Miró, Interior Holandês I (1928). |
O mundo contemporâneo está marcado por uma ideia de valorização da modernidade, entendida, dentro de um pensamento viciado em “evolucionismo histórico”, como uma ruptura com o passado e um esquecimento dele. Ser moderno é buscar incessantemente, a qualquer custo, o novo. O antigo vira algo desprestigiado. Todo o universo de conhecimento que seria nossa herança é rotulado como velho, antiquado, ultrapassado.
Na verdade, essa fome pela novidade tem-se mostrado nociva. O problema não está no novo em si. Não se está defendendo uma postura retrógrada, reacionária, conservadora, que veja mudanças como prejudiciais. O fato grave é que a desvalorização do passado impede o amadurecimento de nossa sociedade. É importante o aproveitamento de nossa herança cultural. Trata-se de um conjunto de experiências que precisa ser absorvido e digerido para que se possibilite o desenvolvimento de nosso fator humano.
Mergulhado em tal impossibilidade, o homem e o mundo (que nada mais é do que projeção daquele) tornam-se vazios, sem sentido, sem identidade. Não se reflete, não se analisa, não se estuda o que vivemos e o que fazemos, pois isso é analisar o passado e o que importa é o agora. Herança, tradição, experiência são palavras que recebem toda uma carga semântica pejorativa.
O problema é que esse esvaziamento amputa o que nos faz humanos. Temos uma identidade, uma cultura, uma ética, coisas que nos são transmitidas e que serão transferidas. Mas se o que vale é o agora, que despreza o passado, de onde virá nossa identidade, personalidade, cultura, ética, já que tudo isso é memória? Como produzi-las, se tudo isso vem do passado?
A consequência drástica é um esvaziamento total. O mundo contemporâneo tem uma ética, uma cultura, uma identidade defeituosas. Em suma, uma humanidade defeituosa. Esse vazio torna-nos alienados. O “eu”, as relações subjetivas e afetivas se enfraquecem. Sobrevive-se uma valorização, um culto do objeto em si, a reificação. Tudo agora é objeto, é mercadoria. Até mesmo a cultura. Aliás, questiona-se se há de fato cultura ou se essa nada mais é do que somente mercadoria.
Nesse contexto, recorrer a uma velha simbologia medieval não é exagero. Nós nos assemelhamos ao dragão que guarda em sua caverna uma donzela com a qual ele não poderá fazer nada. Acumulamos sem utilidade alguma, pois o que “colecionamos”, sem passado, sem ser digerido e, portanto, sem futuro, já que não será transmitido, não nos torna humanos, não nos acrescenta nada. E, assim com o dragão, caminhamos para uma postura destrutiva – podemos destruir nossa donzela, quem irá resgatá-la e, no fogo escabroso de nossa alienação, até nós mesmos.
Essas não são observações que giram sobre um abstrato vago, impalpável. Elas se referem a comportamentos presentes em nosso cotidiano até mesmo escolar. Existem aqueles que pregam que o ensino de arte, principalmente literatura, deva se ocupar apenas com textos contemporâneos, ou pelo menos modernistas. Especial atenção deveria ser dada às manifestações mais recentes – cinema em lugar de romances, música pop em lugar de música erudita ou mesmo música popular brasileira. Por que colocar em sala de aula Auto da Barca do Inferno e Memórias Póstumas de Brás Cubas e não Harry Potter e Crepúsculo?
O quadro apresentado acima consegue paradoxalmente dar pistas sobre a importância da tradição. Trata-se de uma obra do Modernismo, Interior Holandês I (1928), de Miró (1893-1983). À primeira vista, parece um conjunto caótico de formas geométricas de traço simplificado, qualidade esta que se aplica também às suas cores, que se mostram básicas, dispensando o jogo de nuance e de luz e sombra. Enfim, um universo abstrato que elimina o sentido, já que tudo é aleatório.
