domingo, 16 de setembro de 2012

A rapsódia: Homero, Liszt, Gershwin, Queen



Busto helênico de Homero no British Museum.

O leitor dO Magriço Cibernético já deve estar acostumado com a ideia de que texto é um conjunto de elementos que, conectados entre si, acabam estabelecendo coerência e, consequentemente, sentido. Isso ficou bastante claro no post de 8 e no de 26 de fevereiro. Assim, como foi visto em 1º de março, quando um elemento não está bem ligado ao conjunto, ele pode provocar problemas na mensagem. Ou, quando isso é feito propositalmente, conforme se viu em 3 de março, essa dissonância pode ser um aspecto valioso capaz de trazer mais riqueza ao que se está comunicando. Mas, de uma forma ou de outra, estamos lidando com uma união de partes que têm certa relação. Hoje precisamos entender outro tipo de arranjo, a rapsódia.
Na verdade, o primeiro conceito que se tem desse tipo de composição está ligado à Grécia Antiga, na figura de Homero, criador da Ilíada e da Odisseia. Esse suposto autor (na verdade, é bastante questionável sua existência) teria circulado entre o povo grego e, coletando as diversas histórias que lhe foram contadas, tornou-se um rapsodo, ou seja, alguém que acabou fazendo poemas que são a colagem de todos esses elementos que captou de sua etnia.
Durante o Romantismo, escola literária que se consagrou pela valorização da cultura popular como reforço dos padrões nacionalistas, renasce o conceito de rapsódia, agora entendido como uma composição musical em que há a incorporação de vários trechos de canções populares. A mais famosa delas parece ser a Rapsódia Húngara nº 2 (1847), de Franz Liszt (1811-1886), em que houve a absorção de várias melodias, algumas ciganas, que o autor ouvira em sua terra natal, a Hungria. Observe como a música vai assumindo diferentes feições e andamentos:


O que chama a atenção nessa peça é que ela é mais um exemplo para seu autor, que era também pianista, praticar seu exibicionismo, pois executá-la exige uma perícia extrema. Outro fato notável é que essa obra ficou tão famosa que apareceu em diversos desenhos animados, como o do Tom e Jerry (1946), do Pernalonga (1946) do Pica-Pau (1954), do Pernalonga e até em uma cena de Uma Cilada para Roger Rabbit (1988), no antológico duelo entre Patolino e Pato Donald.
Já no Modernismo, outro período literário famoso pela valorização da cultura do povo, o norte-americano George Gershwin (1898-1937) compôs sua Rhapsody in Blue (1924), em que se notam influências do jazz, que à época ainda não tinha ganhado o status de arte nobre, erudita. Vemo-la aqui na excelente versão que a Disney produziu para o filme Fantasia 2000 (1999):


Mais recentemente surgiu outro exemplar dessa espécie, o Bohemian Rhapsody (1975), do Queen. Nessa canção, vemos a junção de elementos díspares, até de línguas diferentes (há até utilização do árabe no meio do discurso em inglês), que um leitor desatento, como a crítica despreparada da época, pode imaginar que é o puro nonsense típico do rock.


Observe a introdução de tom feérico que dura uns 50 segundos, parecendo forçar uma pausa do nosso cotidiano, pois algo especial será apresentado para nós. Vem então uma balada de sonoridade melosa que vai até mais ou menos 2min35. Nela se expressa a angústia de quem acaba de cometer um pecado (o assassinato mencionado pode ser também entendido em sentido figurado), o que provoca a perda recente da inocência – daí as constantes referências desesperadas à mãe. Após isso entra um solo frenético de guitarra, que alguns entenderam como a morte na cadeira elétrica, mas mais seguramente pode ser visto como um mergulho no inferno, literal ou não. A partir de 3min04 a canção ganha um jeito de ópera, com a grandiosidade do duelo de solo de voz e coros. As frases “Spare him his life from this monstrosity” (“Poupe sua vida dessa monstruosidade”), “Bismillah! No, we will not let you go” (“Bismillah [expressão árabe que significa “Em nome de Deus”]! Nós não vamos deixar você partir”), “Beelzebub has a devil put aside for me“ (“Belzebu tem um demônio reservado para mim”) é uma pista para se entender que o que está havendo aqui é um duelo pela alma do pecador. Lembra o final de Fausto (1808), de Goethe (1749-1832), em que céu e inferno lutam pela alma do protagonista que dá nome ao livro. Em 4min07 a música assume um andamento de rock pesado. Parece a agonia de quem se sente irremediavelmente condenado. Em 4min55 outro tom assume, mais calmo, dominado pela frase “Nothing really matters to me “ (“Nada realmente importa para mim”). É a resignação, é a aceitação do destino, ou da consequência das escolhas assumidas. O peso do livre-arbítrio.
Essa disposição para misturar elementos diferentes para compor uma representação do espírito de uma época ou de um povo também pode ser encontrada na literatura brasileira do Modernismo. É o que vemos em Macunaíma (1928), de Mário de Andrade (1893-1945), em que há a junção da cultura do índio, do negro e do branco para erigir o caráter do Brasil, e também em Guimarães Rosa (1908-1967), que se comportou como um verdadeiro rapsodo ao coletar os elementos que ouvia do sertanejo mineiro e fundi-los ao repertório da cultura universal e compor obras magnânimas como Sagarana (1946) e Grande Sertão: Veredas (1956). Mas esse é um assunto a ser desenvolvido em outro momento mais apropriado.

4 comentários:

  1. Bohemian Rhapsody ficou ainda mais fantástica depois desse texto *--* Parabéns, Lau!

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    1. Poxa! Obrigado pelo elogio! Mas muitas vezes uma boa crítica só pode vir de uma boa obra. O mérito também é dela.

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  2. Na parte em que a canção assume um jeito de ópera, observei que os integrantes da banda, dispostos de forma a parecer um coro (cultura clássica) talvez tentem representar uma tragédia grega vivenciada pelo protagonista da música... essa mesma utilização de elementos da cultura greco-romana é bastante explorada por Woody Allen em Poderosa Afrodite: existe um coro em um antigo teatro grego, que constantemente utiliza o vocativo e se refere a Zeus e outro deuses. Além disso, Allen, no filme, é um homem desesperado porque cometeu um "crime" grave: adultério. É possível aproximar os dois dessa forma, Lau?

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  3. Lau, que texto maravilhoso!Sempre que ouço está música lembro do Raskólnikov do Crime e Castigo, mas agora depois desta análise, acho que não parece tanto haha Abrs querido! =D

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