Dois posts (26 de agosto e 05 de setembro) discorreram sobre a ineficácia de se querer uma pureza de plataformas estéticas. A intenção era mostrar como a arte acaba enriquecida quando não se apega a critérios eugênicos. No primeiro texto, lidou-se apenas com formas musicais. No segundo, fez-se uma ponte entre música e dança. Agora o passo será um pouco mais complexo, pois envolverá música, dança e literatura.
A sinfonia em questão é o popularíssimo Bolero (1928), do francês Maurice Ravel (1875-1937). Trata-se de uma composição que já nasceu para a dança, pois atendeu ao pedido da bailarina russa Ida Rubinstein (1885-1960). Sua instrumentação é bastante interessante, pois apresenta uma melodia básica que vai sendo executada repetida, sucessiva e exaustivamente por cada instrumento da orquestra, atingindo um clímax em que todos os músicos tocam energicamente, até tudo ser brusca e estonteantemente cortado.
Entretanto, a coreografia que se vê aqui é a criada em 1961 por Maurice Béjart (1927-2007). Há nela algo das culturas orientais (traço típico desse criador de dança), como a expressividade que o corpo adquire graças à sua sinuosidade. Observe como a movimentação corporal é diferente daquela a que estamos acostumados, concentrada na cintura para baixo (vale a pena, para reforçar a compreensão dessa oposição Ocidente-Oriente, ler o post de 18 de março). Basta notar que a disposição dos pés, assim como a movimentação das mãos, lembra muito da dança da Índia e Indonésia. E na segunda metade da apresentação os integrantes do Tokyo Ballet vão reforçar com seu gestual esse contato com a ritualística oriental, destacando o que fica da cintura para cima.
O interessante é que nada das inovações dessa arte depõe contra a obra de Ravel. Para um observador desatento, o que se vê é uma chatice, pois parece repetitivo. Na verdade, um olhar mais apurado veria que há uma riqueza de gestos que vão acrescentando “mais do mesmo” à dança que está sendo exposta. Semelhante ao que o músico fez com sua obra. É importante também notar que contribui mais ainda para a riqueza dessa peça, fruto do encontro de setores culturais diferentes, o fato de a dançarina, a francesa Sylvie Guillem, ter iniciado sua carreira na ginástica artística. A graça de seus braços e pernas talvez venha das habilidades adquiridas nesse setor, o que só tem a encorpar o que ela está interpretando. Mais um gol contra os puristas.
Por sua vez, o contato com o poema “Bolero de Ravel”, presente em Sentimento do Mundo (1940), de Drummond, ajuda a dar mais compreensão ao que se está degustando. Não se trata de um texto inspirado na obra do músico, mas de uma adaptação na forma poética dos elementos que estão dispostos na sinfonia. Leiamo-lo:
A alma cativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia.
Infinita, infinitamente...
As mãos não tocam jamais o aéreo objeto,
esquiva ondulação evanescente.
Os olhos, magnetizados, escutam
e no círculo ardente nossa vida para sempre está presa,
está presa...
Os tambores abafam a morte do Imperador.
O encontro entre as duas obras encorpa a compreensão que se tem delas. O caráter repetitivo da composição do francês está na ideia que Drummond utiliza da espiral que se enrola “infinita, infinitamente...”. E o poeta transferiu para a música as suas inquietações com o mundo em que vivia (vale a pena reler os posts de 12 e 16 de agosto). A melodia acaba expressando a angústia de uma existência que acaba se esvaziando, se inutilizando por se transformar num eterno desejar, nunca realizado: "As mãos não tocam jamais o aéreo objeto / esquiva ondulação evanescente". Por um lado, seria ruim o homem alcançar facilmente a sua satisfação, pois o sentido da vida desapareceria facilmente. Mas o paradoxal é que o que nos mantém em pé, o desejar que nunca se alcança, é o que justamente detona nossa existência – a espiral infinita do querer a que “nossa vida para sempre está presa”. Até que chega a morte – expressa, na música, pelo final brusco; na coreografia, pelo cessar abrupto da movimentação; no poema, pelo único verso que não termina em enjambement ou em reticências: “Os tambores abafam a morte do Imperador”. Três formas diferentes de expressar o mesmo fato.
Comprova-se, então, que a transferência de um ideal artístico de uma plataforma para outra, quando bem realizada, não o deturpa. Ao contrário, só enriquece a compreensão que se tem do trabalho estético, mesmo quando se trata de uma obra tantas vezes executada – como o Bolero, de Ravel – a ponto de muitas vezes cair no mau gosto e no clichê. É um expediente, portanto, válido e que deve ser não só elogiado, mas incentivado.
