mas do sublime. Canta-se um pedido humilde de piedade. Entretanto, o gesto gracioso que a bailarina faz três vezes é o de oferecimento. Parece que o homem do século XVIII, do Iluminismo, sente-se orgulhoso, ou pelo menos feliz com a sua capacidade de oferecer algo soberbamente tocante ao seu Senhor. É um exótico conflito de uma humildade que se dá de cabeça erguida.
Por fim, vêm os melismas a partir de 4min10. É o clímax do encantamento expresso pela soprano e pela bailarina por pouco mais de 30 segundos. Em 5min47 o coro volta à atividade, assim como o corpo de balé. Em 6min05 todo o colorido sonoro-corporal volta, trazendo o estouro em 6min12. Em 6min54, após toda essa explosão de louvação, música e balé se recolhem, preparando-se para o encerramento da composição, que se dá como um suspiro de descanso, como o murchar de uma rosa que delicadamente se gastou na exibição de sua desabrochada beleza.
De acordo com tudo o que foi discutido, a comunicação entre duas plataformas estéticas diferentes – música e dança – só teve como resultado não só a riqueza que correu numa via de mão dupla, mas também a certificação de que o purismo em arte é algo que deve ser banido, pois que traz como prejuízo o empobrecimento de nossas experiências.
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