Entretanto, um olhar mais atencioso conseguiria divisar elementos conhecidos no universo dessa pintura. Saltaria à vista, por exemplo, após o esforço de adaptação a essa nova forma de arte, um cachorro no canto inferior esquerdo do quadro. Captada essa personagem, nosso olhar começaria a perceber que a figura acima desse animal é algo próximo ao que entendemos como ser humano e que este estaria tocando um instrumento musical, provavelmente de corda. Estabelecidos esses parâmetros palpáveis, um mundo reconhecível estaria se materializando. No canto superior esquerdo se divisaria uma janela, aberta para o exterior, o que nos faria entender que essa obra retrata um interior – daí o seu título, que agora faz sentido.
Ainda assim, alcançado esse estágio de compreensão, Interior Holandês I estaria amputado de muito de sua personalidade. De fato, da maneira como foi analisado até aqui, o quadro se resume a um exercício pictórico, assim como boa parte da arte do Modernismo passaria a ser mero exibicionismo ilógico (algumas vezes o é mesmo). É o problema que os alunos têm, por exemplo, quando leem Sentimento do Mundo (1940), de Carlos Drummond de Andrade, ou Macunaíma (1928), de Mário de Andrade: entendem sem dificuldade as frases, mas não conseguem captar o seu sentido. O problema, muitas vezes, está no já mencionado vício de se desprezar a tradição.
A solução? O conhecimento da tradição artística. Quando ela é respeitada, e isso se manifesta não pelo simples fato de copiá-la ou venerá-la, mas eficazmente pelo fato de conhecê-la criticamente, boa parte das obras do Modernismo passa a ganhar riqueza de significado. No presente caso, basta ter em mente O Tocador de Alaúde (1661), de Hendrik Martenszoon Sorgh (1610?-1670) para que nossa leitura acabe se encorpando.
A observação dessa obra barroca faz-nos ter melhor conhecimento do que se exibe na composição modernista. Entendemos que Miró simplificou o quadro de Sorgh, ou que pelo menos o reduziu à sua essência, como alguém que se recorda de um sonho intenso e que se vai desvanecendo após o despertar. De fato, a arte, para os modernistas, não precisa ser uma cópia fotográfica da realidade, mas uma recriação de sua essência. É por causa disso que vemos que alguns elementos do quadro holandês que tocaram a sensibilidade do pintor espanhol foram destacados na obra deste. Assim, o cachorro, que nos observa, ganha destaque na obra do modernista, assim como o desgrenhado esfiapado do cabelo do músico, a brancura da mesa, o volume da coluna junto à janela. A mensagem que se tira? O novo, por mais moderno que seja, só consegue ganhar plenitude de sentido se não se perde de vista a tradição.
Percebe-se então que o entendimento de obras contemporâneas só se faz de maneira digna se se respeitar (não se está defendo a veneração cega) a tradição que as trouxe até nós. Até mesmo Harry Potter ganha mais sentido se se tem em mente às referências que nele existem a elementos da cultura clássica e medieval. Até mesmo Crepúsculo encorpa-se com o entendimento de que é uma saga herdeira (ainda que aguadamente) da tradição do Romantismo. Renegar isso é atrofia intelectual.
Concordo... Por isso sempre procuro analisar o máximo possível de uma obra, seja ela uma pintura, filme, música, livro e até mesmo um conjunto deles. Creio que tudo é válido, e assim a arte "se renova".
ResponderExcluirQue bom! Você está no caminho certo. Mas cuidado com o "tudo é válido". Pense assim - "tudo é válido, desde que haja lógica".
ExcluirBRAVO!!! Mais uma vez!!! Bjsssss literários!!!
ResponderExcluirObrigado, amiga exagerada!
ExcluirMuito bem postado, Laudemir.
ResponderExcluirComo bem diz uma frase cujo autor eu desconheço, se em alguma coisa vemos mais longe que os nossos antepassados, é porque somos anões em ombros de gigantes.
Mas, realmente nos dias de hoje essa importância da tradição não é bem compreendida. Cada geração que surja quer se acha o supra-sumo da humanidade e quer recriar toda a civilização à sua própria imagem e semelhança.
Concordo com você, André. É um erro se achar o suprassumo. Ou, se é pra se achar, que pelo menos entenda que isso se deve a uma herança cultural. E quanto à frase que você citou, eu não lembro a autoria dela. Sei que ela aparece no livro O Nome da Rosa, do Umberto Eco, o que indica que ela já fazia parte da tradição medieval.
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