Muito bom o post, sr Laudemir
ResponderExcluirJulio Leite
Nossa! Obrigado, Julio! Espero ter sido útil. E visite sempre o blog, faça sempre comentários, positivos e negativos. É de circulação de ideias que precisamos!
ExcluirJá havia notado essa ideia da repetitividade do Bolero no meu estilo de vida, como se estivesse vivendo em um loop. Mas a ideia do paradoxo foi boa, nunca percebi até então. Há pouco tempo que notei que música erudita não é só calma, ela traz também um sentido.
ResponderExcluirCaro Luccas, gostei muito de você ter trazido à tona o termo "loop". Sim, nosso cotidiano está numa espiral, num looping, como você bem observou. Quanto à música erudita, de fato há aquelas que são apenas elaboração matemática de combinação e recombinação de notas. Nisso ela consegue transmitir calma, relaxar a gente, desligar nosso cérebro. Nada há nada de errado em ser assim. Mas há outras que transmitem significados (o que não impede que também sirvam para que a gente não preocupe com nada, nem com sentido). Já viu o post que eu deixei em fevereiro sobre o Carnaval? Nele há um exemplo de música que transmite significado. Confira.
ExcluirIsso tem algo a ver com o Mito de Sísifo do Camus? Não li ainda, mas me lembrou muito o que li sobre. Muito bom o testo, continue escrevendo análises e comparações entre obras de diferentes formas de arte, é muito enriquecedor e difícil de achar na internet.
ResponderExcluirtexto com s (to bem hein)
ExcluirEu percebi. Mas como foi o único erro que notei no texto, então entendi que foi só uma distração. Fica tranquilo.
ExcluirNa verdade o mito de Sísifo é grego. Camus (não conheço o fato que você menciona) deve ter-se inspirado na mitologia desse povo, que inspirou tantas outras coisas maravilhosas. Creio que Sísifo representa bem a condição humana, a de nunca terminar sua tarefa. Se conseguisse, que graça teria a vida. Infelizmente, ou felizmente, nosso destino é sempre desejar, desejar, desejar, rolar essa pedra para cima incessantemente. Como dizia o Velho do Restelo, em Os Lusíadas - "Mísera sorte! Estranha condição!".
ExcluirEsse bolero, para mim, me passava a imagem de "algo chegando ao encontro"... Linda apresentação, e muito bem notado a ligação com Drummond. Muito legal, Lau. Obrigado! :)
ResponderExcluirNão é inválida a sua interpretação do Bolero como a materialização em música do "algo chegando ao encontro". E obrigado pelo elogio.
ExcluirAinda não tinha visto essa bailarina fantástica, impecável dançando, interpretando esta obra-prima. Sempre que ouço Bolero de Ravel, que é uma das minhas músicas preferidas, tenho esta sensação de busca e repetitividade constantes, porém, variadas, sempre difentes, nunca iguais, há sempre algo novo que vai somando, incorporando-se a cada desejo nosso,uma nota, um instrumento, um movimento do ballet clássico ou da dança oriental, um bailarino que chega... como na vida, nada é igual, tudo muda, felizmente! E o mais fantástico ainda é que a arte dá conta de expressar esse paradoxo das repetições que são tão desiguais ao longo de toda a nossa existência!
ResponderExcluirGrande e belo trabalho, amigo querido! Muito obrigada!
O mais incrível, Claudiane, é que Bolero é uma obra tão espetacular que inspirou em você, uma mulher encantada, uma visão desencantada e no Drummond de Sentimento do Mundo uma visão desencantada. Acho que essa é a maravilha da obra de arte de qualidade, não?
ExcluirConfirmando o todos já disseram: também acho incrível como tanto o Bolero quanto o poema conseguem expressar divinamente essa ideia paradoxal do sentido da vida. Sempre buscar, e ser movido por isso, mas nunca atingir, e se arrebentar existencialmente. Sinto como se fôssemos deuses onipotentes enjaulados em carapaças que estão em constante deterioração. E a arte tende a ser nosso ópio, mas também nossa chave; aquilo que nos entorpece e, ainda que momentaneamente, exime-nos dessa gaiola, permitindo-nos nos libertar, nos elevar e ver além. Papel cumprido de forma brilhante tanto pela sinfonia e pelo poema, quanto por esse seu blog magnífico! Grande beijo.
ResponderExcluirAchei muito bonita essa utilização que você fez dos paradoxos - somos deuses com carapaça deteriorada, a arte nos prende e nos liberta. Acho que você também deveria escrever, Edson.
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